A pesquisadora Viviane Gouvêa, do Arquivo Nacional, Conversa Com (A) Gente sobre o mais recente escândalo de crise humanitária no Brasil: o planejado genocídio do povo yanomami em Roraima, revelado (mais uma vez) em janeiro. Não tem muita gente com mais autoridade do que ela para falar de genocídios. Vivi é autora de EXTERMÍNIO: 200 ANOS DE UM ESTADO GENOCIDA, lançado pela Planeta em setembro. O capítulo 5 desse livro, “A devastadora tragédia dos bons selvagens”, retoma toda a documentação das graves – genocidas – crises sanitárias dessa etnia e de outras ao longo das décadas de 80 e 90 do século passado, que se pode compulsar nos relatórios Figueiredo e da Comissão da Verdade. Por isso, ela diz que vê com uma pitada de cinismo todo esse espanto atual, quando na verdade a opinião pública está a par do que vem acontecendo com os povos originários há muitas décadas. Pior: a pesquisadora não está otimista de que as denúncias recentes alterem fundamentalmente o quadro de espoliação dos yanomamis: “Embora o que aconteceu no governo anterior tenha sido um horror que não víamos há muito tempo, os povos originários provavelmente continuarão em posição vulnerável, bastante vulnerável, diante do capital e do Estado brasileiro.”
VB&M – Como se inscreve o genocídio dos yanomamis, que aterrou o país e o mundo logo da virada de 2022 para 2023, na história dos extermínios de populações brasileiras praticados direta ou indiretamente por políticas de Estado?
VG – Não existe capitalismo não-predatório. Há capitalismo em que as atividades geradoras de lucro limitam-se por mais ou menos regras, em geral estabelecidas depois de muita luta daqueles que mais sofrem com a desregulamentação do capital e da produção.
Não existe exploração indevida de recursos em grandes extensões de terra sem o assassinato sistemático daqueles que a defendem. O roubo e a crueldade andam de mãos dadas, e o Estado brasileiro se organizou ao longo dos anos para apropriar-se das terras e do trabalho dos nativos, usando de violência extrema para isso e atuando de forma conjunta com a iniciativa privada. Claramente em tempos de ditadura a situação geral piora para qualquer grupo vulnerável, com acesso limitado aos processos políticos decisórios, ao sistema judicial. Mas a nossa democracia sempre vem carregada de limitações e sempre permitiu uma violência seletiva do Estado, ou no mínimo uma tolerância diante da violência e ilegalidade privadas. Claro que alguns governos são muito piores do que outros, e dependemos também do perfil do nosso Congresso.
Apesar da derrota do presidente anterior, da vitória de forças progressistas que conseguiram tornar ministra uma representante dos povos originários, é só dar uma olhada no nosso parlamento para perceber que ainda estamos muito longe de uma situação de proteção efetiva a esses povos e ao meio ambiente.
VB&M – Como lidar na prática com o garimpeiro, que, embora explorado e pobre, à espera de sua pepita de ouro, mas submetido ao crime organizado, está na ponta do extermínio indígena e é capaz das mais bárbaras ações contra gente yanomami e contra a natureza?
VG – Acho que a punição legal tem que servir para o garimpeiro pobre que não tem nenhum pudor em estuprar meninas indígenas de 12 anos e para o “empresário” que emprega essas pessoas ou contrata seus serviços de forma ilegal, explorando-as e intimidando-as para que realizem atividades ilegais. A questão mais complicada e mais importante reside em como evitar que isso aconteça, como evitar que seja possível empregar garimpeiros pobres que vão exterminar indígenas e devastar o meio ambiente, como evitar que o crime organizado funcione. Sem lavagem de dinheiro não há crime organizado. É quase simples.
Sem grandes corporações que fazem uso dos serviços do crime organizado, não há mercado ilegal. Há quem explore madeira e minas de ouro de forma ilegal, e por vezes não são quadrilhas, são grandes empresas. Há mercado para o ouro ilegal, para a madeira ilegal.
Há um contingente de pessoas sem emprego, à margem de um mercado formal cada vez mais “enxuto,” dado que a direita liberal e a direita extremista têm em comum a defesa de uma liberdade de mercado que prega o fim (“flexibilização”) da regulamentação do mercado de trabalho, aliás de qualquer mercado. É a velhíssima concepção de liberdade, que é a liberdade apenas de gerar mais lucro em detrimento de todo e qualquer direito humano que possa atrapalhar a atividade geradora de lucro. Mas não é difícil perceber que a desregulamentação cria mercados selvagens que só favorecem aqueles que já começam o jogo em grande vantagem.
VB&M – Algumas reportagens recentes revelaram inimaginável grau de abuso dos yanomamis pelos garimpeiros, que praticavam vil chantagem oferecendo comida aos indígenas se os homens das famílias levassem a eles suas filhas e irmãs para uso sexual, inclusive ainda crianças. Muitas yanomamis estão grávidas de estupros de garimpeiros. As mulheres são de novo as maiores vítimas dessa tragédia?
VG – Sofrimento não se contabiliza em números, e a exploração humana não conhece limites. Mas a verdade é que a violência sexual atinge especificamente as mulheres e adiciona, além de todo o sofrimento comum a toda a etnia alvo de genocídio, a dor da exploração da intimidade e da maternidade.
VB&M – O capítulo 5 de seu livro EXTERMÍNIO, “A devastadora tragédia dos ‘bons selvagens’”, é para mim o mais impactante de um livro dedicado em sua íntegra à denúncia de práticas criminosas e repulsivas de exercício do poder. Você conseguiria sintetizar aqui a mensagem desse capítulo?
VG – As nações que ocupam o território que hoje se chama Brasil há séculos, milênios, são peça fundamental para a preservação e o equilíbrio ambientais. Parece incrível ter que, em pleno século XXI, lembrar às pessoas que preservar o meio ambiente não é “frescura” nem bom mocismo. Uma vez que eles representam um obstáculo expressivo à espoliação ambiental, faz sentido que sejam os primeiros a tombar, a serem varridos para fora do mapa com os movimentos de ação predatória, em geral movida por empresas ou latifundiários, mas também pelo próprio Estado, cuja atuação privilegia, obviamente, os grupos economicamente mais poderosos.
A (necro)política indigenista brasileira aplicou e aplica até hoje e de forma sistemática o princípio do “deixar morrer.” Nada disso é novo e nem pontual. Embora políticas públicas e reformas estruturais (políticas e econômicas) minimizem ou, ao contrário, acentuem a vulnerabilidade das nações indígenas e as violências contra elas perpetradas, ao longo de toda a nossa história o que percebemos é um sistemático uso do aparato estatal, associado à iniciativa privada e à crueldade individual para espoliar tais povos de suas terras e trabalho, suas crianças, suas vidas.
VB&M – A grande maioria dos brasileiros está chocada e envergonhada com a tragédia yanomami. Como você interpreta o fato de que esse genocídio tenha surpreendido as pessoas tão radicalmente?
VG – Honestamente? Não acho que as tenha surpreendido radicalmente. Não acredito nisso, mesmo. Arrisco dizer que vivemos em um tempo em que as pessoas se esquecem, de fato, não apenas daquilo que já viram ou leram, mas daquilo que já sentiram. E elas escolhem aquilo wm que acreditam, e também aquilo que as mobiliza emocionalmente. Tem gente que acredita que a terra é plana e que não houve Holocausto. Apesar das manifestações maciças de pesar e espanto que vemos na mídia eletrônica e digital diante do extermínio yanomami, encaro esse espanto com um certo cinismo. Porque já vimos esse filme antes. A crise sanitária dessa mesma etnia, e de outras, nos anos 1980, 1990, tiveram cobertura midiática, e está lá no livro, estas informações são muito fáceis de encontrar. Temos o relatório da Comissão Nacional da Verdade, o Relatório Figueiredo, também exibidos no livro… documentação que já veio a público. De vez em quando um Globo Repórter da vida, uma denúncia nos Tribunais Internacionais, indignação e hashtags, já fomos #todosguaranikaiowá, agora somos todos yanomami. E embora o que aconteceu no governo anterior tenha sido um horror que não víamos há muito tempo, esses povos originários provavelmente continuarão em posição vulnerável, bastante vulnerável, diante do capital e do Estado brasileiro.