O ESBOÇO PERDIDO DE HIERONYMUS BOSCH

Narrativas e Depoimentos publica hoje um trecho do romance policial ESQUISSE, de Godofredo de Oliveira Neto, autor premiado e professor de literatura brasileira. Originalmente escrito em português e ainda inédito no Brasil, o romance foi traduzido para o francês por Richard Roux e publicado em maio pela editora parisiense Envolume. ESQUISSE se passa em meio à tensão política de 2020, entre Veneza, Nova York e Brasil, quando uma família brasileira de origem italiana se descobre herdeira de um precioso esboço de um quadro de Hieronymus Bosch. Designado por sua família para recuperar o esboço, Luigi viaja para Nova York, onde sente o racismo na pele e testemunha os estágios iniciais da pandemia. Godofredo publicou outros dois romances na França pela Envolume, AMORES EXILADOS e MENINO OCULTO (Record), ambos elogiados pelos jornais Le Figaro e Le Monde.

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Café pertinho dali. Uma vidraça espelhada separa a gente da calçada. Gozado, Luigi, você saiu bem escuro, nas fotos você parecia mais branco, a cara do teu pai, aqui em NY você é negro, no Brasil não, né? Não respondo. Responder o quê? Abro logo a conversa, pois ele sabe o que estou fazendo ali. Vim para reaver a esquisse do Bosch que está com a nossa família há mais de cinco séculos.

Dois cafés, sim café italiano. O garçom anota no Ipad. Sordi sorri a cada mulher que ajeita o cabelo, se olha e arruma discretamente a saia, roda ligeiramente em volta da cintura, o reflexo como um espelho na Quinta Avenida. A cara do Sordi me informa que a última, uma ruiva sessentona, batom vibrante, sorri para ele. Digo que não é para nós que elas estão olhando, mas para elas mesmas diante do vidro. Tudo agora é fake, perfis falsos, tudo invenção, então para mim elas estão me paquerando e pronto, qual é o problema, me explica ele no seu português arrastado aprendido nos dez anos passados no Brasil, em Itajaí, Santa Catarina. Logo passa uma jovem, nitidamente menor de idade, morena, com certeza mexicana, conserta a maquiagem diante do vidro bem na nossa frente. Sordi arredonda os lábios e envia um beijo estalado. A mesa ao lado viu a cena. Pelo jeito não gostaram. Também um rapaz arrumou o rabo-de-cavalo diante do meu parente italiano, vira-se para um lado, para o outro, tira uma sujeirinha entre os dentes, Sordi não mandou beijo mas não ignorou. Também gosto, diz, junto com uma gargalhada que acabou por irritar ainda mais a mesa ao lado. Na hora de pagar explicou que só tinha uma nota de cinquenta dólares, que eu pagasse. E não esquecesse de deixar pelo menos dois dólares para o garçom. Para uma outra jovem que deu uma paradinha na vidraça espelhada, Sordi mostrou a nota de cinquenta, ela pareceu ver, e, para minha surpresa, deu um beijo no vidro. Vê como elas enxergam, meu chapa. Quando interessa elas veem, quando não, não. Argumentei que dessa vez é porque as luzes do café estavam acesas e de fora se via, claro. Sordi respondeu com um fuck! Esse ia ser o meu interlocutor na divisão dos bens, mais precisamente do esboço de um quadro do Bosch.

Tarefa difícil e fácil para ele, fake e verdade, tudo misturado. Ia me tratar como se eu e nossa questão de herança fossem verdadeiros ou ia me enrolar como nos enrola há décadas?