O SEGREDO DA TERRA SEM MALES

Maria José Silveira, autora de MARIA ALTAMIRA (Instante) e A MÃE DA MÃE DE SUA MÃE E SUAS FILHAS (Globo), assina a coluna Narrativas e Depoimentos desta semana com trecho de seu romance inédito TERRA SEM MALES. A obra, que já foi tema de Vídeo-Resenha neste blog, é ambientada em um Brasil mítico e atemporal, anterior à chegada dos portugueses. Permeada por referências ao folclore brasileiro, ao respeito ao meio ambiente, à força e ao poder do feminino, e ao impulso destruidor do imperialismo, a narrativa de fantasia e aventura faz uma profunda homenagem aos nossos povos originários e clama para que escutemos e apreendamos sua sabedoria.

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A aldeia parece deserta. Todos já se recolheram. Alguns casais ainda brincam por ali. Logo também pegarão no sono. Só o Mais Velho e Li, sentados na maloca, fumam o longo retorcido e ancestral cachimbo sagrado.

Li dá uma tragada, prende a fumaça até seu limite e a solta em exalações curtas, vendo-a subir em círculos que se alargam e se ampliam em outros círculos cada vez mais finos até desaparecer no alto. Passa o cachimbo para o velho.

– Há algo que não entendo – ela diz. – Quem espalhou que a Terra sem Males tem um grande segredo?

– A incompreensão.

Li aguarda que o Mais Velho continue, o que ele faz.

– Muitas pessoas, quando não conseguem entender alguma coisa, criam outra no lugar. Incapazes de entender que uma terra sem males, onde a comida é farta, o povo vive livre com alegria e amor, é o que todas as terras seriam se os povos não as transformassem no que agora são. – Rugas fundas em sua boca sem dentes se afundam ainda mais quando ele traga o cachimbo e solta a fumaça, que faz o mesmo movimento em círculos que se ampliam e se afinam até desaparecer no alto da choupana. A diferença é que a fumaça dele é absolutamente branca, a de Li, cinza. – É nos sonhos que a Terra sem Males existe, e no que fazemos para realizar o que sonhamos. Mas essas pessoas acham que não pode ser apenas isso. Acham que existe um lugar e que há um segredo, e não um comportamento para se chegar lá.

– Mas o que eles acham que esse segredo contém? – Li solta os círculos de sua fumaça cinza.

– Isso lhes perguntaremos no dia que chegarem. Um dia chegarão. Não sei se agora. Mas um dia chegarão. E tomarão o que temos. Nos massacrarão. Nos expulsarão. Dirão que esta terra não é nossa. E, quando nada mais do que é nosso restar, eles nos desprezarão.

Na rede no fundo da tenda, um calombo se vira, abre um dos olhos, respira contente a fumaça, e volta a dormir. Outro calombo parece estar mais fundo na rede, mas não se pode ter certeza.

– Tento imaginar o que eles pensam – continua o Velho. – O que cobiçam. O que precisam ter. Como se fosse algo que, se não tiverem, o que eles já têm, mesmo sendo muito, perde o valor. Se eu conseguir entender o fundo do que eles desejam, talvez consiga convencê-los de que não somos uma ameaça.

As baforadas continuam e os círculos da fumaça se ampliam na escuridão da noite, envolvendo a aldeia na paz noturna onde todos já repousam, exceto o Mais Velho e sua discípula. Eles escutam o coaxar de sapos, os ruídos dos insetos e aves noturnas, o voo do morcego branco, as ondas do ar deslocado pelos animais que se movem à noite, as folhas e galhos crepitando ao vento, as águas despencando nas cachoeiras e cataratas, os estalidos da descarga elétrica do poraquê nas cabeceiras do rio, as ribanceiras de argila vermelha deslizando com um glupt surdo nas águas barrentas, e sentem os cheiros da terra, da mata e da noite.

A floresta nunca dorme. Os xamãs e seus discípulos também não.