O REVIDE DA GEOGRAFIA NA UCRÂNIA

A coluna Narrativas & Depoimentos desta quarta-feira cinzenta pela morte de civis e crianças na Ucrânia traz um trecho adaptado do best-seller THE REVENGE OF GEOGRAPHY, do pesquisador e pensador geopolítico Robert D. Kaplan, em tradução de Yasmin Ribeiro. Desde o início deste século, Kaplan martela a ideia do ressurgimento das tensões históricas e culturais temporariamente suspensas durante a Guerra Fria. A invasão cruel e vil da Ucrânia pela Rússia está aí para provar que ele vinha atirando na mosca. Com esse título tão sugestivo, A VINGANÇA DA GEOGRAFIA ainda está inédito no Brasil.

A crise na Ucrânia levou o mundo de volta ao sulco histórico estabelecido em agosto de 1914. A Primeira Guerra Mundial teve grandes batalhas territoriais entre Alemanha e Rússia. O front mais sangrento na Segunda Guerra também foi no Leste, mais uma vez entre Alemanha e Rússia. Durante a Guerra Fria, a Europa Ocidental e os Estados Unidos enfrentaram a Rússia sob a União Soviética. Agora, a Europa e os EUA enfrentam a Rússia novamente.

Há pouco mais de um século, o brilhante historiador americano Henry Adams afirmou que o problema central da Europa foi e sempre seria a Rússia: como, em última instância, integrá-la de vez à “Junta do Atlântico”.

Literalmente, nada mudou. Em seu famoso ensaio de 1904, “O Pivô Geográfico da História”, o grande geógrafo britânico Halford Mackinder disse que o pivô sobre o qual se mantém o destino da geopolítica mundial reside no coração do continente eurasiano, vagamente identificado como a região da Ucrânia, uma vasta área localizada entre as esferas de influência da Europa e da Rússia. Em seu livro de 1919, “Ideais democráticos e realidade”, Mackinder declarou que a batalha entre a Alemanha e a Rússia, e, por extensão, entre a Europa Central e a Rússia, não foi decidida pela Primeira Guerra Mundial. Com isso, Mackinder previu virtualmente a Segunda Guerra e a Guerra Fria. O drama geopolítico sobre tal área central foi crítico para o destino do que Mackinder chamou de “Ilha-Mundo” afro-eurasiana, essencialmente o Hemisfério Ocidental. E o único a competir com a centralidade da “Ilha-Mundol” foi seu “satélite” norte-americano, isto é, os Estados Unidos.

Essa, porém, não é a história toda. Mackinder foi seguido por outro grande pensador da Geopolítica, o estrategista holandês-americano de Yale, Nicholas Spykman. Em 1942, Spykman propôs o que veio a ser conhecido como a tese da Linha Periférica, que sugeria que, em vez do centro do supercontinente eurasiano, eram as costas e o perímetro da Eurásia — principalmente a Europa e a Ásia Oriental — que constituíam as bases do poder geopolítico.

Junte as duas teorias e você terá a crise atual: o satélite norte-americano e o perímetro da Europa e da Ásia Oriental versus a grande potência da Rússia e da China, com a Ucrânia como o pivô e o ponto de partida dessa grande disputa. Desde 1914, essa rivalidade foi interrompida pelo enfraquecimento da Rússia, que se seguiu à queda do Muro de Berlim, o que deu aos europeus uma falsa sensação de segurança nos anos 1990. Essa interrupção foi rapidamente seguida por outra, o falso alarde do 11 de setembro, que levou os Estados Unidos a acreditar que o terrorismo islâmico era o principal perigo geopolítico, quando na verdade a Rússia e a China já estavam se reerguendo.

Com a volta ao sulco histórico criado em agosto de 1914, é a Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) que agora emerge em primeiro plano. A OTAN, que se expandiu para incluir boa parte da Europa nos anos 1990 e se tornou problemática durante a Guerra ao Terrorismo, une a Europa em oposição à Rússia. A Alemanha, que se vê entre o Oriente e o Ocidente e está desesperada para acabar de uma vez por todas seu histórico de guerra com a Rússia, é o ponto de interrogação fundamental da OTAN. A Rússia busca solapar a unidade da OTAN provocando a Alemanha com a isca do gás natural. A luta pode ser na Ucrânia, mas a batalha estratégica por trás disso é sobre o destino da aliança ocidental e da linha periférica europeia. Se a OTAN se fraturar de alguma maneira, será uma vitória para o presidente Vladimir Putin, não importa o quão caótica se torne a situação na Ucrânia. Manter a OTAN unida durante a Guerra Fria foi mais fácil porque a Europa praticamente não tinha comércio com a União Soviética, e em vez disso, enfrentava o espectro de uma guerra termonuclear. Mas agora, numa era de globalização, com a Europa integrada economicamente tanto com Rússia como com China, alianças são empreendimentos muito mais arriscados.

Já se a OTAN se mantiver firme, sejam quais forem as vicissitudes dessa crise, então o perímetro europeu e seu satélite norte-americano podem eventualmente triunfar. Um drama semelhante está se desenrolando no Oriente, onde a China tenta minar as alianças de tratados individuais dos Estados Unidos no Pacífico ocidental. Taiwan é a linha periférica da Ásia Oriental que equivale ao pivô ucraniano e, se em algum momento se tornar óbvio que Taiwan não pode ou não será defendida pelos Estados Unidos, então todos os aliados americanos, do Japão ao norte até Cingapura no sul, começarão a fazer acordos paralelos com a China. Esse processo pode ocorrer fora das manchetes, mas, mesmo assim, comprometerá o comando do satélite norte-americano sobre o perímetro do leste asiático.

Essa disputa global pode não ser decidida nos próximos dias ou semanas enquanto a crise na Ucrânia (e, por extensão, a crise em Taiwan) naturalmente tiver suas fases sucessivas e prolongadas. Outras regiões ajudarão a afetar o resultado. O Oriente Médio – em virtude das operações navais de longa data dos Estados Unidos no Golfo Pérsico e das atividades da China para estabelecer o comércio, a energia e os centros logísticos para a Nova Rota da Seda (o BRI – Belt and Road Initiative) em toda a Península Arábica e o Levante – constituirá uma extensão da rivalidade entre o centro e o periferia. Afinal, a Nova Rota da Seda é a tentativa da China de se tornar tanto um poder central, o que já é, e um futuro poder de perímetro ao dominar o Oceano Índico. Qualquer cataclismo político dentro do Irã, localizado entre o coração da Ásia Central e a região do Golfo Pérsico, será crucial para este drama.

Lembre-se que não foi um evento internacional que com a Guerra Fria, terminada por sua vez em função de políticas domésticas. A União Soviética começou a desmoronar de dentro para fora no final dos anos 1980. Essa última fase da batalha entre o centro e o perímetro poderia, em algum futuro próximo, se concluir de maneira semelhante. Tudo pode depender da relativa saúde doméstica da Rússia, China e das nações do Ocidente. As tensões políticas entre as sociedades ocidentais estão expostas; aquelas entre a Rússia e a China são mais opacas, porque as duas são sociedades autoritárias. Neste momento, entretanto, muito vai depender da OTAN e do grau de unidade momentânea que essa aliança de países conseguirá manter.