Para fechar a semana, a coluna Narrativas traz uma bem humorada crônica de Domingos Pellegrini em que o autor reflete sobre a burguesia e a enaltece: não fosse por sua condição burguesa, não teria tido acesso aos livros que iluminaram sua percepção da sociedade.
***
QUE BOM SER BURGUÊS!
Domingos Pellegrini
Sou exemplo de que o jovem incendiário será um velho bombeiro.
Nasci pequeno burguês, filho de barbeiro e dona de pensão, e tive casa, comida e escola boas; mas aos 17 virei socialista, encantado por doutrinadores bem falantes e uma doutrina heróica. Eu ia não só livrar o mundo da opressão capitalista como, também, ia começar um novo mundo com um Novo Homem (e passei a renegar minha origem, sem ver que, não fosse o lar burguês, não teria os livros que me deram bem mais que as escolas).
Consegui me curar rápido dessa utopia que, em nome dos trabalhadores, só criou elites fechadas e corruptas como as elites aristocráticas dos regimes anteriores, porém com tão grande capacidade de insucesso que suas “repúblicas populares” caíram em dominó. E seus dirigentes socialistas tornaram-se… burguesia.
O socialismo pregou no capitalismo o rótulo de burguês, como se isso fosse ruim, inclusive omitindo que quase todos os líderes socialistas – Marx, Engels, Fidel, Guevara, Trotsky… – foram filhos da burguesia. Ou burguesias – pequena, média, alta e seus rebentos – entretanto todas descendentes do burguês Gutemberg.
Aos 18, na UEL, encenamos a Ode ao Burguês, de Mário de Andrade, que tem simploriedades assim: “Morte à gordura! Ódio aos secos e molhados! Ódio vermelho! Ódio fecundo!” Esse poemau é uma das bestices do burguês Mário de Andrade. Pois que escritores não foram ou não são burgueses?
No cine-clube da moçada “progressista” nos anos 70, um dia tripudiamos do operário que, num documentário, dizia que, finalmente empregado numa indústria, podia realizar o sonho de comer pizza. Achamos aquilo horrivelmente burguês… depois fomos ao Rodeio comer pizza.
Tenho orgulho de ser burguês, essa classe social que, sem fazer revolução armada, acabou com os regimes aristocráticos apenas criando oficinas e empresas e enriquecendo, e depois criou os direitos civis e os direitos humanos. Também tenho engulhos pelos erros e delírios da burguesia, como as ditaduras que criou ou apoiou. Mas hoje vemos que a grande maioria da burguesia opta pela democracia, capaz de corrigir erros e aperfeiçoar o regime com eleições e constituintes. Revoluções, adeus.
Aos 19, com o amigo Arnaldo Bertone, viajamos semana diuturnamente de trem, na dureza da segunda classe, com cerveja morna e sanduíches murchos. Guevaristas, queríamos sofrer como o proletariado, a massa conceitual que, com nossa revolução, íamos libertar da opressão capitalista… Voltamos famintos e sonolentos, comemos, dormimos e deixamos de querer sofrer.
E, sem venda nos olhos, passei a ver além dos fatos. Rapazola, lia com fervor notícias das Ligas Camponesas e, hoje, vejo que um ex-sem-terra, com terra, se tocar bem seu sitinho, seguindo a assistência técnica e aproveitando oportunidades, que destino terá a não ser burguesar?
Burguesia sempre foi fonte de ciência, arte, tecnologia e democracia. Ao contrário do querido Mário de Andrade, viva a burguesia! Até porque, quando todos forem burgueses, acabam a pobreza e tanta desigualdade social, não?