O LEGADO DE TARANTINO

A coluna de Narrativas e Depoimentos traz um trecho do inédito O DÉCIMO PRIMEIRO FILME DE QUENTIN TARANTINO, romance de Maicon Tenfen, autor de DINAMENE (Ronin) e da popular trilogia QUISSAMA (Biruta). A partir da promessa real de Tarantino de se aposentar após seu décimo filme, Tenfen criou um enredo em que o cineasta é assassinado, e desaparece o copião de uma 11ª e última película, roubada do cofre onde fora por longo tempo ocultada e guardada. Surge então o rumor de que o filme estaria sendo exibido em sessões clandestinas, organizadas por uma seita dedicada à obra do ilustre diretor, ao preço de três mil dólares o ingresso. A história chega até aqui quando passa a correr na internet que uma das cópias do 11º filme de Quentin Tarantino estaria sendo exibida numa ilha do litoral sul brasileiro.

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Naquela época, por coincidência, a notícia da morte de Quentin Tarantino explodiu nos Estados Unidos. Melville ficou maluco, e eu também, assim como os demais habitantes do planeta, incluindo os amantes da sétima arte, os viciados em fofocas de celebridades ou mesmo aquela parcela um tanto suspeita dos que dizem não se importar com nada. Todos passaram a contribuir para a elaboração de uma série praticamente infinda de especulações. A partir dos primeiros informes da polícia, as redes sociais se viram forçadas a trabalhar com a hipótese de suicídio. O cadáver estava sentado no vaso sanitário, com as calças arriadas na altura dos tornozelos e um buraco de bala no lado direito da cabeça. Embaixo, perto da mão sem vida, encontraram uma colt .45 com apenas uma cápsula deflagrada. Havia um livro aberto no colo do Tarantino, um exemplar do seu romance sobre o veterano da Segunda Grande Guerra que descobre as maravilhas do cinema europeu, obra destruída pela crítica e por muitos fãs do cineasta. O consenso mais ou menos geral é que ele não devia ter se metido com a literatura pura e simples. Seus diálogos eram sempre brilhantes, mas dependiam demais da atuação dos atores, das insinuações da câmera e da trilha incidental. A palavra escrita parecia insuficiente para que atingisse a excelência que o público se acostumou a encontrar em seus filmes.

Pois foi esse livro, ou melhor, a posição em que se encontrava no colo do Tarantino, aberto e sem respingos de sangue, que levou o Departamento de Polícia de Los Angeles a desconfiar que o assassino ou os assassinos montaram o cenário depois do crime. A divulgação de que o HD com as imagens das câmeras de segurança havia desaparecido botou as redes sociais em nova polvorosa, de modo que a possibilidade do suicídio cedeu espaço para as tramas de assassinato. Tarantino morreu no banheiro, o sangue salpicado na parede não deixava dúvidas, ele mesmo abriu e abaixou as calças, o legista e os peritos não encontraram sinais de luta no corpo e no ambiente, mas a verdade é que provavelmente foi obrigado a assumir essa posição pouco soberba ou, mais bizarro, pode ter agido por livre e espontânea vontade, talvez de brincadeira, até sentar-se despreocupado e tomar o tiro na cabeça, já que a hipótese de assassinato pressupunha que a vítima conhecia o executor. Ou executores, outra dúvida que a polícia se recusava a esclarecer. O organismo do cadáver estava limpo, com exceção de vestígios pouco significativos de cocaína. Quanto à divulgação dos fatos, o mundo só podia pegar fogo com a morte do cineasta mais cult da história, e o incêndio persistiria nos meses seguintes porque ninguém queria falar de outra coisa na internet. Detetives e adivinhos surgiam de todos os lados com teorias motivadas pela peça principal do mistério, o cofre, o famoso cofre de Quentin Tarantino, que estava destrancado e vazio, novamente sem sinais de arrombamento.

O próprio Tarantino contribuiu para alçar o cofre à condição de objeto mítico, uma espécie de sacrário de um Santo Graal da cultura pop que traria luz nova ao universo. Passado um ano do lançamento do seu décimo longa, oficialmente o último da carreira, deu a entender que já possuía a cópia finalizada daquele que seria o seu décimo primeiro filme, um projeto mais autoral — “ainda mais autoral?”, perguntaram os repórteres — que só deveria ser lançado depois da sua morte. Peraí, peraí, gritou um jornalista, só um minuto, vamos devagar para todo mundo entender direito. Quentin Tarantino estava afirmando de corpo presente que concluíra um décimo primeiro filme em segredo e que a obra só seria lançada depois que ele morresse, ou seja, daqui a vinte ou trinta anos? Sim, respondia o cineasta, era mais ou menos isso, mas depois ria de um jeito brincalhão e sugeria que tudo poderia ser mais uma promessa aloprada, mais uma que não cumpriria, como produzir uma aventura medieval ou um filme sobre os Vega Brothers. Alguém perguntou se Tarantino pretendia seguir o exemplo de Jerry Lewis com The day the clown cried — pouco antes de morrer, o comediante doou à Biblioteca do Congresso Americano a única cópia do filme jamais lançado sobre um palhaço que atraía crianças judias para a câmara de gás num campo de extermínio nazista. É por aí, brincava Tarantino, com a diferença de que o tema do seu filme era mais bizarro.

Os fãs foram ao delírio. Os desafetos, por sua vez, com destaque para Spike Lee, vieram a público insinuar que só um farsante como Quentin Tarantino seria capaz de aplicar um golpe publicitário tão sem-vergonha, algo planejado durante anos ou mesmo décadas, que começou com a lorota de que faria apenas dez filmes e terminou com o anúncio de uma décima primeira obra automaticamente bombástica. Como era de se esperar, a turma do Spike Lee passou por um linchamento virtual que só se acalmaria na semana seguinte, quando Christian Slater apareceu dizendo que havia participado das filmagens. O mundo caiu sobre o ator, que recuou assustado e evitou revelar o título do filme, embora divulgasse detalhes dos bastidores. Para ter o direito de deixar o copião trancado num cofre, Tarantino teve que agir como Alfred Hitchcock em Psicose: enfiou a mão no bolso e passou o chapéu entre os amigos para levantar os dez milhões de dólares necessários à produção. Muitos famosos seriam vistos na tela, já que o elenco era basicamente formado por amigos do diretor e veteranos interessados em emprestar a face a uma obra de arte. O Filme, a partir de então com maiúscula, ficou conhecido como um projeto independente que contava com recursos limitados e por isso promovia o reencontro do cineasta com a gênese da sua carreira.

Melville acreditava em cada factoide que circulava nas redes sociais, pesquisava como um maníaco e tentava adivinhar qual gênero narrativo o Tarantino havia desconstruído para deixar o resultado trancado num cofre. Eu era mais cético. Achava que o cineasta estava jogando com a mídia, não acreditava que se empenharia em realizar qualquer coisa sem a expectativa de receber a recompensa em vida. Quanto ao Christian Slater, era um pobre diabo que vivia nas sombras porque perdera os holofotes desde que dera um punhado de declarações racistas. Poucas palavras sobre um filme que nascera controverso poderiam proporcionar uma razoável sobrevida à sua carreira.

— E tem outra — eu acrescentava em minhas conversas com Melville. — O Tarantino não podia ser tão burro. Se o Filme é real, por que foi dar o endereço do esconderijo para a imprensa? Não temia que alguém pudesse forçá-lo a abrir o cofre?

— Burro ou não — respondia Melville, catatônico — foi exatamente isso que aconteceu. O assassino roubou o Filme. Ou os assassinos, quem se importa? O Tarantino foi pro buraco mesmo. O que interessa é que o Filme será exibido, Corbucci. Em breve nos cinemas!

Mas os meses se passaram e ninguém deu as caras para anunciar a estreia do Filme, talvez porque ele não existisse, simples assim, ou talvez porque seria apreciado única e exclusivamente pelo latrocida, ou latrocidas, a polícia demorava a se decidir sobre a quantidade de criminosos, até que de repente surgiu um grupo na Deep Web afirmando que estava com o copião. Melville me mostrou a página, que analisei com desconfiança. Não assumiam a autoria do assassinato e tampouco explicavam como o Filme havia chegado a eles, mas garantiam que o material era autêntico e que no devido tempo seria exibido aos seus membros e àqueles que estivessem dispostos a pagar um valor justo pelo privilégio de assistir à última obra do Cânone, de todas a melhor, repleta de referências e viradas radicais, uma obra verdadeiramente “artesanal”, palavra que se tornou recorrente a partir de então. Admitiam que formavam uma seita dedicada ao culto tarantinesco, ritual celebrado em segredo, que sua existência datava de muito antes da morte do cineasta e que estavam ramificados em nove países, Brasil incluso, embora com poucos adeptos, sendo que a maior parte das atividades do grupo ocorria, por ordem decrescente de importância, nos Estados Unidos, na Itália, na Espanha, na França, no México, na Polônia, na Turquia e na ex-colônia portuguesa de Macau.

— Seita? — comentei com o Melville. — Transformaram o Tarantino num deus?

— Gostam de idolatria — disse ele. — Reparou que quase todos os países são católicos?

Afastei-me um pouco do assunto e passei a acompanhar as investigações do assassinato com interesse controlado. Tinha outras coisas para fazer, trabalhava para que ninguém mais lesse Fronteiras da Escuridão, detestava a ideia de que relacionassem o autor ao “escroto” do vídeo viralizado. Mesmo assim, sempre por intermédio do Melville, acompanhava as ações dos Cães de Aluguel, como a tal seita foi apelidada na Deep Web, talvez porque usassem a antiga logomarca da Band Apart em seus comunicados. Enquanto a polícia de Los Angeles patinava sobre pistas folclóricas ou meramente fantasiosas — mestres do Jeet Kune Do mataram Tarantino para se vingar da forma caricatural com que Bruce Lee foi retratado em Era uma vez em… Hollywood! —, os Cães de Aluguel da Deep Web continuavam se organizando para enviar cópias do Filme a cada um dos países em que eram atuantes. O material seria distribuído unicamente em película e exibido apenas em sessões privadas com projetores de 35mm, máquinas que os integrantes locais estavam encarregados de providenciar. Nada seria digitalizado, nada cairia na rede, nem mesmo para divulgação, ninguém teria acesso a uma única cena sem pagar o preço devido. Isso queria dizer que as dezenas de filmes antigos ou mambembes que apareciam no YouTube “written and directed by Quentin Tarantino” não passavam de falsificações oportunistas.

— Que é isso, Melville? Vai engolir essa história?

Ele desconversava porque já havia caído no abismo sem fundo do fanatismo. Botou na cabeça que os fatos eram reais e que não descansaria enquanto não se sentasse diante de uma tela para assistir ao Filme. Quase recobrou o juízo ao ler parte de um roteiro vazado na internet, o primarismo dos diálogos provava que era falso, mas enlouqueceu novamente ao ouvir rumores de que sessões fechadas de cinema estavam ocorrendo na Ilha ao custo de três mil dólares o ingresso.

— Na Ilha, Corbucci, na Ilha! Menos de duzentos quilômetros de distância.

— Três mil dólares? É mais do que consegui pelo meu carro.

— Empresta?

— Não quero perder a grana, nem a nossa amizade.

— Mas eu preciso…

— Desculpa, cara, nenhum filme vale tanto, nem o décimo primeiro do Tarantino.

Os rumores cresciam dentro e fora da Deep Web. Falavam do conteúdo do Filme e das cenas à Tarantino, confirmavam a presença de Christian Slater no elenco e denunciavam a ausência de legendas na única cópia que veio para o Brasil, mas falavam sobretudo e com exagero do esquema de segurança que acompanhava as sessões, das trocas de endereço a cada exibição, da revista pela qual passava o diminuto público pagante e do espertinho que foi brutalmente espancado porque entrou com o celular na cueca e tentou filmar a tela. Apesar de todos esses alertas, Melville cometeu o mesmo erro de muitos dos aficionados que não tinham três mil dólares para dar em troca de algo que bem podia ser uma farsa: tentou se tornar membro da autodenominada seita que possuía o Filme e encontrou os dois psicopatas que lhe amputaram o mindinho da mão direita.