NOSTALGIA DE HEGEL OU A DESCRENÇA NA HISTÓRIA

Conversa Com (A)Gente Pedro Süssekind, escritor, tradutor e professor universitário que está lançando pela 7Letras um novo ensaio, HAMLET E A FILOSOFIA, resultado de anos de investigação e pesquisas sobre a relação entre o pensamento filosófico e a literatura, a partir da interpretação de obras literárias e de sua paixão pela produção teatral de Shakespeare. Seu novo romance, ANISTIA, ainda inédito, reconstrói a saga do herói homérico Telêmaco, que sai em busca do pai na Odisseia, situando-a no Brasil de 1979, às vésperas da promulgação da Lei da Anistia. Escrito em um momento em que o autor se vê descrente da ideia de que a História possa caminhar para a frente, para o aprimoramento da sociedade, o romance reflete uma época em que a realidade brasileira ainda propiciava essa esperança. “A minha geração é profundamente marcada pelo processo de redemocratização do país. Atribuo a isso, pelo menos em parte, uma certa ilusão otimista a respeito do processo histórico, porque minha visão política girava em torno da ideia de um progresso coerente, uma luta por avanços sociais na qual era possível nomear as forças que atuavam – a oposição e a situação –, forças que pareciam anunciar a superação de conflitos e injustiças evidentes. Hoje tenho nostalgia desse meu hegelianismo”.

VB&M: Como você concilia duas escritas tão opostas – o ensaio filosófico e a pesquisa universitária com a produção ficcional de contos e romances?

PS: A dificuldade de conciliar as duas formas de escrita tem um lado prático, porque a pesquisa acadêmica toma muito tempo. Em geral, esse lado prático é mais uma exigência de organização, de reservar uma parte do dia para cada coisa. Mas também existe uma dificuldade mais abstrata, porque são duas formas muito diferentes de pensar. Cada processo exige toda uma sintonia diferente, que me parece ligada ao papel da imaginação e do entendimento. Claro que também na escrita ensaística existe um espaço para a imaginação, mas ela fica subordinada à reflexão e à análise, à elaboração ou criação de conceitos. Da mesma maneira, a ficção pode ser uma forma de pensar com signos e metáforas. Aliás, a filosofia e a literatura têm uma longa tradição de conflito, de Platão a Hegel existe uma tentativa de dissociar o discurso verdadeiro, que produz conhecimento, do discurso ficcional associado ao domínio do falso. Esse assunto me interessa muito e acaba sendo um tema de reflexão para o meu próprio trabalho teórico. Durante algum tempo estudei, por exemplo, a produção teórica de Schiller, que foi um grande poeta e dramaturgo, mas escreveu ensaios brilhantes. Ele ficou sem escrever peças enquanto escrevia esses ensaios, e Goethe, com quem passou a se corresponder assiduamente, o aconselhava a deixar de lado o pensamento abstrato e os estudos de Kant para se dedicar só à poesia… Também me interesso por filósofos que escreveram ficção, como Unamuno, ou Sartre, ou Umberto Eco, assim como pelos escritos teóricos de poetas, como Rilke (de quem traduzi as “Cartas sobre Cézanne” para a 7Letras), Baudelaire, Proust, Fernando Pessoa. Mas tenho trabalhado especialmente com o tema da relação entre filosofia e literatura a partir de interpretações de obras literárias. Foi de um trabalho assim que resultou o livro a ser publicado em breve, HAMLET E A FILOSOFIA. Levei muito tempo para conseguir terminá-lo, porque a bibliografia sobre essa peça é inesgotável. E em muitas ocasiões a redação do livro tomou todo o tempo que eu tinha para escrever, mas depois eu precisava deixar o texto guardado, em suspenso, para me dedicar a outros projetos. Só que, mesmo durante aqueles períodos mais intensivamente dedicados a “Hamlet”, eu ia sempre anotando ideias, rascunhando algumas histórias. Logo depois de concluir a redação do livro, comecei a escrever um romance cujo enredo vinha amadurecendo fazia algum tempo na minha imaginação. Fiquei surpreso com a quantidade de notas, rascunhos e apontamentos produzidos quando o foco principal da minha atenção estava em outro lugar.

VB&M: Você se lembra de quando leu Shakespeare pela primeira vez? Qual foi o impacto da leitura sobre você?

PS: Meu primeiro contato com Shakespeare foi por meio de filmes, quando eu era adolescente: o “Hamlet” de Laurence Olivier, o “Romeu e Julieta” de Franco Zeffirelli, o “Otelo” de Orson Welles, as versões samurais de “Rei Lear” e “Macbeth” dirigidas por Akira Kurosawa (“Ran” e “O trono manchado de sangue”), o “Henrique V” de Kenneth Branagh. Faz tempo isso, naquela época “Ran” e a nova versão de “Henrique V” eram lançamentos recentes…. Eu adorei todos esses filmes e lembro sem muita precisão de me dar conta, em algum momento, de que podia ler e estudar as peças. Não sei dizer quando foi isso, talvez com uns 16 anos. Achei uma edição em português das obras de Shakespeare, com tradução do Carlos Alberto Nunes, e comecei por “Romeu e Julieta”. Depois fui ler “Hamlet”, peça em que reconheço um efeito identificação, um espelhamento das ideias de seus leitores. Meu interesse por filosofia vem dessa mesma época.

VB&M: Quando percebeu que Shakespeare reflete e orienta o pensamento filosófico ocidental e depois decidiu colocá-lo no centro de sua produção ensaística?

PS: O meu trabalho acadêmico com Shakespeare começou por um caminho curioso, porque minha formação estava mais ligada à Alemanha. Quando eu era garoto, como sou de uma família de origem alemã e comecei a me interessar por filosofia, resolvi estudar alemão. Mais tarde, durante a faculdade, acabei ganhando uma bolsa para fazer um curso intensivo em Freiburg, depois disso comecei também a traduzir livros alemães. Fiz monografia sobre Nietzsche, mestrado sobre Benjamin, doutorado sobre Schiller, então deveria ter me tornado um “germanista”. Mas uma parte da minha tese foi dedicada à recepção de Shakespeare na Alemanha, porque essa recepção foi um fator fundamental para o Romantismo alemão. Essa parte me interessou especialmente, então quando me tornei professor universitário resolvi dar um curso sobre quatro tragédias de Shakespeare (influenciado por uma tradução que eu tinha feito, do “Ensaio sobre o trágico”, de Peter Szondi, publicado pela Zahar). Mas isso aconteceu mais de dez anos atrás, e Shakespeare só voltou a ser o centro mesmo da minha produção bem depois. Gosto mais de fazer comparações entre diferentes autores do que de me especializar em um só. Pesquisei vários assuntos de Estética ao longo dos anos – o sublime, por exemplo, ou as teorias do fim da arte –, até finalmente achar que eu tinha material suficiente para começar a escrever esse livro sobre Hamlet e a filosofia. Meu primeiro ensaio sobre o tema do livro foi publicado em 2008, e em 2014 fiz um estágio de pesquisa na Biblioteca Folger, nos EUA, depois disso dei muitos cursos sobre o assunto, retrabalhei muitas vezes os textos de cada capítulo, e só considerei que o livro estava pronto em 2020.

VB&M: Qual plano de leitura de Shakespeare você sugeriria a um jovem leitor que jamais leu seu teatro ou poesia? O que ler primeiro? O que ler por último?

PS: A meu ver, cada leitor deve encontrar seu caminho, não vale a pena estabelecer nenhuma regra. Eu só recomendo explorar a incrível diversidade da obra de Shakespeare. Meio que por acaso, ou guiado pela leitura romântica, passei muito tempo lendo mais as tragédias. Só que as comédias de Shakespeare são maravilhosas: “Sonhos de uma noite de verão”, “Trabalhos de amor perdidos”, “A comédia dos erros”. Os dramas históricos são fantásticos também: “Henrique V”, “Ricardo III” e companhia. Mas ultimamente tenho me interessado sobretudo pelos dramas romanos, como “Júlio César”, “Coriolano” e “Antônio e Cleópatra”, todos baseados nas biografias de Plutarco. Aliás, acho fascinante a relação de Shakespeare com suas fontes, a maneira como ele adapta e transforma histórias já existentes, tiradas de crônicas, biografias, novelas. Pensando em como se aproximar desse universo, acho que o primeiro impulso para a leitura pode variar bastante. Às vezes é um filme que desperta o interesse, como ocorreu comigo, ou então é uma adaptação teatral que leva o espectador a querer conhecer melhor a peça, ou um bom comentário de um crítico, ou uma aula. Participei recentemente de um livro muito interessante para quem quer conhecer melhor Shakespeare e que no fundo reúne dezenas de tentativas de responder a essa pergunta sobre por onde começar e o que ler. Ele foi planejado durante a pandemia, publicado este ano pela Nova Fronteira e se chama “O que você precisa saber sobre Shakespeare antes que o mundo acabe”.

VB&M: Quanto de sua formação filosófica sustenta a sua ficção? Como se dá essa penetração da filosofia na literatura?

PS: Na verdade, eu comecei a escrever ficção, meus primeiros contos, antes de começar a estudar filosofia e de ter qualquer tipo de formação filosófica. Por outro lado, tenho em alguma gaveta um caderno com umas quarenta páginas da minha primeira tentativa de escrever um romance, curiosamente influenciada pela leitura de “O estrangeiro”, de Camus, livro que tinha acabado de ler para a escola. Pensando bem, isso deve indicar uma certa propensão para combinar literatura e filosofia… Ou seja, desde muito cedo tento equilibrar esses dois interesses. No meu caso, isso tem dois desdobramentos. Um deles é que a literatura, e até esse problema da forma de pensar por meio dela, acabou sendo um dos temas das minhas pesquisas teóricas. O outro é que o ambiente universitário (estudantes, professores, tradutores) acaba entrando na minha ficção, porque faz parte da minha experiência cotidiana. Além disso, o fato de eu passar grande parte do meu tempo lendo e estudando literatura foi se infiltrando na minha imaginação, nas ideias que tenho para escrever histórias. Talvez seja por isso que tendo a tomar como ponto de partida adaptações, mesmo que muito livres, de enredos já existentes. Fiz isso no meu primeiro romance, TRIZ (Editora 34, 2011), que tem como protagonista um tradutor de literatura russa. O livro que ele traduz é inventado, assim como seu autor, mas a desilusão amorosa que o tradutor vive é baseada no enredo de “Oniéguin”, de Púchkin. Agora, com meu novo romance, também parti de um enredo clássico, tirado do início da “Odisseia”. Sempre me chamou a atenção essa parte em que Telêmaco, o filho, parte em busca de Ulisses, um pai desaparecido. Já trabalhei também com esse tema de uma perspectiva teórica, ao dar cursos e escrever ensaios sobre abordagens contemporâneas de Homero, então isso é um bom exemplo de interseção entre o campo ensaístico e o ficcional. No romance, eu queria explorar os elementos básicos daquele enredo (o pai desaparecido, sua ausência como motivação, o filho em busca de notícias), mas em um contexto específico da história do Brasil, que é também o contexto de referência da minha própria infância. Aqueles elementos me deram como que um mote, um ponto de partida, para a história que eu imaginei.

VB&M: Seu novo romance, ANISTIA, se passa em 1979, quando você era um menino. Sua relação com a temática da ditadura tem algum elemento pessoal, de ordem familiar, por exemplo, ou reflete estritamente a perplexidade de qualquer brasileiro diante da dura história do País?

PS: Não se trata do relato de uma experiência pessoal direta, não pretendi fazer auto ficção. Convivi com filhos de exilados, claro, e ouvi muitos relatos diretos de amigos ou conhecidos mais velhos, mas não passei por nada parecido com o que ocorre com o personagem do meu romance. Agora, crescendo na década de 1970, as primeiras noções mais ou menos políticas que eu tive a respeito do Brasil estavam ligadas às palavras “ditadura”, “censura”, “exílio”, “anistia”. Amigos dos meus pais e dos meus tios, ou pais de amigos meus, tinham vivido no exílio. Cantávamos o hino nacional todos os dias na escola, e a ideia que eu tinha do nosso país misturava o ufanismo em torno do futebol, da seleção de Pelé, com desfiles militares e presidente fardados. Saiu o Geisel, entrou o Figueiredo, mais um general na presidência. Uma palavra especialmente misteriosa para mim era “anistia”. Talvez eu a tenha encontrado pela primeira vez nas histórias da Graúna, no jornal “O Pasquim”, que lembro de ler na casa dos meus avós. Lembro também das alegres fantasias e expectativas infantis despertadas, quando eu tinha sete, oito anos, pelas notícias e pelas comemorações em torno da volta de figuras importantes que estavam exiladas. E também das fantasias assustadoras associadas às notícias enviesadas que chegavam a mim sobre prisões, ou sobre a bomba que explodiu no Rio Centro. O grande acontecimento político que acompanhei já com alguma consciência foi o das Diretas Já, um movimento que começou quando eu tinha uns dez anos. Em seguida, houve a Constituinte, liderada por Ulisses Guimarães, e ainda deu tempo para eu votar, aos dezesseis anos, na primeira eleição direta depois da ditadura. Então a minha geração é profundamente marcada pelo processo de redemocratização do país. Atribuo a isso, pelo menos em parte, uma certa ilusão otimista a respeito do processo histórico, porque minha visão política girava em torno da ideia de um progresso coerente, uma luta por avanços sociais na qual era possível nomear as forças que atuavam – a oposição e a situação –, forças que pareciam anunciar a superação de conflitos e injustiças evidentes. Hoje tenho nostalgia desse meu hegelianismo.

VB&M: Como surgiu a ideia de contar a busca de um filho por um pai supostamente desaparecido no momento em que começam a retornar os exilados do regime militar?

PS: A ideia para esse romance me ocorreu a partir de uma combinação um pouco inusitada. Foi em 2013 mais ou menos, na época em que saíam notícias da elaboração do relatório da Comissão da Verdade. Parecia que finalmente havia uma vontade política no Brasil de lidar com essa memória traumática, com a questão da reparação pelos crimes da ditadura. As histórias dos desaparecidos e dos torturados estavam sendo recontadas, e enquanto isso eu dava um curso sobre a “Odisseia” na faculdade, sobre a leitura que os filósofos frankfurtianos (judeus alemães exilados nos EUA durante a II Guerra) fizeram de Homero. Quando reli naquele momento os primeiros cantos da “Odisseia”, a chamada “Telemaquia”, em que tudo gira em torno da ausência do pai, fiz uma primeira anotação que depois serviu de base para um roteiro. A ideia básica era a de que no contexto brasileiro de quando eu era criança, teríamos no lugar de Ulisses um militante desaparecido, e no lugar de Telêmaco um estudante de História que relutava em se engajar. Fui trabalhando aos poucos nesse roteiro, que por muito tempo manteve o nome Telemaquia. Mas só fui de fato escrever essa história vários anos depois daquela primeira anotação, num momento completamente diferente daquele em que eu tinha começado. Não só diferente, mas oposto. Iniciativas como o relatório da Comissão da Verdade tinham alimentado um reacionarismo raivoso, recalcado, que eu imaginava superado. O caos político gerado pelo golpe de 2016 tinha possibilitado uma regressão à mentira, a ponto de vivermos hoje sob um governo que exalta torturadores e comemora a data de início da ditatura militar. Nesse momento, se tornou urgente e necessário para mim falar sobre memória, luto, reparação, herança, sobre a procura de um passado perdido.