Já se falou muito do anúncio de Chico Buarque cancelando “Com açúcar, com afeto” de seu repertório, mas a coluna NARRATIVAS & DEPOIMENTOS insiste no debate com texto de Luciana Villas Boas, que acredita que a pior sinalização dessa falsa polêmica é o baixo nível de capacidade de leitura e apreciação poética e lírica que se observa hoje na sociedade brasileira. Como pode a letra dessa canção ser lida de maneira tão equivocada até pelo próprio autor? Outros subtemas são a autonomia da obra literária e a natureza da política de cancelamento, mas tudo na brincadeira, com humor e ironia.
CHICO E O PEDESTAL DAS FEMINISTAS
Luciana Villas Boas
Tenho que falar de minha mãe para expressar minha perplexidade diante das palavras de Chico Buarque tentando explicar por que não cantará mais “Com açúcar, com afeto”. Dona de casa, sem estudos além do antigo Secretariado, Eva-Maria Villas Boas não era uma Amélia. Odiava Amélia. Insatisfeita na sua condição de mãe de família, era uma perfeita Eurídice da vida real com veleidades artísticas e literárias, uma defensora de ideias feministas que soavam insanas a amigos do marido e por vezes viravam motivo de chacota, mas que ela persistiu em comunicar com bastante competência às duas filhas, principalmente à caçula, eu.
Foi Eva-Maria quem primeiro chamou minha atenção para o machismo do cancioneiro brasileiro. Um dia, lá pelo início da década de 70, teve uma ideia brilhante de três contos, cuja realização infelizmente ficou aquém da graça do projeto: “Marina”, “Amélia” e “Aurora”. Contou a história dessas mulheres de Dorival Caymmi, Mário Lago e Osvaldo Pereira, expondo o caráter manipulador, narcísico e autoritário de seus homens – que certamente não era o que os compositores queriam comunicar. “Aurora” terminava em feminicídio, sem usar o termo, que certamente ainda não existia: Osvaldo afinal não suportou a sinceridade da moça, que preferiu a própria liberdade às promessas (falsas) de apartamento com porteiro e elevador.
Garanto que ninguém falava disso naquela época, a crítica a Dorival pegava especialmente mal, mas eu, entrando na adolescência, concordava e comentava sobre “Marina”: “Que homem chaaato, mãe, por que ele pensa que pode dar palpite na maquiagem dela? Pior é que ele se zanga por causa de maquiagem e não perdoa.” Eva-Maria respondia: “Ele tem que controlar. Pensa que, se não controlar, manipulando os sentimentos dela, vai perder a Marina. Não entende é que dizendo essas bobagens perde mesmo.”
Avançada, minha mãe, mas lá naqueles longínquos anos 70 duas ideias muito contemporâneas não passavam pela cabeça dela. Nem pela minha. Pior, na minha não entram até hoje. A primeira é que se devessem censurar canções. A segunda é que a letra de “Com açúcar, com afeto” pudesse ser considerada machista.
Censura era domínio da ditadura, da direita; a esquerda jamais viria a censurar novamente. Dizer que havia censura na União Soviética e em Cuba era, para boa parte da esquerda, pura propaganda do imperialismo ianque. Como se vê, a valorização da liberdade de expressão era tal que abria lugar para um bocado de ingenuidade.
“Com açúcar, com afeto”, lançada pelo Chico em 1967, era para mãe e filha, Eva-Maria e eu, o retrato muito preciso de uma psique feminina submissa e masoquista típica das sociedades patriarcais. Era o retrato de algo que ela não queria para mim, mas que se via muito à volta da gente, primas e vizinhas, acho que ainda se vê: o laço de dependência econômica, emocional e psíquica da mulher a um homem mentiroso, manipulador, egoísta, narcisista e totalmente imaturo. Ninguém tinha dúvida – era possível ter? – do olhar crítico do Chico sobre aquela relação de poder.
O espantoso da atual suposta polêmica em torno do suposto “auto cancelamento” de Chico Buarque, anunciando que não mais cantará essa canção em concordância com supostas críticas feministas, são somente as palavras do compositor transcritas de um documentário no jornal O Globo: “As feministas têm razão, vou sempre dar razão às feministas, mas elas precisam compreender que naquela época não existia, não passava pela cabeça da gente que isso era uma opressão, que a mulher não precisa ser tratada assim.”
Como assim? Não passava pela cabeça do Chico que era uma relação de opressão o que ele retratou em “Com açúcar com afeto”? Isso dá medo porque revela um processo de dissociação em alto grau.
Fico ainda mais chocada porque a maior parte da crítica ao anúncio do Chico não levantou esse ponto, não disse: mas é uma música feminista! Ficaram no campo do “auto cancelamento”, afirmando o que é óbvio: ele canta ou não o que quiser, mas a canção está aí e não pode ser censurada. Artigo no site O Antagonista, do advogado André Marsiglia Santos, foi duro com o compositor acerca das consequências desse anúncio maluco, mas deixou claro que o articulista tampouco sabe ler poesia: “A canção ‘Com açúcar, com afeto’, retrato de uma mulher subjugada a um marido operário, de fato, é machista.”
O homem retratado na canção não é operário. Nenhum operário tem opções de ternos no guarda-roupa. O homem é um cretino de marca maior, um falastrão elitista, um fanfarrão, um gerente ou dono de pequena oficina, que acha que se projeta bem ironizando com falsa modéstia e de cima para baixo que é um “operário em busca do salário” para poder sustentar a mulherzinha (nos olhos do sujeito, agora é preciso explicar passo a passo o que se argumenta), que no fundo ele despreza, mas de quem também depende emocionalmente. Para atender a um pedido de Nara Leão, Chico chegou a um cristalino achado poético, pungente; esse boçal que o compositor retratou em “Com açúcar, com afeto”, tão verdadeiro, mais até do que os homens da vida real, essa codependência mais bem explicada do que em qualquer tratado sobre o tema: nunca a beleza dessa letra será suficientemente exaltada. A canção não é machista, dr. André.
Estou esperando que alguém me diga: é o lugar de fala, estúpida. Como fez numa parte significativa de seu repertório, nessa música Chico se apropria da voz da mulher para cantar suas dores. Ele não pode fazer isso, receio que me alertem. Então vou contra-argumentar: nesse caso, o compositor tem que anunciar que não vai mais cantar metade de suas canções, as melhores, e o conjunto Mulheres de Chico tem que se aposentar também.
Toda essa falsa polêmica só nos leva à conclusão de que no Brasil uma parcela significativa de leitores perdeu a capacidade de apreciar criticamente prosa e poesia. É assustador. A descrição de situações de opressão, se feitas por um autor sem o devido lugar de fala, é interpretada como endosso, não como denúncia, e assim o público vai deixando de perceber metáforas e ironia. Já vi escritores criticando e recomendando a colegas de ofício amenizar no texto os xingamentos de um senhor a seu escravo porque aquelas palavras poderiam causar problema se considerada a condição de homem branco do autor. Mas não tem lugar para lugar de fala na apreciação da literatura, a obra é autônoma em relação a seu criador.
O prazer estético decorrente da leitura ou audição de uma obra, que pode ser profundamente transformador no plano individual e coletivo, não se realiza se ficarmos pensando nas características físicas e psicológicas do artista que a fez. Já foi dito, mas não custa repetir: se se insiste nessa abordagem, será incalculável a devastação do capital cultural e artístico da humanidade. Se, quando apreciamos a arte, quisermos ter em mente os traços autoritários, machistas, racistas inclusive, dos grandes criadores – de “Guernica” a “Por quem os sinos dobram” e “Cem anos de solidão” -, nada sobrará. Aliás, a maior perda de cabedal artístico e crítico será da turma da esquerda. Até a análise psicológica de Karl Marx poderá em tese condenar marxismo e socialismo, como tantas vezes a direita já fez ao denunciar as relações sexuais dele com a empregada.
O poder transformador da arte tem exemplos da vida concreta, individual, para nossa constatação. Lembro de minha mãe, de novo ela, falando de uma Fulana que, só depois de ouvir “Com açúcar, com afeto”, percebeu a natureza da relação em que estava metida com o marido cafajeste. Será que a ficha teria caído da mesma maneira se ela ficasse pensando que o autor da música era um homem branco sem condições psicológicas de criar aquela letra?
Como já foi dito acima, o perturbador nessa história é o grande Chico aceitar a suposta crítica feminista exatamente como um bolchevique da primeira hora diante do Terror Vermelho de Stálin, na década de 30 do século passado, confessando crimes que não cometeu, buscando encontrar o próprio erro, não com vistas a um auto aperfeiçoamento, mas para poder aceitar e aprovar a acusação – essência da política de cancelamento vigente nas mídias sociais, que é idêntica ao conceito e à prática da autocrítica stalinista. Mas essa discussão sobre cancelamento tem que ser objeto de outro artigo, que vou escrever depois de terminar a releitura de “Os testamentos traídos”, do Milan Kundera, de quem roubei um tanto dessa frase sobre a autocrítica.
Enfim, Raymond Moss me diz que exagero, que me deixo consumir demasiadamente pela estupidez do oceano contemporâneo que navegamos, que preciso urgentemente passar a filtrar a mídia social e geral, inclusive declarações de artistas. Ele defende que, a fim de parecerem relevantes, artistas em crise passam a proferir qualquer declaração bombástica que atraia microfones e holofotes. Deu o exemplo de um certo Kid Rock, aparentemente notabilizado pelo casamento com a pinup Pamela Anderson, que agitou as mídias americanas afirmando que não se apresentará em arenas que exijam passaporte vacinal. “Ora,” Raymond me explica, “esse sub roqueiro não enche uma sala de concerto há muito tempo. A declaração visa só a evitar constrangimentos.”
Recuso-me a admitir que Chico Buarque tenha esse tipo de atitude, mas seria legal se ele pudesse explicar sua declaração, que de fato apresenta aspectos intrigantes. Primeiro, por que esse anúncio agora de que não mais cantará “Com açúcar, com afeto”? Já faz décadas que ele não canta essa música. Segundo, se ele realmente quis dizer que “sempre” concordará com as feministas – assim, in limine? Com qual grupo de feministas? Discordamos entre nós. Outros “istas” justificam a desistência do pensamento crítico? Finalmente, quem são essas mulheres? Pergunto, pois sempre soube, claro, que, em seguida a minha mãe, muita gente veio a criticar “Amélia” e outros sambas, mas eu desconhecia a inclusão de “Com açúcar, com afeto” no Index. Gostaria de ter nome e sobrenome dessas feministas.
De outra maneira, a declaração do Chico terá sempre um tom horrivelmente paternalista. Para terminar com minha mãe, que abriu esse texto, recorro, para efeito comparativo, a uma frase que ela ouviu várias vezes de amigos do meu pai e odiava muito: “Eu ponho minha mulher num pedestal.” Ela gritava: “Não quero pedestal!” Pois então, boas feministas poderão gritar: “Não queremos que concordem sempre com a gente! Não queremos pedestal!”
Lembrando da responsabilidade de artistas como formadores de opinião, a obrigação de pensarem muito mais do que outras pessoas antes de dizerem uma tolice, realmente Chico me faria feliz se explicasse melhor o que quis dizer. Nem que ele diga que tudo não passou de uma gracinha infeliz. Se não, eu, como o público dele, posso ficar zangada que nem o Dorival da Marina. Quando me zango, não sei perdoar. (Na verdade, só às vezes eu não perdoo, mas o público, sei não, ficou bem furioso desta vez.) Em compensação, Chico poderá sempre cantar: “Você não gosta de mim, mas da minha música gosta”. Com vivas no refrão à autonomia da obra.