QUANDO POLOS OPOSTOS SE UNIRAM

Às vezes parece que a polarização ideológica é uma marca do século XXI. Certamente, hoje em dia, os grupos polarizados estão inflados, maiores do que em qualquer outra época, enquanto o centro parece mínimo, e nunca foi assim, com essas dimensões. Mas é interessante observar como alguns episódios da história foram vistos de ângulos totalmente opostos em suas épocas e, para quem conhece o assunto, continuaram provocando profunda divergência quanto a seu significado ao longo de décadas e até hoje.

Um exemplo é o Pacto de Não-Agressão Germano-Soviético, assinado em agosto de 1939, menos de um mês antes de as forças hitleristas invadirem a Polônia. Enquanto comunistas de linhagem soviética defenderam desde sempre e até hoje a assinatura do Pacto pela URSS como única estratégia possível no sentido de adiar a invasão da Rússia pela Alemanha nazista, para pessoas não visceralmente ligadas ao comunismo o acordo de Stálin com Hitler foi uma vergonha, a facilitação do caminho para um ditador sanguinário e monstruoso, uma incompreensível aliança traidora com o mais feroz inimigo comum.

Naquele momento, verdade seja dita, em ambos os lados os líderes provinham da mesma laia. Mas, enfim, tem um livro novo da Todavia no mercado, BREVE HISTÓRIA DA SEGUNDA GUERRA MUNDIAL, de Ralf Georg Reuth, que oferece de maneira admiravelmente equilibrada e sintética, como já anuncia o título da obra, todos os dados para se tomar uma posição numa direção ou outra acerca desse episódio histórico e de outros ligados ao grande tema do maior, mais amplo e sanguinário conflito já aberto pela humanidade. Para provar essa afirmação, Narrativas & Depoimentos, coluna do blog VB&M, escolheu publicar o trecho do livro de Reuth sobre o polêmico Pacto Germano-Soviético, da página 76 até 82. Em sua nem tão santa ignorância, as maiorias nos grupos polarizados de hoje desconhecem esse capítulo da história (entre muitos outros) e tirariam proveito da leitura de obras como a de Ralf Georg Reuth.

*

Em agosto de 1939, Roosevelt, tendo em vista a escalada da situação na Europa, e apesar de todos os antagonismos, procurou contato com a União Soviética a fim de inseri-la numa frente contra Hitler. Um pacto com o poder comunista favorecia o Partido Trabalhista na Grã-Bretanha, mas também aquela parte dos conservadores ao redor de Churchill que combatia tenazmente a polítca de apaziguamento de Chamberlain. Devido a seu compromisso com a Polônia, este último considerava a parceria russo-britânica apenas uma construção auxiliar, motivo pelo qual as negociações específicas foram retardadas; quando iniciadas em meados de agosto em Moscou, acabaram sendo conduzidas de modo vacilante.

Do lado de Stálin, o motivo de sua reserva era uma profunda desconfiança em relação aos britânicos e o fato de reconhecer, na política de apaziguamento, uma tentativa de redirecionar a expansão de Hitler para o Leste. O centro da estratégia de Stálin era impedir o cerco da União Soviética e uma guerra de dois fronts. E do ponto de vista do Kremlin, a situação era tudo menos cor-de-rosa: desde maio de 1939, as tropas japonesas combatiam ferozmente o Exército soviético do Extremo Oriente na região de fronteira entre a Manchúria e a Mongólia. No Ocidente, a Alemanha — o parceiro anticomintern do Japão — tentava colocar a Polônia contra a União Soviética. Um front alemão-polonês-japonês era o pesadelo de Stálin. Como o Kremlin também não havia conseguido aprofundar a oposição entre as forças ocidentais e a Alemanha nacional-socialista, as negociações se tornaram imprescindíveis. Ainda em setembro de 1938, Moscou tentou em vão pressionar Paris, na esperança de convencer a França a se engajar publicamente no lado dos já desesperançados combatentes “espanhóis vermelhos”. Ao mesmo tempo, Stálin exortou as forças ocidentais a serem firmes na questão dos Sudetos. Tendo em vista todos esses fatores, deu-se uma reviravolta na política externa soviética: desde abril de 1939, Stálin procurou aliar-se ao seu declarado inimigo mortal Hitler — logrou sucesso, para horror do restante do mundo.

Em 23 de agosto, o ministro das Relações Exteriores Joachim von Ribbentrop e Viatcheslav Mólotov, comissário do povo para o Exterior, assinaram na presença de Stálin um pacto de não agressão, que assegurava também que um lado não se meteria nas disputas militares em que o outro lado estivesse envolvido. Além disso, um protocolo extra, cuja existência o Kremlin negou por décadas após o fim da Segunda Guerra Mundial, delimitava a esfera de influência de ambas as potências na Europa central. A Letônia, a Estônia e a Finlândia, partes da Romênia e da Bessarábia deveriam pertencer à zona de poder soviético. O mesmo valia para o Leste do Estado polonês a ser liquidado. A linha de separação seria formada pelos rios Pissa, Narew, Vístula e San. Isso correspondia mais ou menos à Linha Curzon, a fronteira oriental definida em Versalhes do Estado polonês restaurado, que em 1920 havia sido empurrada por cerca de duzentos quilômetros para leste como resultado da Guerra Polaco-Soviética.

Para Hitler, o pacto — celebrado vivamente pelos generais, pelo Ministério das Relações Exteriores e por outras instâncias — significava a saída do impasse estratégico. Ele ainda esperava chegar a um acordo com a Inglaterra. O “pacto com os russos”, que para Hitler não passava de uma manobra tática para criar as condições de destruir o parceiro do acordo, oferecia ao mesmo tempo mais uma opção para o caso de Londres continuar resistindo aos seus acenos. Em agosto de 1939, ele supostamente disse a Carl Jacob Burckhardt, comissário da Liga das Nações para Danzig: “Tudo o que faço é direcionado contra a Rússia; se o Ocidente é burro e cego demais para compreender isso, serei obrigado a entrar em acordo com os russos, bater o Ocidente e, depois de sua derrota, me voltar contra a União Soviética com todas as minhas forças reunidas”.

Para Stálin, o pacto com Hitler trouxe um butim vultoso. Ele pôde expandir consideravelmente sua esfera de influência para o Oeste. Mas não só isso: o acordo iria — assim esperava Stálin — finalmente levar à guerra entre a Alemanha nacional-socialista e as forças ocidentais e, ainda por cima, oferecer à Rússia a chance de se expandir ainda mais na direção da Europa central. Stálin estava consciente de que seu oponente nacional-socialista iria atacar a União Soviética depois de ter garantida sua liberdade de ação no Ocidente. A diferença entre os dois estava na percepção temporal. Hitler jogava com o perigo — impulsionado por sua alucinação e pelo temor de não ter tempo suficiente para realizá-la. Stálin agia segundo um cálculo frio, no estilo de um cuidadoso operador da “política da força”, pois nesse pacto só haveria um vencedor.

O Pacto de Não Agressão Germano-Soviético, sensação mundial e cujo choque imobilizou Londres e Paris, causou a Hitler (e não apenas entre seus seguidores) uma grave crise de credibilidade. Pois desde seu início político, em meio ao caos do período pós-guerra em Munique, uma boa parte de sua agitação era dirigida contra o “bolchevismo judaico”. Contra este ele havia iniciado um Pacto Anticomintern não havia tanto tempo assim. No Japão, as reações foram correspondentes, visto que o curso da política de relações exteriores de Tóquio — apostar na Alemanha — tinha fracassado com o arranjo germano-soviético. O atônito primeiro-ministro Kiichiro Hiranuma demitiu-se dizendo que o mundo europeu era “complexo e estranho”. O governo seguinte, liderado por Nobuyuki Abe e com Kichisaburo Nomura como ministro das Relações Exteriores, estava empenhado, a partir da manutenção de uma neutralidade estrita, em alcançar uma melhoria nas relações com as potências ocidentais e uma conciliação com os Estados Unidos.

E até Mussolini, parceiro no Pacto Anticomintern, cujo país havia selado o “Pacto de Aço” em maio de 1939 com a Alemanha, espantou-se quando Hitler, após anos das mais violentas agitações contra a União Soviética, justificou a mudança de posição dizendo que “o princípio bolchevista havia se modificado em direção a uma forma de vida nacional-russa”. Logo ele acusaria o alemão de trair seus objetivos antibolchevistas. Para Mussolini, esse pacto com Stálin também era uma afronta porque ele temia que a Itália fosse envolvida numa grande guerra europeia pela Alemanha devido ao aguardado ataque contra a Polônia. Por esse motivo, o “Duce” havia tornado o papel da Itália dependente da posição da Inglaterra. Só para o caso em que “o conflito permaneça localizado é que a Itália vai garantir à Alemanha toda forma de ajuda política e econômica que seja solicitada”. De outro modo, a Itália se manteria de fora porque não estava pronta para a guerra, escreveu ele a Hitler.

Isso custou o triunfo de Hitler sobre o Ocidente. Como que tomado por uma compulsão, Hitler estava decidido a enfrentar a Polônia sem delongas. Sua superestimação egomaníaca ficou patente quando, em 22 de agosto de 1939, ele explicou seus motivos em relação à guerra para a cúpula da Wehrmacht e para os comandantes envolvidos na campanha: “Essencialmente depende de mim, da minha existência, por causa das minhas capacidades políticas […]. Desse modo, minha existência é um fator de grande valor. Mas posso ser eliminado a qualquer hora por um criminoso, por um demente”. Mais uma vez a ideia maníaca de que a Alemanha só conseguiria aguentar mais alguns poucos anos num mundo de inimigos foi expressa em meio às suas exposições: “Não temos nada a perder, apenas a ganhar”, ele disse. E prosseguiu: “Agora a probabilidade ainda é grande de o Ocidente não se meter. Temos de assumir, com absoluta determinação, o risco de atacar ou sermos exterminados, cedo ou tarde”. Hitler disse ainda que “haverá um motivo propagandístico para o início da guerra, crível ou não. Posteriormente, o vencedor não será questionado sobre haver falado ou não a verdade”, pois, segundo ele, a razão pertence aos mais fortes.
Tendo em vista o pacto entre Hitler e Stálin e a escalada do conflito envolvendo Danzig, as capitais europeias sabiam que podiam esperar em breve um ataque alemão à Polônia. Nem um pouco abalada pela associação germano-soviética ou pelas ameaças de Hitler de não querer mais aceitar “usurpações” contra as parcelas alemãs da população, Varsóvia foi tomada por mensagens nacionalistas e, no caso de uma guerra, acreditava num rápido avanço do Exército polonês sobre Berlim. Nesse sentido, o governo polonês confiava nas garantias de Londres e, portanto, no apoio militar da Grã-Bretanha e da França. Entretanto, ninguém por ali mostrava grande disposição de morrer por Danzig, motivo pelo qual Daladier tentava refrear Varsóvia e Berlim. Assim como Chamberlain e também Mussolini, que havia aventado uma nova conferência de paz, o francês apostava num resto de razão em Hitler. O desiludido governo inglês estava decidido a invocá-la implacavelmente e talvez assim conseguir manter a paz.

Enquanto isso, o ditador alemão fechava mais uma vez compromissos  dos mais abrangentes com a Grã-Bretanha, contanto que ela não atrapalhasse uma regulamentação da “questão polonesa”. (A “regulamentação da questão polonesa” não era outra coisa senão a extinção do Estado polonês e a criação de uma área de concentração para a verdadeira guerra de Hitler contra a Rússia judaico-bolchevista.) Ele prometeu ao embaixador britânico Nevile Henderson que, nesse caso, faria acordos com o governo londrino que garantiriam a manutenção do Império, chegando a acenar com apoio efetivo para isso. Prometeu também um “limite razoável” para o rearmamento, além de reconhecer a fronteira ocidental alemã como definitiva.

Entretanto, o governo britânico — que sabia que era apoiado por Roosevelt —  recusou; ainda assim Hitler não quis acreditar que a Grã-Bretanha estivesse falando sério; afinal, ela tinha aceitado o rearmamento da Alemanha, a ocupação da Renânia, a anexação da Áustria e o ataque a Praga. Ele não queria enxergar que a política de apaziguamento se devia aos princípios da política de equilíbrio de forças de Londres, cuja infração duradoura viria a ser o verdadeiro motivo da guerra para a Grã-Bretanha. Ao considerar que os Estados Unidos se preparavam para ser o rival natural da Grã-Bretanha, Hitler estava profundamente convencido de que a autoafirmação da Europa só poderia ser alcançada por meio de uma coalizão, a partir de um equilíbrio de interesses, da Alemanha com a “racialmente aparentada” Grã-Bretanha. Hitler supunha haver aí algo como uma legitimidade histórica. Por essa razão, ele acreditava que conseguiria se safar também dessa vez sem uma declaração de guerra por parte da Grã-Bretanha e da França. Para Göring, que o desaconselhou tendo em vista os riscos envolvidos, Hitler disse: “Na minha vida, sempre estive metido em jogos perigosos”. No fim das contas, devido ao seu cenário de batalha mundial e à pressão do tempo, ele acreditou que já não tinha mais alternativa.