REVISITAR O PASSADO PARA ENTENDER O PRESENTE

Anna Luiza Cardoso e Luciana Villas-Boas

Escritor, historiador e produtor cultural, autor de vasta obra literária de ficção e não ficção sobre São Paulo, José Roberto Walker Conversa Com (A) Gente sobre seu fascínio pelo período de industrialização da cidade, na primeira metade do século passado, que culminou na megalópole de hoje. A efervescência cultural paulistana, refletida no Movimento Modernista da Semana de 22, foi objeto de extensa pesquisa que baseou o romance de estreia de Walker, NEVE NA MANHÃ DE SÃO PAULO (Companhia das Letras), reconstrução narrativamente genial da história de amor entre o escritor Oswald de Andrade e a estudante Maria de Lourdes, a Miss Cyclone. Levou também à descoberta da famosa garçonnière de Oswald, localizada na Rua Líbero Badaró e eternizada no diário coletivo escrito por seus frequentadores, “ O perfeito cozinheiro das almas deste mundo”.

Walker também tem neste blog a oportunidade de contar como se deu a descoberta da garçonnière, de discorrer sobre seu novo livro, o inédito de não-ficção AS BOAS FAMÍLIAS E OS OUTROS, sobre a greve geral de 1917, além de compartilhar ideias para um novo romance. Perguntado sobre o encanto pelo passado de São Paulo, diz: “Para quem, como eu, tem sempre os olhos no futuro, parece contraditório esse interesse pelo passado, como um certo tipo de saudosismo. Não é. É preciso compreender o passado para caminhar para adiante.”

VB&M: Você tem uma vasta obra de ficção e não-ficção sobre São Paulo. Quando identificou seu amor pela cidade e o que o levou a transformar o sentimento em literatura? O que o encanta em São Paulo?

JRW: De fato, tudo o que já escrevi tem São Paulo como foco. Minha ligação com a cidade sempre foi profunda. Nasci na Liberdade, um bairro antigo, colado ao Centro. Da minha janela, quando eu era muito criança, se podia ouvir os sinos da Catedral que tocavam ao meio-dia e às seis da tarde. Eu andava muito pelo centro com o meu avô, que era um paulistano entusiasmado, embora nascido na Itália. Percorrendo as ruas, ele ia me apontando o que havia ali na sua infância e juventude, onde ficavam as igrejas, os teatros, os cinemas. Me mostrava também os prédios mais bonitos, que ainda sobreviviam. Foi ele que me contou que, quando era menino, tinha que pagar dois tostões de pedágio para atravessar o Viaduto do Chá e que as calçadas eram formadas por ripas de madeira que tremiam quando os bondes passavam. Essas impressões e sentimentos em relação à cidade me acompanharam por toda a minha vida.

São Paulo hoje é muito diferente. Ao contrário do Rio de Janeiro, Salvador e muitas outras cidades brasileiras, onde é fácil perceber o transcorrer da história percorrendo as suas ruas, São Paulo esconde cada vez mais o que ela foi, e parece uma cidade onde tudo é imediato e só o presente é visível. Isso não acontece só em São Paulo, acho que é uma das características deste século XXI. Mas em São Paulo é mais forte.

Para quem, como eu, tem sempre os olhos no futuro, parece contraditório esse interesse pelo passado, como um certo tipo de saudosismo. Não é. É preciso compreender o passado para caminhar para adiante.

VB&M: Sua pesquisa sobre Oswald de Andrade e o movimento que culminou na Semana de Arte Moderna de 22 levou-o à garçonnière do autor na Líbero Badaró, onde se reuniam os jovens modernistas, local eternizado em “O perfeito cozinheiro das almas deste mundo”, mas até então desconhecido do público. Como se deu essa descoberta?

JRW: Desde jovem eu era fascinado por essa história e conhecia “O perfeito cozinheiro das almas deste mundo”Queria saber mais sobre aquilo. O que mais chamava a minha atenção era a presença constante da Maria de Lourdes, que os frequentadores apelidaram imediatamente de Miss Cyclone, nas páginas desse célebre diário coletivo. Mesmo quando não estava presente, ela era a figura central. Tinha 18 anos, era apenas uma normalista, e Oswald logo se apaixonou. Eles viveram um romance intenso e tempestuoso, e a força que emanava dela marcou Oswald pelo resto da vida.

Comecei a pesquisa em 2011 e à medida que ia avançando, fui percebendo que os documentos eram abundantes, e era fácil achar referências. Havia muita coisa, o que é raríssimo. Assim, eu quis retratar bem aquele cotidiano e tentei achar uma foto do prédio 67 da Rua Líbero Badaró, onde ficava a garçonnière e do qual eu tinha certeza de ter sido demolido. A numeração da rua mudou várias vezes ao longo do tempo e eu não sabia onde esse prédio teria ficado. Eu queria poder descrever com precisão o lugar no meu livro. Colecionei mais de 200 fotos da rua, e em nenhuma se podia ver um edifício com o número 67, nem um vizinho que servisse de indicação.

Buscando nos arquivos da Prefeitura de São Paulo, achamos finalmente o pedido de licença de construção com as plantas e o desenho da fachada. Pelo desenho, minha assistente e eu imediatamente percebemos que já havíamos visto aquele prédio. Corremos para lá e foi incrível. Ao contrário do que se esperava, a construção havia sobrevivido aos 100 anos de mudanças da cidade e permanecia intacta. Estava fechada, mas inteira. Depois de muita negociação conseguimos entrar no prédio deserto e escuro, e foi muito impactante visitar as salas onde Oswald e a Miss Cyclone viveram aquele amor louco. Estavam praticamente intocadas, com as maçanetes, vidros, pisos e forros originais. Não era difícil imaginar os dois ali, acompanhados de Monteiro Lobato, Guilherme de Almeida, Menotti del Picchia e todos os outros frequentadores, mantendo aquelas discussões intermináveis que o diário registra.

VB&M: A história de amor entre Oswald de Andrade e a fascinante Miss Cyclone, a Maria de Lourdes, é tema de seu belíssimo romance de estreia, NEVE NA MANHÃ DE SÃO PAULO (Companhia das Letras, 2017). Por que, com toda a documentação levantada, você decidiu escrever um romance e não um livro de História?

JRW: Eu sempre me dediquei à história e acho que penso como historiador. Quando comecei a pesquisar o tema da garçonnière minha ideia era fazer um trabalho mais acadêmico. Porém, logo vi que era impossível. Havia uma dimensão humana, de sentimentos em conflito, que só um romance poderia tentar retratar. Quanto mais eu me aprofundava na documentação, mais isso ficava claro.

Historiadores trabalham com traços, referências, os poucos testemunhos que o passado nos lega. No caso da garçonnière, eu tinha à minha disposição, além do famoso diário, “O perfeito  cozinheiro das almas deste mundo”, ensaio de memória coletiva escrito pelos muitos frequentadores da garçonnière, também as cartas trocadas entre eles, os diários da Maria de Lourdes, os depoimentos dos seus contemporâneos, uma quantidade incrível de material que fez automaticamente sobressair a dimensão humana dos personagens e sobretudo a incrível personalidade da Miss Cyclone, uma mulher moderna, forte e ousada, muito além do que era possível esperar para as mulheres daquela época. E que tinha apenas 18 anos.

VB&M: Seu último livro, ainda inédito, é uma narrativa histórica sobre a Greve Geral de 1917. Provisoriamente intitulado AS BOAS FAMÍLIAS, trata da participação da elite paulistana na greve operária e sua importância para a força do movimento. Que circunstâncias viabilizaram essa aliança e qual sua ressonância nos dias de hoje?

JRW: Quem estuda história é sempre assombrado pelo presente. Não se pode fugir dele, e aquilo que nós sabemos hoje contamina a nossa compreensão do passado. AS BOAS FAMÍLIAS E OS OUTROS procura compreender a greve geral de 1917, a maior já havida no Brasil, dentro do contexto da sua época.

A greve que conseguiu paralisar inteiramente a cidade de São Paulo é também um marco inicial, de grande impacto, das lutas operárias no Brasil. Nesse período de lutas sociais, quando os anarquistas tinham um papel preponderante e pouco se sabia da Rússia, os operários não eram vistos ainda como “a classe operária” e sobretudo como um inimigo capaz de mudar as bases da sociedade estabelecida.

Depois da greve e da Revolução Russa, essa compreensão mudou rapidamente, e o surgimento do Partido Comunista teve um papel nessa mudança. Mas em 1917 ainda não era assim, e as elites paulistas temiam mais os industriais imigrantes, que ficavam cada vez mais ricos e ameaçavam a sua hegemonia, do que os operários, vistos pelas elites apenas como “os pobres”.

Durante a greve, a imprensa de São Paulo, porta-voz das suas elites, foi unânime em defender as reivindicações dos operários e culpar exclusivamente os industriais – “exploradores” – de se aproveitarem da conjuntura criada pela guerra na Europa “para ganhar mais”.

É esse contexto, de lutas específicas daqueles tempos, que o livro pretende ressaltar.

VB&M: Na última vez em que conversamos, você estava às voltas com a história de mais uma fascinante e desconhecida personagem paulistana, que por ora mantenho anônima. Também ela virará personagem literária? Temos um novo romance a caminho?

JRW: Sim. São os incertos benefícios da pandemia… Dá à gente, tempo de pesquisar e escrever mais. Este próximo romance leva o título provisório de CAFÉ e tem como cenário o ambiente em que vivia a elite paulista, tanto no campo quanto na cidade. O projeto, previsto para ser concluído até o final deste ano, recebeu o Prêmio por Histórico de Realização em Literatura, do Governo de São Paulo, por meio da lei Aldir Blanc, em dezembro de 2020.

A narrativa, embora cheia de flashbacks, se passa durante a Revolução de 1924, quando a cidade foi tomada por militares rebeldes que puseram o governo para correr e controlaram a capital por 23 dias. Nesse período, São Paulo foi constantemente bombardeada, e por volta de 300 mil moradores fugiram e se refugiaram no interior e cidades próximas. Muitos prédios foram destruídos e mais de 500 pessoas morreram nesses dias de grande angústia.

Em meio à revolução, os personagens se veem enredados também numa trama de intrigas e crimes que envolvem figuras conhecidas da sociedade.