Narrativas & Depoimentos publica o Prólogo de QUARTO DE HÓSPEDES, da aclamada escritora e ativista Dreda Say Mitchell, primeira autora negra britânica premiada pela Crime Writers Association, em 2005. Em tradução de Raquel Nakasone para o selo Gutenberg da Autêntica, com edição de Flávia Lago, esse intenso suspense psicológico, que já ultrapassou a marca de 100 mil exemplares vendidos e foi negociado para tradução em 11 territórios, acompanha a trajetória de Lisa, jovem problemática que aluga um quarto na casa de um casal gentil. Quando encontra uma mensagem de suicídio escondida no quarto, embora o casal insista que ela é a primeira inquilina, Lisa começa a investigar o misterioso autor do bilhete e descobre que a casa inteira está repleta de segredos. O livro chegará a toda a cadeia livreira no final de agosto.
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PRÓLOGO
Desta vez, ele realmente quis.
Na mesinha de cabeceira, havia uma garrafa de conhaque fechada e um copo. Mas ele não precisou do entorpecimento do álcool ou dos tranquilizantes que tomou das tantas outras vezes que ele também quis. Em suas mãos, estava a carta que explicava sua decisão. Ao longo dos anos, ele escreveu muitas delas. Algumas eram curtas, outras mais longas. Algumas eram diretas e retas. Outras eram cheias de divagações e imploravam a compreensão e a empatia de quem pudesse se interessar ou não. Muitas dessas cartas ficaram inacabadas quando ele percebia que não queria mesmo fazer aquilo.
Mas, desta vez, ele quis. Ele realmente quis.
Ele não queria olhar, mas se forçou a encarar a corda amarrada acima. Abaixo dela, havia uma cadeira. Era tudo tão simples. Suba na cadeira. Coloque o laço em volta do pescoço e o aperte. Pise para fora. Aguarde alguns minutos de sofrimento e pânico enquanto a corda faz seu trabalho, espremendo a vida para fora do seu corpo. A maioria das pessoas ficaria grata se enfrentasse apenas alguns minutos de sofrimento antes de morrer. E ele vira muitas mortes em sua juventude. Uns minutinhos de agonia não eram nada. Ele lera que, durante os momentos finais, pendurada ali, quando o cérebro parasse de receber oxigênio, a dor ia embora e a pessoa ficava flutuando, sem preocupações, pairando no nada. E era isso o que mais desejava.
O nada.
No interior da casa, as vozes ficaram mais altas de novo, engajadas em uma discussão feroz. Podia ouvi-la gritando e o outro gritando de volta. Queria que eles parassem. Por que não eram capazes de lhe oferecer os preciosos minutos de paz que merecia antes de partir deste mundo?
O silêncio envolveu a casa de novo.
Ele se sentou na cama e pegou a garrafa de conhaque. Uns tragos não fariam mal nenhum. Desta vez, ele não precisava da falsa coragem do álcool – só queria que a bebida esquentasse seu corpo frio. Encheu um copo e, em seguida, ficou encarando a corda enquanto virava a bebida ardente de uma vez. Encheu mais um copo. Só no terceiro percebeu o que estava fazendo. O mesmo que todas as outras vezes. Estava se embebedando até o estupor. Fazendo qualquer coisa para evitar fazer o que pretendia. Então, colocou a garrafa e o copo na mesinha de cabeceira, pousou a carta ao lado com cuidado e se levantou.
Oscilando de leve sob efeito do álcool, deu alguns passos em direção à cadeira e subiu nela, trôpego. Pegou a corda com firmeza e passou o laço pela cabeça. Apertou o nó como se fosse uma gravata. Fechou os olhos, respirando fundo. Concentrado, tentou afastar da mente qualquer dúvida e fez menção de dar um passo para a frente. Recuou. Depois, desta vez mais perto da ponta da cadeira, deixou o pé flutuar por uns instantes antes de recuar de novo.
Engasgou, desesperado. Por que não conseguia fazer essa coisa tão simples quando tudo o que desejava era o nada?
A coisa certa. A única coisa.
As vozes no andar de baixo começaram mais uma discussão. Por que não conseguiam calar a boca? Só calar a maldita boca.
Afrouxou o nó e desceu da cadeira. Cambaleando, correu de volta para a cama e se serviu de mais uma dose de conhaque. Pegou a carta e, com um sorriso sombrio, rasgou-a em pedacinhos, colocando-os no saco plástico que fazia às vezes de lixeira.
A quem possa interessar? Que piada. Qualquer um que se interessasse estava morto ou já tinha partido havia tempos. Ninguém estava interessado nas suas explicações ou justificativas, nem mesmo ele. Jogou o copo na cama e pegou a garrafa. Talvez, se ele bebesse tudo, não hesitaria quando estivesse em cima da cadeira, assim como um motorista bêbado não hesita quando está ao volante. Engoliu de uma vez o tanto que conseguiu antes que a garganta começasse a queimar e, depois, pousou a garrafa na mesa.
Mais uma vez, foi até a cadeira e subiu nela. Apertou a corda no pescoço, fechou os olhos e se abraçou, como se tentasse abraçar o nada.
Ficou parado ali por muito tempo antes de abrir os olhos de novo. Seu corpo estava embriagado, mas ele, não. Estava sóbrio e lúcido, com uma corda em volta do pescoço.
Era tudo uma mentira. Ele não queria isso desta vez, também não ia querer da próxima. Preferia estar entre os mortos-vivos que fazer a coisa certa. Fraco, fraco, fraco. Isso é o que ele era. Fraco e patético. Foi essa fraqueza que trouxe a desgraça, em primeiro lugar.
Ele agarrou a corda, presa sob a mandíbula. Lutou contra o nó enquanto seu corpo bêbado se balançava e, frustrado, acabou tropeçando. O laço se apertou em seu pescoço. Em pânico e desesperado, tentou recuperar o equilíbrio, mas os pés escorregaram da cadeira, que tombou para o lado. Oh, Deus. Ficou suspenso no ar, agitando os braços e as pernas, gritando. Não havia mais ar entrando nem saindo dos pulmões. Não havia mais gritos, apenas gorgolejos desesperados e engasgados. Agarrou o laço e tentou soltá-lo. O instrumento de sua própria morte se comprimiu ao redor do pescoço.
Em choque, ele se esforçou para se segurar na corda acima da cabeça com os dedos fracos, enquanto tentava se erguer para se salvar. Por um breve momento, conseguiu. Os pulmões sugaram o ar precioso. Mas então não havia mais ar. As mãos exaustas soltaram a corda, queimando as palmas e os dedos. Ele caiu, e o laço jogou sua cabeça para trás quando a corda o espremeu. Seus braços e pernas se contorceram enquanto o que restava de vida se dissipava.
Então, havia apenas o nada.