Enquanto tropas da Rússia e da Otan se encaram de cada lado da fronteira russo-ucraniana, Rachel Bassan recorda belos dias na Ucrânia, terra de seus avós, aonde foi para pesquisar a história de fundo de BELA DE ODESSA (Editora dos Editores). Esta saga de uma jovem judia apaixonada durante a Revolução Soviética vem fazendo silenciosa carreira e já conquistou expressivo boca a boca. País trágico, a Ucrânia, sempre à mercê da Rússia, que lhe destruiu e roubou riquezas e cultura e lhe perpetrou o genocídio de milhões, enquanto os próprios ucranianos foram capazes de crimes atrozes contra os judeus, atendendo sem resistência ao comando das tropas alemãs na II Guerra, como no massacre de Babi Yar. NARRATIVAS & DEPOIMENTOS convidou Rachel a revisitar seus dias em Odessa em 2016, quando estava envolta na pesquisa de seu livro.
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Odessa, Ucrânia, minhas raízes
O aviso era de que o avião estava para aterrissar. Da janela, a paisagem me arremessou ao passado. Finalmente, eu chegara à terra dos meus avós. Lá do alto, via a escadaria de Potemkin assentada sobre o paredão de pedra mergulhado no Mar Negro. Era verão. Agosto de 2016. As praias estavam cheias.
O antigo aeroporto internacional recebia os turistas com um cartaz de uma companhia aérea que dizia:
“Bem-vindos a Odessa. E agora, para onde?”
A resposta me veio pronta: “Para a descoberta da terra de onde meus avós tiveram que fugir para que eu existisse”.
Olga Bokhonovskaya, a melhor e mais preparada guia da Ucrânia, fundadora da Agência de Turismo Odessa Walks, já me esperava. Passaríamos juntas uma semana intensa. Eu não era uma turista habitual, demandava mergulhos profundos. Olga foi fundamental para a pesquisa do meu romance histórico BELA DE ODESSA, que retrata a época da Revolução Russa. É minha amiga desde então.
Odessa, a “Paris do Oriente”, foi escolhida por renomados escritores como lugar de exílio na época da Revolução Bolchevique. Era a cidade da liberdade, levou tempo até ser atingida pela ação revolucionária.
Caminhamos por cada centímetro da cidade. Do cartão postal da parte rica e panorâmica – Boulevard Primorsky, com suas mansões e vista para o mar – até Moldavanka, o bairro do proletariado. Meus antepassados devem ter vivido por lá. Os pátios internos, a pobreza em algum momento digna. Aos meus olhos, tudo precisava de renovação.
Visitei a grandiosa sinagoga de Brodsky (1863), confiscada pelos bolcheviques para se tornar quadra de esporte por seu pé direito alto. Depois transformada em Arquivo Estadual. Até 2016, só se mantinha de pé pelas estantes. Interditada sob risco de colapso, continha documentos importantíssimos cuja consulta estava impossibilitada.
Após essa viagem, procurei informações da Ucrânia em outras fontes documentais e descobri que se pode conhecer o país através da história da opressão russa. A Rússia sempre acreditou – ou quis acreditar – que a Ucrânia fosse parte de seu território. Mas, ao contrário, embora a Ucrânia só exista politicamente como país soberano há 30 anos, tem uma história própria, longa e rica. País com identidade, com seu povo, seu idioma, sua cultura remontando a vários séculos antes mesmo de Moscou existir.
Encontrei inúmeras evidências desse passado singular. Anna de Kiev, por exemplo, rainha consorte de França casada com Henrique I, era filha de Yaroslav, o Sábio, Grão Príncipe de Kiev e Novgorod. Anna nasceu em 1024 e é uma das provas dos antiquíssimos laços da Ucrânia com reinos da Europa.
A Ucrânia sempre foi e continua sendo objeto de desejo de países e impérios. Maior e mais rico celeiro de grãos da região e também rica de reservas de minério, tem Odessa como o maior porto de saída para o Mar Negro. Foi disputada pela Rússia Czarista, Império Austro-Húngaro, Polônia, União Soviética e Império Otomano. Vejo com tristeza que o fato se repete. Ainda hoje, é centro de disputas internacionais.
Irônico pensar que, no maior celeiro de grãos, milhões de ucranianos morreram de fome no Holodomor (1932-1933), o maior dos genocídios sob o governo de Stalin. Contou com a participação ativa de Nikita Khrushchev, que anos depois se tornaria secretário-geral do Partido Comunista da URSS. Toda a produção era confiscada e vendida para o exterior. Stalin precisava fazer dinheiro, rapidamente, para modernizar o seu império. A vida humana era o que menos importava. Foi instaurada uma coletivização forçada. Os que resistiam, eram mandados para a Sibéria. A identidade nacional e a língua ucranianal foram banidas. Inúmeros pensadores ucranianos foram presos. Outros se suicidaram. A única certeza era a morte.
Antes do Holodomor, houve uma propaganda de desumanização dos ucranianos judeus com discursos de ódio, comparando-os a insetos e peste. Era a justificativa para serem destruídos.
A mídia noticia, diariamente, a ameaça de Putin à Ucrânia. Telefono para a minha amiga Olga, preocupada, e ela me tranquiliza. A vida só não segue normal por conta da pandemia. Por outro lado, o trabalho virtual segue a todo vapor. Os tours online de Odessa estão “bombando” no Heygo.com. Ela manda um beijo apressado. Nos falamos mais tarde, a LIVE já vai começar.
É vida que segue. Aprendi que quem é de Odessa tem otimismo correndo nas veias. É cheio de autenticidade, caráter e humor. Tem desejo de sol, música, dança, alegria. Trabalho. Quem é de Odessa sabe o que são desafios e dificuldades. Por isso, valoriza a liberdade de ser o que é.