O MELHOR AMIGO DO AGENTE

Pouca gente sabe, mas há momentos em que os tradutores atuam como os melhores parceiros do agente literário. Vejam o caso de Rahul Bery, que acaba de finalizar uma elogiada tradução do thriller feminista de Simone Campos, NADA VAI ACONTECER COM VOCÊ, que será lançado pela charmosa editora britânica Pushkin em 2023. Por encomenda de um escritório de scouts, que são os olheiros do mercado editorial internacional, Rahul leu A MALDIÇÃO DAS FLORES, romance de Angélica Lopes a sair em breve pela Planeta, já vendido para Mondadori na Itália e para a Porto em Portugal: ele se encantou tanto pelo livro que seu relatório vazou e foi assunto de editores e co-agentes da VB&M na última Feira de Londres. Sem falar que há anos ele faz uma campanha ainda sem resultados pela obra de José J. Veiga na Grã-Bretanha – a tradução inglesa da Knopf publicada nos anos 1970 está fora de catálogo. Filho de pai inglês e mãe indiana, dele disse o renomado tradutor Caetano Galindo, quando se conheceram em Paraty em 2014: tem pinta de brasileiro, nome de brasileiro – Raul –, mas é britânico mesmo. Rahul Bery estudou para ser professor de escola média, mas a pedido de um amigo editor, começou a traduzir textos para The White Review, depois fez cursos de tradução para o português e, em 2019, uma residência na British Library. Mas para Bery, apaixonado pela música brasileira, seu melhor professor de português foi Jorge Ben Jor. Na Conversa Com (A) Gente, ele reflete sobre a expectativa de que, para gerar interesse dos editores e garantir bolsas de tradução, todo livro brasileiro precisa agora ser escrito por autoras e autores negros, ou LGBT+, o que seria justíssimo, mas tem o preço de tornar quase impossível colocar nas livrarias até uma obra clássica, subversiva e politicamente essencial como a de José J. Veiga.

VB&M: Poderia contar um pouco sobre a história da sua relação com a literatura brasileira?

RB: Minha relação com o país inteiro foi construída sobretudo através de sua literatura e música; infelizmente tenho viajado pouco pelo Brasil. Primeiro descobri o tropicalismo, depois artistas como João Gilberto e, sobretudo, o grande Jorge Ben Jor. Lendo sobre o tropicalismo, fiquei com muita vontade de ler os modernistas brasileiros e, por isso fiz umas aulas em Londres, um curso voltado para pessoas que já falavam espanhol. E nunca mais parei.

VB&M: Como foi a experiência de traduzir NADA VAI ACONTECER COM VOCÊ, da Simone Campos?

RB: Muito divertida! Foi minha primeira experiência com literatura policial, embora o livro da Simone seja muito original e transcende tal gênero. Gostei de traduzir os monólogos de Viviana e Lucinda e também fazer pesquisas sobre a cultura popular brasileira nos anos 90. Foi um prazer trabalhar com a Simone — fala inglês perfeito e traduz para o português. Ela leu a tradução e seus comentários foram indispensáveis.

VB&M: O que o encantou tanto em A MALDIÇÃO DAS FLORES, da Angélica Lopes?

RB: Não é o tipo de romance que eu leria normalmente; li o livro por indicação de um scout literário. Mas achei a história das Flores tão fascinante e original, e a escrita da Angélica tão excelente – dá para ver que ela é roteirista – que fiquei totalmente absorto pela experiência. Também achei interessante o que Angélica diz no epílogo sobre como ela utilizou detalhes históricos para enriquecer uma história essencialmente ficcional (para mim, a palavra história sempre sugere history e não story).

VB&M: Quando e como (porque definir o que se vai ler também tem uma história) você descobriu José J. Veiga?

RB: Por pura casualidade. A Companhia das Letras mandava newsletters com todas as novidades nacionais e pedi um exemplar de DE JOGOS E FESTAS. Gostei muito, especialmente do conto “Quando a terra era redonda”, e por isso pedi a reedição de SOMBRAS DE REIS BARBUDOS. Li quase de uma vez só, ou rindo ou chorando o tempo todo. Isso foi entre 2017 e 2018, no período Brexit-Trump-Bolsonaro, e a visão de Veiga me pareceu tão atual, tão profética, especialmente a ideia de que o poder mais absoluto vem não de um governo mas de uma corporação. Fiquei fascinado por seu uso do humor, sem perceber inicialmente que o uso de ironia, humor e alegoria foram ferramentas essenciais para qualquer escritor durante a ditadura. O romance é um testamento ao poder da literatura e vai muito além de uma simples alegoria política. Nas palavras do mestre: “O meu projeto era mostrar situações mais profundas do que aquelas impostas por um governinho de generaizinhos cujos nomes a nação depressa esquecerá.”

VB&M: Como você explicaria a dificuldade de se encontrar editor fora do Brasil para um autor tão canônico e atual?

RB: Como já disse, a obra de JJV é incrivelmente relevante à situação contemporânea, não apenas no Brasil mas em outros países em que a democracia se vê ameaçada – Turquia, Índia, Hungria, Polônia, até o meu, Reino Unido – e já sei que, por exemplo, SOMBRAS foi editado recentemente por uma editora turca, e que seus livros eram bastante populares nos anos 1980 na Europa Oriental. Além disso, já existem traduções inglesas de A HORA DOS RUMINANTES e A ESTRANHA MÁQUINA EXTRAVIADA, atualmente fora de catálogo. Esses dois títulos foram editados nos anos 1970, imagino como exemplos de realismo mágico na sequência do sucesso de outros escritores latino-americanos como Gabriel García Márquez e Julio Cortázar. Hoje em dia, acho que seria fácil categorizá-lo como um “realista mágico” brasileiro sem ver o lado mais político e subversivo da sua obra. Veiga também escreve numa prosa bem simples, não obviamente experimental. Um leitor anglófono que conhece literatura brasileira através de Clarice Lispector, Hilda Hilst, Mario de Andrade e Guimarães Rosa, vai ficar um pouco surpreso pela prosa aparentemente simples do Veiga. Outro fator é a questão da representação. Livros brasileiros em tradução são uma fração minúscula do mercado, e há um desejo crescente por vozes diferentes, de autoras e autores negros, queer, indígenas, etc, especialmente quanto a programas para financiar traduções, como o Pen/Heim. Sou a favor de tudo isso, claro, é muito importante ler essas vozes, mas a desvantagem é que uma voz como a de Veiga, tão atual e relevante, sem mencionar divertido e engraçado, se ouve menos.

VB&M: Você traduz outros idiomas? Traduz literatura portuguesa?

RB: Traduzo, sim, de espanhol. Meu projeto agora mesmo é um romance espanhol, coisa muito comercial! Na página, os dois idiomas são muito parecidos, ainda mais quando falados, especialmente a variedade falada por nossos amigos portugueses! De fato, a minha única tradução de português já publicada é lusitana, do prolífico Afonso Cruz, experiência de que gostei muito. Também traduzi uns contos de sua amiga e contemporânea Patrícia Portela, mas até hoje ainda não encontramos editora para um livro dela.

VB&M: Quais as diferenças de dicção e sintaxe entre as literaturas brasileira e portuguesa que determinam diferentes atitudes do tradutor diante do texto?

RB: Pergunta muito interessante. De um lado, acho textos brasileiros mais fáceis, no sentido de que a gramática é normalmente mais simples, vocês usam menos pronomes, não escrevem coisas como falar-te-ei ou deu-mo. De outro lado muitos autores portugueses escrevem uma linguagem mais clássica, enquanto um escritor brasileiro vai empregar mais linguagem informal, gíria, palavras estrangeiras. O romance da Simone é um bom exemplo; ela usa gíria e outras expressões muito brasileiras, às vezes coisas datadas, dos anos 90 por exemplo. E empréstimos linguísticos do inglês, que apresentam um desafio particular para um tradutor inglês: as palavras brasileiras ‘box’ e ‘top’, por exemplo, não são sinônimos das palavras inglesas. Têm usos específicos. Quanto às diferenças acerca de como traduzir, não sei; até agora ainda não traduzi uma cena em que um brasileiro fala com um português. E ainda há a questão da literatura luso-africana. Acabo de ler um romance de Yara Monteiro, no qual ela usa muitas palavras kimbundus, um português muito angolano.

VB&M: Para um leitor de língua inglesa disposto a ler um único autor brasileiro, quem você indicaria?

RB: É uma pergunta muito difícil e ao mesmo tempo bem fácil. Parece óbvio, mas tem que ser Machado de Assis. Ele é sui generis, e ainda não suficientemente lido no mundo anglófono, especialmente comparado com seus contemporâneos anglófonos, franceses e russos. Em 2020 ganhamos duas traduções novas de “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, então não há mais desculpa.

VB&M: De todos os profissionais que trabalham com o livro, você diria que o tradutor é o mais apaixonado e abnegado?

RB: Haha, depende do tradutor, e do livro! Eu adoro a literatura em geral e a literatura brasileira/lusófona em particular, mas não adoro todos os livros igualmente. Literatura boa pode ser bastante fácil de traduzir; e literatura ruim pode ser, geralmente é, um pesadelo de traduzir. Oxalá pudesse sempre escolher quais textos vou traduzir. Sou um profissional; sempre preciso de trabalho. Embora eu sempre trate de criar um bom texto em inglês, não vou apaixonar-me e abnegar-me por qualquer coisa. Deve ser muito especial!