Alberto Flaksman
Estamos em junho de 1941. A Alemanha nazista começa a invasão da União Soviética, com quem firmara dois anos antes um tratado de não-agressão. Um jovem judeu ucraniano, Yefim Shulman, alistado recentemente no exército soviético para defender a sua pátria, está com seu pelotão armado de um grande canhão na Lituânia. Ele tem 19 anos e é fisicamente muito forte, o que o ajudou a conquistar o posto de artilheiro. As forças alemãs avançam, por terra e pelo ar. Bombardeiam a posição em que se encontram os soviéticos. É um massacre, do qual sobram apenas oito soldados, Yefim e mais sete. Que serão rendidos pelos alemães e detidos em um campo de prisioneiros.
Este é o início da extraordinária saga desse ucraniano que, mesmo sendo judeu e vivendo permanentemente amedrontado face à possibilidade de ser identificado devido à sua circuncisão e imediatamente morto com um tiro na nuca, conseguirá sobreviver à Segunda Guerra Mundial graças à sua resiliência e, sobretudo, um bocado de sorte. Depois da vitória contra os nazistas, ele será considerado um herói em seu país por ter participado da batalha final em Berlim.
Mas Yefim passará a viver sob uma nova ameaça: a de que as autoridades soviéticas descubram que, na verdade, ele passou praticamente toda a guerra sob o jugo alemão, tendo sobrevivido milagrosamente aos horrores dos campos de prisioneiros nazistas e ao trabalho escravo durante muitos anos numa fazenda e mais tarde numa oficina mecânica. Estes são fatos que ele esconderá ao longo da sua vida, inclusive de seus familiares. Isso porque, como nem todos os leitores sabem, o ditador Stalin considerava que sobreviventes como Yefim eram desertores e traidores do seu povo e sua pátria. Em consequência, ele mandava prendê-los e enviá-los para um gulag na Sibéria, por 10 anos. Parece incrível, mas é a verdade histórica.
Paralelamente às desventuras de Yefim na Alemanha nazista, a autora de SEU COMPARECIMENTO É OBRIGATÓRIO, a ucraniana-americana Sasha Vasilyuk, narra também a história da família de origem do protagonista, antes do seu alistamento no exército: cinco irmãos e irmãs, um pai ausente e a mãe submissa; sua formação universitária em paleontologia depois da guerra; seu encontro e posterior casamento com uma colega de profissão também ucraniana, embora não-judia; e as relações intrafamiliares. Particularmente com três mulheres: Nina, a esposa; Vita, a filha mais velha, e Masha, sua neta. Inteligentes, cultas e, na medida do que era possível, críticas do regime soviético, especialmente da sua vertente stalinista, elas só conhecerão a verdadeira história de Yefim depois da sua morte, em 2007, na cidade de Donetsk, na Ucrânia, ao descobrirem uma carta que este escrevera à KGB na qual contou como havia passado os anos de guerra na Alemanha, inicialmente como prisioneiro de guerra, e mais tarde como trabalhador estrangeiro, um osterarbeiter.
A história de Yefim e sua família após a Segunda Guerra é habilmente intercalada pela autora em capítulos que alternam eventos do passado com os do presente, fazendo do livro uma leitura compulsiva e levando o leitor a conhecer melhor uma realidade distante. Mas que, por conta da recente invasão do território da Ucrânia pelo governo russo, tem ocupado a nossa mídia desde o início do conflito armado. A leitura desse excelente livro ajuda a compreender as origens dos sentimentos hostis que, há décadas, opõem os ucranianos aos russos.
Sasha Vasilyuk cresceu entre esses países, a Ucrânia e a Rússia, até emigrar, com 13 anos, para os Estados Unidos. Seu livro é surpreendente pelos conhecimentos detalhados demonstrados pela autora a respeito da vida militar durante a Segunda Guerra Mundial. Bem como sobre a dura vida dos civis na Ucrânia sob o governo ou o tacão militar soviético, desde a trágica fome provocada por Stalin, que matou milhões de ucranianos nos anos 1930 — o Holodomor — até a anexação mais recente pela Rússia da Crimeia e de partes da região do Donbass, onde se situa a cidade na qual os personagens Nina e Yefim exercem suas atividades acadêmicas e são testemunhas da forçada russificação promovida primeiro por Stalin e agora por Putin.
Sempre minuciosa nas suas descrições e na construção das suas cenas, Sacha Vasilyuk parece ter tido acesso a testemunhos em primeira pessoa, além de ter feito pesquisas aprofundadas. Sua atenção meticulosa aos detalhes e à caracterização de seus personagens transmite ao leitor uma sensação de autenticidade histórica e emocional que lhe permitem ter acesso a fatos históricos pouco explorados na literatura. Por exemplo, como o sistema soviético era totalitário e parecido, em muitos aspectos, com o Terceiro Reich de Hitler. SEU COMPARECIMENTO É OBRIGATÓRIO foi muito bem traduzido por Clóvis Marques e é um dos melhores livros que li neste ano de 2024.