PEDRO I, REMATADO CAFAJESTE

 

PEDRO I, REMATADO CAFAJESTE

Agora é a vez de Mary Del Priore (@marydelpriore.ofc) nesta coluna. Alberto Flaksman comenta LEOPOLDINA & MARIA DA GLÓRIA: DUAS RAINHAS, livro da Editora José Olympio, que ele define como uma “biografia lúcida e comovente” e “leitura fascinante”. Segundo o resenhista, a voz narrativa de Maria da Glória, filha de Leopoldina e D. Pedro I, recriada por Mary Del Priore, é o “grande achado” para dar uma dimensão subjetiva aos fatos históricos de uma década fundamental para a formação social brasileira, os anos 20 do século XIX. Depois de tomar conhecimento da trajetória trágica da primeira imperatriz do Brasil, falecida aos 29 anos, ele crava seu ponto de vista a respeito do homem que proclamou a independência da Nação: um “rematado cafajeste”. Ele explica: “termos que são meus e ninguém lerá no texto de Mary Del Priore, uma escritora elegante, que emula com grande habilidade a escrita de uma jovem aristocrata e bem-educada”. LEOPOLDINA & MARIA DA GLÓRIA serve-se de fatos históricos para abordar as grandes questões levantadas pelo feminismo no século XX.

 

Uma biografia lúcida e comovente

Alberto Flaksman

A arquiduquesa Leopoldina desembarcou no Rio de Janeiro, proveniente de Viena, em novembro de 1817. Filha do imperador Francisco I da Áustria, tinha apenas 20 anos e trazia consigo sonhos de se casar e desfrutar de uma união feliz com o jovem Pedro, que achava muito bonito e era o príncipe herdeiro do rei d. João VI. Mal sabia ela que a família Bragança não tinha boa reputação na corte dos Habsburgo. E havia muitas razões para isso, como a infeliz princesa logo descobrirá.

A historiadora Mary Del Priore optou por narrar esse capítulo da nossa história pela voz de Maria da Glória, filha mais velha de Leopoldina e Pedro, num livro de leitura fascinante intitulado LEOPOLDINA & MARIA DA GLÓRIA: DUAS RAINHAS. Nele, a jovem princesa, que mais tarde se casará com seu tio Miguel e se tornará a rainha Maria II de Portugal, relata o sofrimento de sua mãe ao lado de um marido quase sempre ausente e, quando presente, nem um pouco amoroso. Na verdade, um rematado cafajeste, um homem grosseiro e inculto – termos que são meus e evidentemente ninguém lerá no texto de Mary Del Priore, uma escritora elegante, que emula com grande habilidade a escrita de uma jovem aristocrata e bem educada.

Essa escrita é o grande achado do livro. Maria da Glória se refere tanto ao rei d. João VI quanto ao imperador Francisco I como “meu avô”, ao príncipe d. Pedro como “papai” e à princesa Leopoldina, o personagem central do livro, como “mamãe”. Essa proximidade com figuras-chave da nossa história traz uma nova perspectiva, mais humana e carregada de subjetividade, aos acontecimentos que marcaram a importante década de 1820. “Papai” proclamou a independência do Brasil e tornou-se seu primeiro imperador, “meu avô” João ficou satisfeito ao ver assegurado o poder da sua família sobre o país, e “meu avô” Francisco ficou feliz ao constatar que os Bragança não haviam cedido o poder aos malditos republicanos.

Quem estava mais triste e infeliz a cada dia era justamente Leopoldina, agora a imperatriz do Brasil. De acordo com a narrativa atribuída a Maria da Glória, d. Pedro I apenas passava pelo palácio de vez em quando mas, ao que tudo indica, fazia questão de emprenhar mais uma vez a sua esposa oficial. Seguidamente grávida e tendo partos difíceis que terminavam com frequência na morte do nascituro, Leopoldina tentava desesperadamente atrair Pedro para o seu lado, porque surpreendentemente ainda o amava e buscava minorar sua solidão.

A maior amiga e confidente de Leopoldina estava longe. Era Maria Luísa, a irmã mais velha, casada com Napoleão Bonaparte, que a consolava e procurava aconselhá-la em longas cartas sobre a melhor maneira de enfrentar as suas dificuldades e sobreviver.

  1. Pedro teve muitas amantes e filhos bastardos, e Leopoldina estava informada de tudo. Mas a maior humilhação ainda estava por vir, na pessoa de Domitila de Castro, por quem o imperador se apaixonou por ocasião de uma passagem por São Paulo. Ele decidiu trazer a amante para mais perto e a hospedou, junto com boa parte da sua família, na fazenda de Santa Cruz, a preferida de Leopoldina. Além disso, fazia questão de aparecer em público com a mulher que Maria da Glória desprezava e, sempre mobilizada em defesa da mãe, chamava de “aquela rameira”. Por sua vez, Domitila – a futura marquesa de Santos – aumentava as exigências em favor de enriquecimento próprio ou de sua família, retribuía dando a d. Pedro mais alguns filhos bastardos.

A funda depressão de Leopoldina agravou as suas más condições de saúde. Ela deu à luz um último filho, natimorto como outros antes dele, e não conseguiu mais se recuperar. Fraca e sem o mínimo de energia necessário para resistir à doença,  Leopoldina praticamente se entregou à morte. Como escreve Mary Del Priore, sempre emulando a voz de Maria da Glória, “(minha mãe) não queria mais continuar a viver por viver. Sofria para morrer. Morria para não sofrer mais. Ela havia esperado que papai fosse a sua metade perdida, mas nunca recebeu uma migalha do seu sentimento”. A morte chegou muito cedo, quando Leopoldina tinha apenas 29 anos.

Mais do que um ensaio de História, o relato criado por Mary Del Priore a partir da experiência vivida pela princesa Maria da Glória, narrado com a sua voz de  testemunha da tragédia que vitimou a sua mãe de forma tão prematura, é uma biografia lúcida e comovente. Um texto que se serve inteligentemente de fatos históricos para antecipar as grandes questões levantadas em defesa da condição feminina, que vieram a ser expostas nos já clássicos livros das autoras feministas publicados sobretudo a partir da segunda metade do século XX.