Fechamos a semana com o primeiro capítulo do novo romance de José Almeida Jr., ainda sem título e em fase de escrita. Autor de ÚLTIMA HORA (Record) e O HOMEM QUE ODIAVA MACHADO DE ASSIS (Faro), Zé retorna à política brasileira e constrói uma narrativa em torno da inauguração de Brasília.
Capítulo 1
O chão tinha um rastro de barro que desaparecia à medida que entrava no hotel. O piso de madeira rangia com as passadas, uma tábua roçava na outra como se fosse desprender. Havia colchões espalhados pelos corredores, duas ou três pessoas dividiam o mesmo leito. O calor dos corpos deixava o ambiente pesado e fétido.
Rebeca fez cara de nojo. Eu também. Mamãe tinha expressão de indiferença e apresentava sinais de cansaço depois de uma viagem de jipe do Rio de Janeiro a Brasília. Meu pai parecia não se incomodar, estava com sorriso largo, regozijava-se com aquelas pessoas dividindo uma mesma habitação. Devia achar a expressão máxima da coletividade. Um mundo ideal, onde as pessoas repartiam tudo, inclusive a moradia.
Zé Carlos, o dono do hotel, apresentou o meu quarto. Havia apenas uma cama de madeira, dois travesseiros e um lençol fino. Perguntei pelo banheiro, ele apontou para o corredor, onde cinco ou seis pessoas aguardavam na fila com toalhas embaixo do braço. Rebeca ficou no quarto. Eu acompanhei meus pais. O quarto deles era parecido com o nosso, com a diferença de que havia banheiro. Pelo visto, a visão de coletividade de meu pai não incluía dividir toalete.
– Você não devia ter aceitado ficar aqui. Não vou pegar fila pra tomar um banho – reclamou Rebeca, assim que retornei ao nosso quarto. – E se precisar fazer xixi à noite? Vou ser atacada por um peão desse que está dormindo no corredor.
– Podemos usar os aposentos dos meus pais.
– Deus me livre. Seu Marcos molha o banheiro inteiro, não dá descarga e ainda mija a tampa do sanitário.
– Vou falar com mamãe pra deixar tudo organizado quando você for usar.
– Sua mãe, Fernando? É capaz de ela soltar um escorpião no banheiro para me picar.
– Fale baixo, Beca. Essas paredes de madeira não abafam o som. E deixe de implicância com mamãe, ela gosta sim de você.
Rebeca riu alto.
– Dois dias viajando com Dona Anita naquele jipe e ela mal falou comigo. Seu pai ainda tentava melhorar o clima. O tempo não passava, não podia conversar com você que sua mãe ficava fazendo cara feia. Sinceramente, não sei o que eu vim fazer nesta cidade amaldiçoada.
Rebeca trocou de roupa e vestiu uma camisola.
– Pensei que pelo menos ficaríamos num hotel em Brasília. Aí seu pai traz a gente pra essa espelunca, numa cidade que mais parece cenário de filme de faroeste. Quanto tempo vamos passar aqui? Vou ter que almoçar e jantar com a sua mãe todos os dias? Não dá pra encontrar um local mais civilizado e longe dos seus pais pra gente se hospedar? Será que vou conseguir manter a sanidade mental até voltarmos pra nossa casa?
Alisei o rosto dela e lhe dei um abraço. Ela continuou falando sem parar. Apertei sua cabeça contra o meu ombro para ver se ela se calava. Estava com medo de mamãe ouvir as queixas de Rebeca. Até que finalmente silenciou. Tentei dar um beijo na boca dela.
– Hoje não, Fernando, estou suja, cansada – ela me afastou com a palma das mãos.
A primeira coisa que pensei quando meu pai me chamou para a inauguração de Brasília foi em desfrutar de um momento a sós com Rebeca, coisa que todo casal deveria ter. Havia algumas semanas que não fazíamos sexo. Mônica tinha cinco anos e dormia todo dia entre nós dois na cama. Rebeca costumava adormecer antes da nossa filha. Não sei se por cansaço ou para fugir das minhas investidas. Algumas vezes arriscava acordá-la de madrugada, mas ela sempre me repelia com grosseria.
Cheirei o seu pescoço, estava molhado de suor e com um pouco de pó de canela da Cidade Livre. Mas o odor não me causou asco. Pelo contrário, fiquei mais excitado, querendo fazer um sexo anticristão, bárbaro, rude, animalesco. Afastei a alça da camisola dela. Apertei os seios, os bicos se enrijeceram. Ela não dava sinal de retribuição, não me dava um beijo, mas também não me mandava parar. Coloquei a mão entre as pernas, ela começava a se excitar.
Rebeca se levantou. Pensei que fosse acabar com a minha animação. Mas ela tirou a camisola e ficou totalmente nua. Eu a joguei em cima da cama. Beijei o seu corpo numa voracidade que os cinco anos de casamento haviam amornado.
Ela me empurrou com violência, pulou da cama e deu um grito.
– Um rato, um rato.
Era um roedor de pelo alaranjado, com uma listra preta no dorso, os trabalhadores da Cidade Livre chamavam de rato-candango. O bichinho não fazia mal a ninguém, mas Beca me obrigou a matá-lo. Tentei ir atrás com a chinela, mas o rato conseguiu fugir pelas frestas de madeira da parede.
Rebeca me obrigou a fechar com um jornal a brecha por onde o rato tinha escapado e a colocar uma toalha embaixo da porta para evitar que outros bichos e insetos invadissem o quarto. Tentei seduzir Rebeca de novo, mas ela ficou irredutível. O rato-candango tinha estragado a minha noite.
Não demorou muito e ela adormeceu. Aproveitei para sair e conhecer a Cidade Livre.
As casas de madeira desalinhadas em nada pareciam com as fotos das primeiras construções de Brasília publicadas nos jornais do Rio de Janeiro. Os ônibus da Araguarina, as carroças e os paus-de-arara levantavam um pó marrom que irritava os olhos e o nariz. Miseráveis que vinham tentar a sorte na nova capital desembarcavam a todo momento. Alguns chegavam arrumados como se já estivessem prontos para os festejos de inauguração da cidade.
Por todo lado, as pessoas carregavam colchões novos Probel nas costas, ainda ensacados. A Novacap os emprestara aos visitantes mediante recibo e com o compromisso de devolverem após as festividades. Era mais um desperdício de dinheiro público de Israel Pinheiro. Juscelino Kubitschek não tinha colocado limites para fazer cumprir seu plano megalomaníaco.
Procurei um restaurante decente para comer, mas não havia nada aprazível. Além de pisos sujos de barro, estavam cheios de bêbados. Afastando-me um pouco da Avenida Central, encontrei um local com uma mesa vazia. Chamava-se Bar e Lanches Itália. Quem comandava o estabelecimento atrás do balcão eram dois homens, um fazia às vezes de garçom e atendia as mesas de maneira simpática, já o outro ficava de cara amuada no caixa.
O garçom se apresentou como Vincenzo. Ele me sugeriu, com um sotaque napolitano, um macarrão à bolonhesa e um copo de vinho.
– Pois traga o macarrão e uma Coca-Cola com gelo e limão – respondi.
– Aproveite para beber hoje na Cidade Livre, porque amanhã vai ser difícil encontrar algo na inauguração. Vou trazer uma cervejinha pro doutor.
– Não bebo.
– A religião não permite?
– Minha filha teve um problema respiratório quando tinha três anos, chegou a ser desenganada pelos médicos. Fiz uma promessa para Nossa Senhora de Aparecida de que nunca mais colocaria uma gota de álcool na boca. Graças à minha padroeira, dois dias depois Mônica recebeu alta do hospital. Desde então, nunca mais bebi. E não sinto falta. Na verdade, eu nunca soube beber. Depois do primeiro gole, só acabava quando não conseguia mais ficar em pé.
– E o pior é que tem homem que depois que bebe fica bravo, quer bater nos outros, dar uns tapas na mulher.
– Eu nunca tive coragem de bater na minha mulher. Pelo contrário, quando chegava bêbado em casa, dormia caladinho no sofá. No outro dia, levava um sermão daqueles.
– O senhor vai me desculpar, mas o meu irmão Gennaro – ele apontou para o homem de cara amarrada do balcão – não quer ocupar mesa do bar com pessoas que não bebem. A gente tem que aproveitar que a cidade está cheia para ganhar dinheiro. Depois que a capital for inaugurada, a Cidade Livre vai ser desmanchada e seremos escorraçados daqui.
– Pois traga uma cerveja. Mas o senhor vai ter que beber e trocar uns dedos de prosa comigo. Ah, e peça pra agilizar a comida, estou com muita fome.
Vincenzo deixou uma Brahma e dois copos na mesa, depois foi atender outro cliente. A garrafa estava nervada. Por um momento, pensei em quebrar a promessa e tomar nem que fosse um copinho para tirar a poeira da garganta. Puxei o escapulário de Nossa Senhora Aparecida de baixo da camisa. Tive medo de que minha padroeira me castigasse e Mônica voltasse a ter problemas de saúde. Rebeca também não me perdoaria se eu voltasse a beber. Beijei a imagem da Santa, fiz o sinal da cruz e venci a tentação.
Uma senhora magra de cabelos grisalhos se sentou e serviu os dois copos de cerveja.
– O que um homem jovem e bonito faz sozinho na Cidade Livre?
– Acho melhor a senhora procurar outra pessoa.
– Humm, já sei que só gosta das novinha. Acho que tenho uma pessoa que vai ser do seu agrado, a Maria Tomba-Homem.
– Acho bom a senhora me respeitar. Sou casado, católico e fiel a meus princípios. Não traio minha esposa nem com outra mulher, muito menos com homem. Isso vai contra a natureza de Deus.
A senhora gargalhou.
– Maria Tomba-Homem não é um invertido. O povo chama ela assim porque sai com muitos homens numa noite só. Pode enfileirar todo mundo aqui do bar que ela derruba todos. A moça é insaciável.
Vincenzo percebeu que a mulher estava me incomodando e a botou para fora do bar. Ele disse que o macarrão tinha acabado. No lugar, trouxe o prato-feito com arroz, feijão, bife de fígado e ovo frito. O fígado estava gelado. Não tinha sequer se dado ao trabalho de requentar as sobras do almoço. Comi um pouco de arroz com ovo e tomei mais uma garrafa de coca para ajudar na digestão.
– O que o senhor acha de Jânio Quadros? Votaria nele pra presidente?
– Só se ele for o candidato do doutor Juscelino. Eu queria mesmo é que o homem continuasse como nosso presidente. Se passasse mais cinco anos governando, o Brasil ia crescer ainda mais.
– O país está todo endividado, inflação alta, corrupção em todo lugar. Esse senhor vai acabar com o Brasil.
– O doutor Juscelino trouxe emprego e oportunidade pra todo mundo. Eu e o meu irmão viemos de São Paulo, com pouco dinheiro no bolso. Eu era garçom e Gennaro maitre no restaurante Le Arcate. Aqui na Cidade Livre a gente conseguiu autorização pra montar esse bar. Já entreguei muita marmita na minha lambreta pra trabalhadores, empreiteiras e até pros engenheiros da Novacap. Doutor Israel Pinheiro prometeu arrumar uma lojinha pra gente na W3 quando a Cidade Livre desaparecer.
– Juscelino é um enviado de Deus – prosseguiu. – Está vendo aquele homem ali cheio de gente na mesa? É o Eli, dono da Pioneira da Borracha. Ele viajou pra São Paulo e voltou da fábrica da Pirelli com mais de quatro mil travesseiros. Vendeu tudo ontem pra Novacap. Está rico. Aqui a riqueza brota do chão de barro.
Não adiantava tentar convencer o napolitano. Era um ignorante. Não sabia que esses trocados que havia conseguido ganhar com a construção de Brasília iam acabar e ele voltaria para São Paulo com o irmão sem dinheiro e com muitas dívidas.
Paguei a conta e voltei ao hotel.
***
O suor escorria dissolvendo o pó fino da minha testa. As paredes de madeira do Hotel Souza não barravam o pó que subia na Avenida Central. Passei a noite me revirando com coceira nas costas. Levantei o lençol que cobria o colchão e encontrei alguns percevejos. Rebeca tinha o sono pesado, roncava pelo nariz. Pedi a Zé Carlos um rolo de fumo e espalhei embaixo do colchão, com cuidado para não acordá-la. Quando ela despertou, os percevejos tinham ido embora, mas os pontinhos de sangue já haviam se espalhado pelo seu corpo.
Mamãe contou, sem abrir a porta, que meu pai tinha saído cedo. Fora à sucursal da Última Hora que Samuel Wainer havia acabado de inaugurar em Brasília. Percebi que ela não queria conversa, então a deixei descansar, já bastava Rebeca para me tirar a paciência.
Saí com minha mulher para ela conhecer um pouco da Cidade Livre. Seu rosto estava manchado de poeira ressecada, como uma retirante nordestina que vinha tentar a sorte na nova capital. Ela fazia careta e reclamava de tudo. Do almoço no Bar Itália, emendamos duas sessões no Cine Bandeirantes assistindo ao mesmo filme de faroeste: O Caminho de Oregon. Tínhamos visto uma vez no Palácio da Cinelândia, mas se tornava mais real naquela cidade de madeira e chão de barro.
Retornamos ao hotel no final da tarde com roupas sujas e precisando de um banho. Rebeca se recusou a usar o quarto dos meus pais, preferiu enfrentar a fila do banheiro coletivo. Voltou do banho com o cabelo cheiroso, lavava a cabeça com o mesmo shampoo de mamãe. Estava com um aspecto de limpeza que havia perdido desde que deixara o Rio. Ela se queixou da falta de um espelho no quarto. Não podia fazer nem um penteado. Falei que estava linda, mas não adiantou. Terminou de se arrumar com a cara emburrada.
Também não me sentia animado para ir às festividades da inauguração. Achava uma traição a Carlos Lacerda. Combatemos na Tribuna da Imprensa a transferência da capital quase que diariamente. Tínhamos a certeza de que Brasília não ficaria pronta no mandato de Juscelino Kubitschek, o problema ficaria para o governo seguinte. Após percebermos que a mudança seria inevitável, apostamos que a cidade seria um grande desastre para o país, pois as obras arquitetadas por Oscar Niemeyer não durariam muitos anos, e os políticos não se adaptariam à região. O retorno da capital ao Rio de Janeiro seria inevitável.
O culpado pela minha vinda era meu pai. Ele tinha acompanhado a construção da cidade com Samuel Wainer e se empolgava. Disse que eu não podia perder a oportunidade de presenciar a história acontecendo em tempo real. Segundo ele, Brasília representava um novo começo para o país. Um Brasil grande, ocupando todo o seu território, sem deixar espaço para a espoliação dos americanos. Outras Brasílias surgiriam depois da nova capital com o crescimento na região.
Rebeca se animou assim que lhe contei da proposta de meu pai. As amigas dela só falavam em conhecer as obras de Oscar Niemeyer, que viam apenas nas fotos da revista Manchete. Expliquei-lhe que isso poderia me trazer complicações com meu patrão, mas não adiantou. Quando ela colocava uma coisa na cabeça, ninguém conseguia tirar.
Meu pai chegou no início da noite à Cidade Livre dirigindo um jipe da Última Hora. Tomou um banho rápido, vestiu um terno surrado e nos apressou para irmos à missa de Ação de Graças na Praça dos Três Poderes. Não sabia a razão do seu entusiasmo, porque nunca fora religioso e costumava me recriminar por frequentar a igreja.
Mamãe passou o caminho calada, meu pai arriscava algumas palavras, mas não encontrava reciprocidade na conversa. Havia buracos nas pistas, muitos ocultados pela lama. A cidade seria inaugurada sem que tivesse a mínima estrutura. Passamos por centenas de pessoas acampadas em barracos de lona, algumas instaladas em caminhões. Famílias cozinhavam em volta de fogueiras e de fogões de uma boca. Em vez de criticar a miséria, meu pai falava no esforço daquela gente para conhecer a nova capital.
A Esplanada dos Ministérios estava cheia de carros, caminhões, ônibus e uma multidão andava a pé. Meu pai estacionou o jipe a cerca de dois quilômetros da Praça dos Três Poderes. Estava escuro, com pouca iluminação. A avenida era larga, com um grande canteiro central. Seguiam prédios semelhantes nos dois lados, quase todos inacabados. Conseguimos avistar as duas torres do Congresso Nacional. À medida que nos aproximávamos, era possível ver os detalhes, a rampa central e duas abóbodas: uma virada para cima e outra para baixo. Tudo muito simétrico, não parecia aquela bagunça arquitetônica do Rio de Janeiro.
A Praça dos Três Poderes não tinha monumentos, era um grande vão. Não fora projetada para acolher o povo, pois não tinha uma árvore para a pessoa se abrigar nos dias de sol. As colunas curvilíneas do Palácio do Planalto pareciam velas de pequenas embarcações. Em frente à vidraça do Supremo Tribunal Federal, instalaram um altar improvisado, com todos os instrumentos necessários para realizar a missa.
A praça parecia cada vez mais cheia. Ficamos próximo ao Congresso, onde se reuniam alguns políticos e conhecidos. Meu pai se encontrou com Samuel Wainer e ficou ao lado dele. Deixei Rebeca com mamãe e fui falar com Castelinho, jornalista da revista Cruzeiro, e com Fábio Mendes, repórter do Correio da Manhã.
– Enviei para a redação do Correio da Manhã uma entrevista com João Agripino. O deputado chamou Brasília de pandemônio – disse Fábio Mendes. – Reclamou que não tem telefone nos apartamentos, energia pros elevadores, toalha de banho, falta tudo. Disse que teve deputado que quase foi às vias de fato com outro por causa de um colchão.
– A transferência atabalhoada da capital foi uma grande irresponsabilidade. Estou dividindo um apartamento em péssimas condições na Quadra 108 Sul com José Aparecido, Paulo Mendes e Geraldo Carneiro. Não tem nada, nem cortina. Ontem a gente acordou com os primeiros raios de sol. Aquele clarão na janela só pode ser a televisão do candango – sorriu Castelinho. – Para completar, as marteladas no apartamento de cima começaram cedo. Essa cidade não serve nem para dormir.
Fiquei calado, tive vergonha de dizer que havia me hospedado na Cidade Livre, onde ficavam os peões.
– O pior é o drama da alimentação. Onde toda essa gente vai comer? – perguntou Fábio Mendes.
– Soube que o Senado vai suspender as atividades a partir de amanhã e só retornará em 1° de junho – disse Castelinho.
– Essa inauguração é só de fachada – eu disse. – Brasília ainda vai se tornar o túmulo de JK, como as obras das pirâmides do Egito foram pros faraós.
A multidão se aproximou do altar, causando um início de tumulto. Juscelino Kubitschek tinha acabado de subir ao altar ladeado pela primeira-dama e por João Goulart. As pessoas queriam um aceno, um sorriso, qualquer sinal de retribuição de carinho por parte do presidente.
A banda de fuzileiros navais começou a tocar. O Cônego Antônio Maria colocou no centro do altar uma Cruz, a mesma que acompanhara a expedição de Pedro Álvares Cabral e que Frei Henrique utilizara para celebrar a primeira missa no Brasil em 1500. Fez-se silêncio na praça.
Os holofotes do exército foram ligados parcialmente com riscos de luz em vários sentidos. O sino começou a badalar. Fora trazido de Ouro Preto. Era o mesmo que havia soado em 21 de abril de 1792 para anunciar a morte de Tiradentes. Estava tudo cercado de um simbolismo que envolvia quase todos. Castelinho, que acabara de criticar Brasília, encheu os olhos de lágrimas. Fábio Mendes também parecia emocionado.
Faltavam quinze minutos para meia noite quando o cardeal Cerejeira iniciou a liturgia católica. Depois saudou a nova capital, o governo e o povo brasileiro. Afirmou que o Brasil era a maior nação católica do mundo, com oito milhões e meio de km quadrados, humanizados e cristianizados.
Dom Hélder Câmara assumiu o microfone. Disse que Brasília era um sonho concretizado e que todos deveriam se esforçar para que o Planalto Central fosse sempre o Planalto da Fé, onde só reinassem Deus, o trabalho e o amor ao próximo. Durante a elevação da hóstia, o sino vibrou e a banda de fuzileiros navais começou a executar o Hino Nacional. Os refletores do Exército iluminaram a praça e o céu de Brasília.
– Peço aos presentes e aos ouvintes das emissoras de rádio que se mantenham atentos – disse Dom Hélder. – Sua Santidade, o Papa João XXIII, tem uma palavra para nos dar direto de Roma, através da Rádio Vaticano.
Era meia noite e quarenta e cinco. Quase todos se ajoelharam, inclusive eu. Meu pai não se vergou ao Pontífice, como se quisesse mostrar para todos que era, como um bom comunista, ateu convicto. Mas não resistiu por muito tempo, mamãe o puxou com tanta força que quase o derrubou.
– Nesta noite em que Brasília está sendo inaugurada, é com o maior júbilo para os nossos corações que apresento a benção para a nova capital.
Tirei o escapulário de Nossa Senhora de Aparecida do pescoço, coloquei entre as palmas das mãos e fechei os olhos.
– Peço a Deus que conceda abundantes graças à nação brasileira, tornando-a cada vez mais forte, grande e livre. Com os meus sentidos votos ao querido povo brasileiro, envio a bênção pontifícia ao excelentíssimo presidente da República, às suas autoridades e aos operários que tanto fizeram para essa grande realização.
Terminada a celebração, caminhei ao lado de meu pai, enquanto Rebeca e mamãe vinham atrás, caladas.
– Viu agora o que Brasília representa pra este país? – provocou meu pai.
– Confesso que fiquei comovido com a missa de ação de graça e as palavras do Papa. Mas pra mim essa cidade continua representando um grande buraco em que o Brasil vai entrar com a mania de grandeza de JK.
– Não vou discutir com você agora. Está contaminado por Carlos Lacerda. Saiba que ele está morrendo de inveja no Rio, doido pra estar aqui, celebrando esse momento com Dom Hélder e o Papa.
– O que mamãe tem? – mudei de assunto – Parece que está com raiva de mim e Rebeca.
Meu pai deu de ombros.
– Não fala com a gente. Está sempre emburrada – insisti.
– Anita escutou sua mulher falando mal da gente no quarto.
– Mas Beca não disse nada. Acho que vocês entenderam errado.
– Escutamos muito bem. Mas não precisa se preocupar comigo, meu filho. Isso é coisa de mulher. Mas sua mãe… você conhece. Ela queria ir embora ontem mesmo da Cidade Livre e voltar pro Rio. Disse que, da próxima vez que falar mal da gente, vai colocar um escorpião na boca de Rebeca pra picar a língua dela.
