QUANDO A LÍNGUA NÃO É PÁTRIA

Retomando prática de trazer para os seguidores do blog excelentes artigos sobre literatura e linguagem que VB&M lê na mídia internacional mas não vê repercutidos na imprensa brasileira, Narrativas & Depoimentos traduz o ensaio “Como o palavrão se tornou uma arma de resistência para os ucranianos”, do editor britânico e especialista em russo Jamie Rann. No texto, publicado em The Guardian, o autor, que é doutor e professor de literatura russa, explica o fenômeno recente em que ucranianos russófonos usam o xingamento como contra-ataque à atroz invasão da Rússia, que, por sua vez, tem um longo histórico de censura a profanidades numa tentativa de preservar a “pureza” do idioma. A grande contribuição de Rann é mostrar que, ao contrário do entendimento comum, nem sempre a língua é pátria. Ou é a verdadeira pátria sem qualquer vinculação com território. Tradução de Yasmin Ribeiro, que sintetizou o artigo.

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Como o palavrão se tornou uma arma de resistência para os ucranianos

Um homem fumando um cigarro carrega uma mina terrestre para fora da estrada. Uma mulher desafia um motorista de tanque com ameaças de bruxaria. Um guarda costeiro responde à ameaça de bombardeio com a agora já clássica frase “Exército russo, vá se foder”. As pessoas nesses vídeos virais, assim como em muitos outros que surgiram da resistência ucraniana à brutal invasão russa, fazem essas mesmas três coisas: mostram incrível coragem ao defender sua pátria, falam russo e xingam.

Separadamente, não há nada de surpreendente nesses atos. É claro que as pessoas xingam em tempos de guerra, e o fato de que muitos ucranianos falem russo, especialmente no Leste e no Sul, tem sido um tema de debate para muitos intelectuais de poltrona. O que esses fofoqueiros mal informados, Vladimir Putin inclusive, falharam em antecipar é que falar russo não significa de manieira alguma apoiar o governo da Rússia. Mas a combinação desses três elementos – resistência, russo e palavrão – e sua proeminência na cobertura da guerra são significativas em si. Esse linguajar obsceno pode parecer um detalhe trivial em um conflito tão horrendo, mas compreender isso é uma forma de entender a linguagem, e a linguagem desempenhou um papel importante tanto nas motivações de Moscou para essa invasão quanto na resposta desafiadora de Kiev.

O xingamento ocupa uma posição ambivalente na cultura russófona. Por um lado, as pessoas que falam russo se orgulham da expressividade de seus palavrões e, graças aos jogos online, esse talento natural para a linguagem chula conquistou um público internacional. No entanto, as sociedades russófonas preservam fortes tabus contra obscenidades em público. A pesada atmosfera cultural que caracterizava o regime soviético de meados do século passado erodiu-se pouco a pouco, a começar pela literatura clandestina dos anos 1970, depois pelo relaxamento da censura e pela entrada da cultura ocidental na Rússia ao longo das décadas de 1980 e 1990 e, finalmente, pela ascensão das mídias sociais. Embora nessas últimas sejam ultrapassadas as distinções entre discurso e texto e entre público e privado, as regras ainda se aplicam. E os políticos criam novas normas o tempo todo: tanto na Ucrânia como na Rússia, leis anti-palavrões foram implantadas há pouco tempo, em 2019 e 2021, respectivamente.

É impressionante, portanto, que o xingamento agora pareça ter alcançado um grau de validação oficial na Ucrânia: a instrução para que o exército russo literalmente “vá para o caralho” se tornou uma espécie de slogan nacional, estampado em camisetas, painéis e letreiros, reescrito em placas de trânsito por todo o país. O governo ucraniano até lançou um selo comemorativo com um soldado dando o dedo do meio para um navio.

Assim como essa guerra faz parte de um conflito antigo, o xingamento tem trilhado seu caminho no discurso político na Ucrânia há algum tempo. “Putin é um babaca” (Putin khuilo!), que começou como um canto de futebol, passou a grito de guerra contra o imperialismo russo desde a Primavera Ucraniana em 2013-14. Esse slogan foi citado pelo ministro das Relações Exteriores Andrii Deshchytsia na época, e o próprio Volodymyr Zelenskiy fez uma alusão sarcástica a isso em 2019 no programa de TV “O Servidor do Povo”, que o tornou famoso em todo o país.

O afastamento da Ucrânia da excessiva polidez linguística soviética resulta em dois fatos. Primeiro, demonstra o argumento óbvio de que a guerra é coisa séria, hora de deixar de lado as boas maneiras. Segundo, ressalta o abismo entre as estratégias de comunicação do autoritário Putin e do democrático, autoconsciente e conhecedor da mídia Zelenskiy. O presidente ucraniano e sua equipe já mostraram sua proficiência nas mídias sociais – até mesmo em situação de cerco,entendendo a forma como a internet mistura doméstico e profissional, público e privado. A linguagem da pessoa pública de Zelenskiy reforça esse senso de familiaridade: numa coletiva de imprensa em 3 de março, ele se dirigiu a Putin diretamente, em russo, utilizando o pronome informal “ty”: “Eu sou um cara comum, senta comigo, eu não mordo.”

Essa informalidade, que também é evidente no figurino militar-casual de Zelenskiy e sua delegação nas conversas de paz, é um contraste deliberado à apresentação de Putin que, especialmente na véspera da guerra, justapôs banal e absurdo com suas mesas longas, queixas sobre a história e o terno e gravata de sempre. Vi os apresentadores de TV do canal do governo russo expressarem contentamento pela alegada falta de profissionalismo dos ucranianos, mas o fato de que, em 9 de março, Putin se sentiu obrigado a sair do isolamento para comparecer a uma manifestação, e a fazer isso numa camisa polo e uma jaqueta puffa (cara e italiana), escancarou a falha das primeiras apresentações da Rússia.

A atitude de xingar, entretanto, revela uma divisão mais profunda entre Moscou e Kiev. Tradicionalmente, sempre houve quatro palavras proibidas de serem impressas ou ditas na televisão (são tabus sexuais, incluindo os termos para os genitais masculino e feminino). Agora, com risco de prisão, há uma quinta: “guerra”, que foi oficialmente substituída pela expressão “operação militar especial”. Esse tipo de eufemismo é comum em círculos belicistas em todo o mundo, mas a ironia de banir a palavra “guerra” enquanto se provoca uma guerra ressalta uma patologia putinista particularmente linguística que tem muito em comum com a sua visão geopolítica.

Embora o próprio Putin tenha uma predileção por expressões brutas, ele evita obscenidades e seu governo já tentou muitas vezes proibir esse linguajar em público, sinalizando tanto um compromisso com os “valores tradicionais” como um controle central sobre a liberdade de expressão. Acidentalmente ou não, essas iniciativas por vezes coincidiram com ataques à soberania ucraniana. Em 2005, depois que a Revolução Laranja começou a enfraquecer a influência russa na Ucrânia, uma nova lei foi implantada na Rússia reafirmando o status do russo como o idioma oficial do país, com promessa de punição a “palavras e frases que não atendam às normas do russo literário contemporâneo”. Em março de 2014, quando a Rússia completou a anexação da Península da Crimeia, o banimento dos palavrões na imprensa e na TV foi estendido também ao teatro, cinema e música; em fevereiro de 2021, também às mídias sociais.

Mais recentemente, bem quando a atual invasão começou, o opositor prisioneiro Alexei Navalny teve que responder por desrespeito ao tribunal, segundo acusações, entre outras, de uso dos eufemismos “blin” e “yo-moyo” (equivalentes a “puts” e “caramba”). A mensagem é clara: se necessário, vamos pegá-lo pelo menor dos deslizes.

A determinação do estado Russo de controlar a linguagem dessa maneira formata a resposta daqueles que se opõem a essa política, muitas vezes em seu detrimento. Para começar, tabus tornam as palavras mais poderosas. A proibição total de qualquer reconhecimento da guerra foi o que tornou necessária a já famosa interrupção de Marina Ovsyannikova do telejornal do governo russo, mas também o que transformou seu cartaz de “Pare a guerra” – uma frase inquestionável em qualquer sociedade saudável – numa grande sensação política.

Além disso, a dicotomia provocada pelo Estado entre discurso e realidade dá espaço a contra-ataques criativos, ainda que inofensivos. No fim de fevereiro, as mídias sociais russas estavam repletas de piadas sobre o romance de Tolstói, “[Operação Militar Especia] e Paz”. A mesma lógica de substituição aparece com frequência em protestos. Proibidos de escrever “Não à guerra”, ideia que em russo é comunicada com somente duas palavras, como em inglês, “net voine”, “no war”, os manifestantes passaram a exibir cartazes dizendo “duas palavras” ou uma série de asteriscos. Esse último caso parece ainda mais com a censura dos palavrões, uma vez que os oito asteriscos em questão poderiam significar tanto “não à guerra” (net voine) quanto “foda-se a guerra” (khui voine). Mesmo pessoas segurando cartazes em branco foram atiradas no fundo das vans por policiais, assim como uma mulher com um cartaz dizendo “Não matarás”. “Absurdidade, banalidade, brutalidade” poderia ser o novo lema da Rússia.

Por mais que devamos ter cuidado ao associar tudo na Rússia moderna à era soviética, especialmente em um tempo em que as pessoas estão ansiosas para tirar a poeira dos clichês da Guerra Fria, essas idas e vindas entre governo e as manipulações linguísticas dissidentes de fato remetem à longa tradição da paródia nos slogans artísticos de Komar e Melamid e dos conceitualistas de Moscou, que chamavam a atenção para o vazio da retórica soviética. Esse legado continuou, em tempos mais inocentes, no evento artístico aparentemente apolítico Monstration, que começou na cidade siberiana de Novosibirsk, em 2004: os participantes seguravam cartazes e faixas com slogans surreais e cômicos que estavam desconectados dos problemas imediatos da Rússia, mas que, da mesma maneira, ridicularizavam a falta de iniciativa civil e o crescente abismo entre linguagem e realidade.

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Enquanto o governo russo quer fazer crer que luta pela preservação do seu idioma, na verdade o ataca ao assassinar russófonos, manchando a cultura do país por associação e enfraquecendo a imaginária conexão entre a palavra russa e o solo russo. Centenas de milhares de russos saíram do país nos últimos meses; comunidades russófonas nos países vizinhos estão defendendo a Ucrânia, talvez receando também serem “liberados”. Na Ucrânia, Putin dissipou de uma só vez as tensões entre os ucranianos de diferentes origens linguísticas, unindo-os contra um inimigo em comum.

Uma consequência de longo prazo dessa guerra é que o russo se torne uma raridade fora da Rússia, ausente das ruas não só de Kharkiv, mas Tashkent (capital do Usbequistão) e de Haifa (cidade israelense) também. Alternativamente, uma geração de russófonos anti-russo pode significar que, assim como foi com o inglês, a língua russa pode se beneficiar da ruptura de uma associação automática com a pátria imperial. Mas essas especulações pouco preocupam os combatentes russófonos da resistência na Ucrânia. A língua só leva até certo ponto. “Navio de guerra russo, vá se foder!” pode conter a semente de um futuro diferente e cosmopolita para a língua russa. Mas os russos não fizeram o que lhes foi pedido, e, até que o façam, a Ucrânia vai precisar de muito mais do que palavras.