O SONHO BRASILEIRO DE NAPOLEÃO

Luciana Villas Boas

Napoleão Bonaparte quis invadir o Brasil. Ao longo de décadas, entre 1796 e 1808, encomendou a seus generais 16 planos de invasão de diferentes pontos do território brasileiro, uma cobiça totalmente ignorada pela historiografia, por estudiosos e pelos infindáveis leitores apaixonados pelo período napoleônico. Conversa Com (A) Gente o historiador, professor universitário e jornalista Marco Morel, autor de variada obra de não ficção histórica, cujo novo projeto, O DIA EM QUE NAPOLEÃO QUIS INVADIR O BRASIL, revelará e destrinchará precisamente esses 16 impressionantes sonhos de ataques militares da França visando a tirar de Portugal sua mais preciosa colônia . Montado sobre vasta documentação que foi obtendo passo a passo em diferentes bibliotecas e arquivos civis e militares da França, Marco Morel, velho e apaixonado farejador de documentos raros, com o “goût des archives”, como dizem os franceses com propriedade, fala sobre sua pesquisa; delira sobre o que poderia ser o Brasil caso um único dos planos dos generais de Napoleão tivesse dado certo; comenta sua carreira como jornalista, escritor e acadêmico; e reflete sobre as obras fundamentais para sua formação como leitor e ser humano. Ao final, a propósito do Brasil de hoje, reafirma a importância do conhecimento histórico para iluminar o presente: “Na medida em que pudermos conhecer melhor nossa história, de maneira crítica, criativa e rigorosa, mais teremos chances de acender uma luz no fim do túnel. ‘Quanto mais se partir tempos afora, mais nos tempos de agora se estará’, como canta o poeta Paulo César Pinheiro. Apesar dos desenganos e dos pesares, o princípio esperança continua.” O blog VB&M ainda conseguiu do autor a reprodução de um dos documentos que guiarão sua exposição sobre a cobiça napoleônica do Brasil: o plano do Capitão de Fragata Antoine Marie Montalan, enviado a Napoleão Bonaparte e datado de 20 de agosto de 1800, de invadir Cabo Frio e o Rio de Janeiro.

VB&M: Como você descobriu o olho grande de Napoleão Bonaparte sobre território do Brasil no período entre 1796 e 1808?

MM: Foi uma surpresa bem agradável encontrar o material. Eu estava zapeando on-line em arquivos franceses e comecei a farejar algo diferente… Napoleão Bonaparte é uma figura histórica, lendária e mitológica a nível mundial, mas sua relação com o Brasil é tênue. Eu já transito nesse período de finzinho do século XVIII e começo do XIX faz uns 40 anos, o que traz uma certa familiaridade. Dá para identificar o que é conhecido ou não. Meus Mestrado e Doutorado se passam aí. Sobretudo Brasil, mas também as conexões francesas. Dos meus 14 livros, oito se passam só na primeira metade do século XIX. Quanto aos planos napoleônicos de invasão, é uma documentação completamente inédita, com exceção de um deles, sobre o qual eu mesmo já havia publicado, mas parcialmente. Há dois artigos acadêmicos franceses antigos que citam rapidamente 10 desses planos, sem analisar. Encontrei mais seis projetos nunca referidos antes. Aí fui atrás da documentação, com o intuito de fazer um livro. O que, confesso, é prazeroso, pois sou daqueles que tem o gosto dos arquivos, le goût des archives, como dizem os franceses. Para mim continua sendo a melhor fonte de inspiração. E tenho feito toda pesquisa sem sair de minha casa no Rio de Janeiro, só por internet (mas não só pelo Google), em tempos de pandemia e pandemônio.

VB&M: Como você explica que uma documentação tão vasta como essa sobre a qual está trabalhando tenha permanecido em sua maior parte virgem de manipulação visando a livros e teses?

MM É uma questão de liberdade de olhar, em primeiro lugar. Em segundo, a liberdade (e até um certo gosto) de transgredir repertórios de conhecimento já estabelecidos, embora para isso seja preciso conhecê-los. A transgressão é uma necessidade nos tempos em que vivemos. Transgressão mesmo, não autorizada. Eu fiquei perplexo com a grandeza dessas fontes e com o desconhecimento sobre elas. Tais projetos estão esparsos em arquivos civis e militares franceses, não formavam um conjunto e não aparecem com esse título. Acabei invertendo minha perspectiva: em vez de olhar a partir do Brasil para a França, olhei de lá para cá. O que eles pretendiam aqui? A princípio era um tema que não existia, pois, Napoleão nunca teria tentado invadir o Brasil… O repertório estabelecido diz que ele invadiu Portugal, levando a Corte Real a fugir para o Rio de Janeiro. E pronto! Além do mais, há um ranço empírico: se Napoleão nunca invadiu o Brasil, como fazer um trabalho sobre algo que não houve? Então eu acho que o ideal, no trabalho do historiador, é equilibrar sensibilidade, criatividade e bastante rigor. E muita curiosidade também. A curiosidade é um motor vital.

Três páginas de oito do projeto do Capitão de Fragata Antoine Marie Montalan para invadir Cabo Frio e Rio de Janeiro, enviado ao Primeiro Cônsul Napoleão Bonaparte em 20 de agosto de 1800. Foto: Marco Morel.

VB&M: Foram 16 planos de invasão de território brasileiro, todos fracassados. Vez por outra você se pega pensando como seriam a história e a sociedade brasileiras se um desses planos tivesse dado certo?

MM: Pois é, foram 16 planos de ataque, invasão e conquista que visavam ao chamado continente brasileiro, do Amazonas ao Rio Grande do Sul, passando por Pernambuco, Bahia, Rio de Janeiro e Mato Grosso. Alimentados pelo próprio Bonaparte ou por forças napoleônicas, como oficiais militares, almirantes e generais. Apenas um veio de personagem civil, de um militante jacobino que pretendia tomar de assalto o Brasil e fazer terra arrasada, com pilhagens e degolas. Imaginar um Brasil francês é instigante… A cristalina aguardente de engenho estaria ao lado do rubro vinho Bordeaux na hora do brinde? Cozido à portuguesa e pot-au-feu se fundiriam? Águia imperial e carcará sertanejo disputariam espaços aéreos? As mulheres rendeiras teceriam tapetes Gobelins? O Sena desaguaria no rio São Francisco?!… Mas sem ilusões: o Brasil francês inicialmente continuaria marcado pelo trabalho escravo, exportação de produtos e por uma política modernizante e militarizada, com toque liberal. Dois dos planos estiveram mais perto de dar certo: o do capitão Larcher na Bahia na época da Conjuração Baiana e um do próprio Napoleão para o Rio de Janeiro em 1800. Ele chegou a autorizar a partida da frota para cá, mas… no livro eu conto o resto. O que teria acontecido se apenas um desses planos desse certo é imprevisível, possivelmente não existiria hoje o maior país da América do Sul.

VB&M: Como é possível explicar tal fracasso militar em contraposição à grande influência cultural da França no Brasil, que persistiu até quase meados do século passado? Quais seriam os marcos temporais mais importantes da história das relações franco-brasileiras?

MM: A França, enquanto metrópole europeia, sempre teve um acentuado apetite pelo Brasil. No século XVI, antes de tentar a aventura parcialmente bem-sucedida no Caribe, a França investiu no Brasil, ocupando Rio de Janeiro e Maranhão. Acho equivocado falar de “invasão francesa” nesses casos, pois o território ainda não era português. Aliás, o equívoco mais grave é falar em Descobrimento, pois os europeus em geral foram invasores em relação aos povos que aqui já estavam. Desde o século XVIII até meados do XX, a França teve um papel de “Pátria das Luzes”, referência cultural e civilizatória para o Brasil, e não só aqui. Napoleão quis dominar o mundo e não teve forças para tal, por isso não chegou até o Brasil. Mas vontade não faltou. E o principal empecilho foi a partilha do mundo entre as potências, quando Portugal e Brasil faziam parte da esfera britânica, cuja poderosa esquadra impediu ou desestimulou a conquista gaulesa em nosso grande país tropical. Ou seja, a França não se tornou metrópole econômica e política para o Brasil, mas “metrópole cultural”, o que não era pouca coisa. Os franceses queriam mais e o próprio Napoleão teve consciência disso na época: o predomínio francês, no final das contas, seria mais cultural do que militar e econômico, pelo mundo afora.

VB&M: Você é historiador de formação, mas teve longa carreira na imprensa, assim como seu avô, Edmar, e seu pai, Mario, que também misturaram as duas atividades, a escrita da História e o jornalismo. Na sua produção bibliográfica, você diferencia o que é jornalismo/reportagem do que é propriamente história/historiografia? Quais são os critérios que separam uma atividade da outra na escrita da não-ficção narrativa?

MM: Pertenço à terceira geração de jornalistas e como meu avô começou a trabalhar na década de 1920, isso já soma um século! Mas na minha vivência pessoal, convivendo nos dois mundos, cheguei a algumas conclusões. Dos meus 14 livros, três foram escritos como jornalista e os demais como historiador. Acho que jornalismo e historiografia são dimensões diferentes, embora tenham pontos em comum. Individualmente, um jornalista pode fazer um bom trabalho de história e um historiador pode fazer um bom trabalho jornalístico. Mas são métodos, abordagens, teorias, repertórios e campos de atuação diferentes. Requerem formação específica e desempenho em áreas próprias. Como disse o Pierre Bourdieu, quando um intelectual acadêmico abre mão de parte de seus conhecimentos e análises para simplificar sua abordagem e tentar alcançar as massas, todos saem perdendo. Da mesma forma, acrescento, quando um jornalista, sem bagagem e formação necessária, adentra pelo mundo da historiografia, o resultado tende a ser pífio. Mas felizmente há interseções. Uma narrativa historiográfica cuja linguagem tem toque de jornalismo, crônica ou ficção, é sempre bem-vinda, assim como um trabalho de jornalismo histórico que estuda de forma sistemática o assunto e faz pesquisas originais, sem “presentismo”, é um ótimo brinde para os leitores.

VB&M: Na condição de acadêmico com doutorado na Sorbonne e pós-doutorado na USP, mas também do alto de sua carreira de jornalista, o que você tem a dizer sobre a publicação de livros de História com linguagem voltada para o público leigo? A reação da academia contra esse tipo de obra é justificável?

MM: Acho um erro a resistência do meio universitário no Brasil contra obras para público ampliado ou leigo, uma postura estreita, inclusive nas áreas de Ciências Humanas e Sociais. Só falar para seus pares é empobrecedor. Mas estou convencido que obras elaboradas em profundidade, com técnica, erudição e linguagem mais densas são importantes para a ampliação do conhecimento, devem ser valorizadas, sobretudo num momento em que a ciência está sob ataque violento. Do mesmo modo, acho estreito jornalistas estigmatizarem os intelectuais universitários como elitistas, herméticos e incapazes de uma produção mais facilmente legível. É verdade que uma parcela é assim mesmo, mas não todos. É há um potencial de transformação. E pode haver espaço para ambos no mercado editorial, não vale a pena cristalizar uma querela mesquinha. Na França, por exemplo, os autores de best-sellers da história, como biografias e outros, são predominantemente historiadores de formação acadêmica que escrevem com clareza para um público leitor amplo e não especializado, sem perder a qualidade de seus trabalhos. Isso é factível. E sou favorável a este modelo de escrita da história. No Brasil há jornalistas que fizeram importantes trabalhos históricos, como meu avô Edmar, Alberto Dines, Fernando de Morais e Lira Neto. Há também historiadores de sólida formação que alcançaram um público ampliado com livros inovadores e marcantes, como foi Caio Prado Júnior, também editor. Atualmente, mantendo a qualidade historiográfica e atingindo o público leigo, temos os exemplos de Mary Del Priore e Isabel Lustosa, entre outros, mas são minoritários. A mim, particularmente, incomodam obras históricas para um grande público que, através de uma linguagem mais moderninha, no fundo são conservadoras, repetem tradicionais lugares-comuns mascarados em estilo pop, não ajudam a esclarecer nem a refletir criticamente. Reproduzem a ignorância e estereótipos. Ficam à vontade para praticar o anacronismo, o que chamo de síndrome da Família Flintstone: como se na Idade da Pedra tudo fosse igual a hoje, mas com sinais diferenciados, tipo automóvel de pedra, avião de pedra, etc. Isso pode gerar empatia com o leitor leigo atual. Mas assim prestam um desserviço à divulgação da história e, na verdade, estão ocupando um espaço vago deixado por historiadores profissionais.

VB&M Quais foram as leituras mais fundamentais para sua formação como historiador, primeiro; como jornalista, em seguida; e como ser humano?

MM: Minha formação inicial foi marcada pela presença de meu avô Edmar, sua figura, seus amigos e livros. Com ele me iniciei na pesquisa histórica. Ao mesmo tempo, trabalhei anos como repórter de rua e aprendi agilidade no jornalismo. Também fui leitor da poesia de Drummond, Cecília Meirelles, Manuel Bandeira e Fernando Pessoa, apresentados por minha mãe Lourdes e alimentados pelo professor Ivan Cavalcanti Proença. Tornei-me bom leitor de crônicas sobre o cotidiano e de romances policiais, assim como de romances brasileiros do século XX e franceses do XIX. E de livros críticos e de esquerda, como os de Paulo Freire, Frei Betto, Leandro Konder e Nelson Werneck Sodré, entre outros. Adorava textos e imagens de Millôr Fernandes. Músicas de Chico Buarque, Aldir Blanc, Pixinguinha e de toda geração da MPB e anteriores, bem como a hoje tradicional chanson française. Sou de esquerda com perspectiva revolucionária e libertária, valorizando a espiritualidade e a perspectiva dos de baixo. “Desde abajo y a la izquierda”, como dizem os zapatistas, estudados por minha filha Ana Paula. Diria até que sou humanista, se tal palavra hoje não tivesse conotação antropocêntrica em detrimento do meio ambiente e dos outros animais e formas de vida. A formação universitária veio depois e juntou-se à inicial, obtive mais consistência na elaboração do conhecimento, seja dominando os repertórios historiográficos e teóricos já existentes, como praticando a pesquisa, a escrita e dando aulas em diálogo com os alunos. Isso consolida nossos saberes e permite uma relação com a história ao mesmo tempo crítica e apaixonada, distante e envolvida, objetiva sem negar a subjetividade, comprometida com a ética e com a vida.

VB&M: Você gostaria de escrever sobre o momento atual do Brasil e do mundo? Acha que tem algo a dizer ou também está perdido?

MM: Estou perdido! (risos) Estamos todos, né?… Acho que cada dia sei menos… Rir para não chorar em meio ao pesadelo. Dizem que os historiadores em geral não se entendem bem com o tempo presente. No meu caso é verdade… Já tive ação direta em movimentos sociais, com muito orgulho. Mas o século XIX tem sido para mim um ótimo refúgio, onde trabalho e me divirto e, através dele, faço minha inserção nos tempos atuais. O atual e dramático governo federal, neofascista e necrófilo, tem a ver com os preconceitos, tradição autoritária e analfabetismo político presentes em expressivas parcelas da população. Na medida em que pudermos conhecer melhor nossa história, de maneira crítica, criativa e rigorosa, mais teremos chances de acender uma luz no fim do túnel. “Quanto mais se partir tempos afora, mais nos tempos de agora se estará”, como canta o poeta Paulo César Pinheiro. Apesar dos desenganos e dos pesares, o princípio esperança continua.