O professor e economista Alberto Flaksman, que durante mais de 30 anos atuou na área de cinema sob diferentes chapéus, desde diretor da Vídeo Filmes, de Walter Salles, a executivo de Embrafilme e Ancine, volta a presentear o blog da LVB & Co comentando a adaptação de uma obra literária para o audiovisual. Segundo ele, “O quarto ao lado”, de Pedro Almodóvar, não faz jus a O QUE VOCÊ ESTÁ ENFRENTANDO, romance de Sigrid Nunez, que inspirou o filme e está publicado no Brasil pela Editora Instante. No desenvolvimento de sua argumentação, ele recorre a outra adaptação de livro para cinema, o filme “Ainda estou aqui”, de Walter Salles, baseado nas memórias de Marcelo Rubens Paiva.
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Por Alberto Flaksman
Escrever a adaptação de um livro para o cinema é algo muito comum, principalmente em Hollywood, onde os produtores procuraram sempre que possível partir de uma história já escrita por autor bem sucedido, em vez de correr riscos filmando um roteiro original. Não conheço os números precisos, mas tenho a impressão de que em nenhuma outra indústria cinematográfica tantos filmes de grande sucesso comercial e de crítica foram produzidos a partir da aquisição de direitos de livros já escritos, embora nem sempre já publicados. Ainda é muito comum um produtor de cinema comprar os direitos de um livro diretamente das mãos do seu autor ou agente literário, antes mesmo que ele chegue às livrarias.
Este não é o caso de “O quarto ao lado”, filme escrito e dirigido por Pedro Almodóvar com base no livro O QUE VOCÊ ESTÁ ENFRENTANDO, da escritora novaiorquina Sigrid Nunez. Produção espanhola, embora falada em inglês, o filme chegou às telas de cinema neste ano de 2024, ao passo que o livro foi originalmente publicado em 2020 nos Estados Unidos (e em 2021 no Brasil, pela editora Instante).
Fiel ao seu estilo, neste romance narrado na primeira pessoa, Sigrid Nunez entremeia sua história ficcional sobre duas amigas, Ingrid e Martha, uma escritora, outra jornalista – a segunda é doente terminal e pensa em perpetrar suicídio com o apoio da primeira – com digressões sempre inteligentes sobre relações amorosas e familiares, questões ambientais, a condição feminina e, como não poderia deixar de ser, comentários sobre outros escritores e citações literárias. Além de histórias mais ou menos curtas que a narradora ouviu sobre a doença e morte de outras mulheres. Tudo isso se encaixa perfeitamente e faz da leitura desta, como de qualquer outra obra de Nunez, um grande prazer.
Logo no início do livro, Ingrid – que pode ser um alter ego da própria Sigrid – assiste quase por acaso à palestra de um escritor. O homem é rigorosamente pessimista quanto ao futuro da humanidade, de um pensamento crítico devastador. Não apenas em relação à destruição da natureza e do meio ambiente, como também no que diz respeito à estupidez política das pessoas. Ele faz uma longa lista dos males que acabarão conosco: a próxima grande pandemia, a ascensão de regimes de extrema direita em todo o mundo, a normalização da mentira como estratégia política, bem como a ausência de meios para combatê-los. Em consequência, pergunta ele, ainda deveríamos ter filhos? Ou seria um erro trazer seres humanos a um mundo como este? O público reage mal a essa visão negativa, embora apresentada com argumentos impecáveis.
É admirável como Sigrid Nunez emula de maneira absolutamente convincente a voz do palestrante masculino, brilhante e agressivo, justamente o contrário da sua personagem. Exemplos como este se multiplicam ao longo do livro. Contudo, essa característica dos romances de Sigrid Nunez aumenta, e muito, as dificuldades da sua fiel adaptação ao cinema. Os trechos ensaísticos e as divagações da narradora enriquecem o romance, mas representam obstáculos na sua transposição para a tela. Talvez por isso só agora dois cineastas decidiram enfrentar a difícil tarefa de levar dois dos livros de Sigrid Nunez, que já tem uma extensa obra publicada, ao cinema (o outro filme, ainda inédito no Brasil, baseia-se no romance O AMIGO, vencedor do National Book Award na categoria Ficção em 2018, também publicado pela Instante).
Ao escrever o roteiro do seu filme, Almodóvar optou, infelizmente, pela simplificação. Enquanto a história das duas amigas, tal como contada por Nunez, é muito rica e provoca crescente tensão no leitor, o partido tomado por Almodóvar foi de transformá-la num melodrama ao qual se assiste com alguma indiferença. Um personagem importante como o escritor palestrante, que se revela ser o ex-marido da narradora, é reduzido até se tornar quase insignificante. Até as tiradas de cortante ironia presentes no livro foram eliminadas pelo roteirista e diretor.
Almodóvar comete outras traições contra o livro de Nunez. A casa que Martha aluga, supostamente para passar os seus últimos dias, é descrita no livro como uma clássica mansão rural americana, mas Almodóvar não resiste a escolher como locação uma construção modernosa, típica de nouveaux riches e sem qualquer personalidade arquitetônica. A trilha musical é onipresente na segunda parte do filme, como se procurasse acender as emoções dos espectadores, amortecidas diante das cenas e diálogos escritos pelo diretor. As cenas ao final do filme, com a intervenção da polícia, são inexistentes no romance original e nada acrescentam à história. Por último, a interpretação de Julianne Moore, no papel de Ingrid, é forçada e não convence como uma escritora de sucesso. Já Tilda Swinton, cuja figura de extrema magreza parece mesmo com a de alguém acometido por câncer terminal, salva parcialmente o filme.
Não resisto à tentação de comparar este filme de Almodóvar, que recebeu o Leão de Ouro no último Festival de Veneza, com o filme de Walter Salles “Ainda estou aqui”, prestes a ser lançado no Brasil e, competindo no mesmo festival, ficou com o prêmio de Melhor Roteiro. Também produzido a partir da adaptação de um livro, a obra homônima escrita por Marcelo Rubens Paiva, “Ainda estou aqui” é muito superior a “O quarto ao lado”, em todos os sentidos. A começar pela interpretação excepcional de Fernanda Torres no papel de Eunice Paiva, muito mais persuasiva que a das atrizes no filme do espanhol. Quanto à adequação do tom e justeza da direção, a distância entre o filme de Walter Salles e o de Almodóvar é igualmente grande. O que “Ainda estou aqui” me provocou de angústia e surpresas, também já tendo lido o livro original, contrasta muito com a condução um tanto óbvia do drama de “O quarto ao lado”.
O filme de Walter Salles surpreende pela dureza com que expõe os crimes cometidos pela ditadura militar e pela carga de humanidade que seus personagens transmitem, mesmo para quem já conhece a história real do sequestro e assassinato sob tortura do ex-deputado Rubens Paiva. Já a encenação de Almodóvar, em contraste, é cheia de artificialismos. Até a locação utilizada para representar a casa da família Paiva é um achado muito mais convincente do que tanto o apartamento de Martha, em andar alto e com vista panorâmica (no livro ele se localiza num sexto andar, de frente para um parque) quanto a tal mansão ultramoderna em meio à natureza que parece um cenário construído para o filme.
Concluo com duas recomendações. Vale a pena conhecer diretamente não apenas O QUE VOCÊ ESTÁ ENFRENTANDO como toda a magnífica obra literária de Sigrid Nunez, uma das melhores escritoras contemporâneas, que já tem vários dos seus livros publicados em português. Espero que em breve toda a sua obra esteja traduzida em nosso idioma e publicada no Brasil. E ninguém deve perder “Eu ainda estou aqui”, um filme que denuncia vigorosamente as prisões arbitrárias e a prática da tortura durante a ditadura militar, enquanto emociona pela coragem e resiliência demonstrada Eunice Paiva, mulher de Rubens, na interpretação imperdível de Fernanda Torres (Eunice madura) e Fernanda Montenegro (Eunice idosa).