TRÊS VEZES INOCENTE

O professor Alberto Flaksman (@abeflaksman), que por três décadas atuou como executivo da área do cinema, traz para esta coluna um comentário sobre ACIMA DE QUALQUER SUSPEITA (PRESUMED INNOCENT no original) a partir das duas adaptações para audiovisual pelas quais passou o thriller de tribunal de Scott Turow. O livro, hoje publicado no Brasil pela Planeta (@planetadelivrosbrasil), é de 1987; o filme de Alan J. Pakula, razoavelmente fiel à obra literária, estreou em 1990; finalmente, a série do canal Apple TV+, teve este ano sua primeira temporada e outra virá a seguir. Muito interessante parar para refletir sobre as alterações na psicologia dos personagens e na própria trama que a passagem do tempo impôs à história e ao roteiro. Comparando livro, filme e série, é possível ver o tanto que esta última difere da obra literária original, mesmo contando com grande participação do autor na sua produção. No próximo ano, Turow lança nos EUA o livro PRESUMED GUILTY, bastante derivado de ACIMA DE QUALQUER SUSPEITA, o que será mais uma oportunidade de refletir sobre o que está envolvido na adaptação de um formato artístico a outro.

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No ano longínquo de 1987, portanto há mais de 30 anos, foi publicado nos Estados Unidos um livro de ficção intitulado “Presumed Innocent”. Qualificado pelos editores como um thriller jurídico, o livro tornou-se um sucesso editorial não somente em seu país de origem, c0mo também em muitos outros países. Inclusive no Brasil, onde foi traduzido e recebeu o título (a meu ver equivocado) de ACIMA DE QUALQUER SUSPEITA.

O livro é ambientado principalmente na promotoria do condado ficcional de Kindle (um condado equivale aproximadamente a um município brasileiro). Nos Estados Unidos, o promotor-chefe de um condado é eleito, e não nomeado. Trata-se de uma eleição importante, já que o cargo de promotor pode representar um salto em direção à eleição para o posto de prefeito, o qual evidentemente tem um poder superior. E uma boa parte do romance se ocupa de forma detalhada da disputa política que está sendo travada em torno de uma nova eleição para chefe da promotoria.

A história mais interessante começa de fato quando o corpo de Carolyn Polhemus, uma advogada que ocupa um dos cargos de assistente do promotor-chefe, é encontrado em sua casa. Carolyn foi morta em razão de uma forte pancada desferida em sua cabeça. O promotor-chefe, envolvido com a sua campanha pela reeleição, designa o subchefe da promotoria, o também advogado Rozac (Rusty) Sabich, para comandar a investigação do caso de assassinato. Mas acontece que Sabich, embora casado e com um filho, era (ou foi) amante de Carolyn, sua colega na promotoria, até que ela rompeu a relação dos dois, contra a vontade dele. Isso faz de Sabich o principal suspeito do seu assassinato.

Carolyn era uma mulher inteligente e linda. De uma sensualidade transbordante, que deixava perturbados todos os homens que lidavam pessoal ou profissionalmente com ela. Quem diz isso é o próprio Sabich, que narra o livro na primeira pessoa. É claro que, sendo o narrador e também o personagem central da trama, Sabich é um narrador nada confiável: deixa muitos fatos sem explicação ou voluntariamente escamoteados. O que faz do livro menos um thriller policial tradicional, no qual um detetive busca revelar a verdade a respeito de um crime, e mais um drama de tribunal no qual o acusado, que se declara o tempo todo inocente, descreve detalhadamente o processo criminal ao qual é submetido diante de um júri.

Culpado ou inocente? Os promotores do caso são colegas de Sabich na promotoria, porém seus adversários na eleição que acaba de ocorrer e da qual saíram vencedores, contra o antigo chefe que Sabich apoiou. A acusação, portanto, tem um ligeiro aroma de armação política contra um forte ex-adversário. É aí que se encontra a explicação para o título do romance: o juiz faz questão de lembrar aos jurados, assim que eles tomam o seu lugar no tribunal, que segundo as normas processuais qualquer indivíduo levado a julgamento pelo poder público é inicialmente considerado inocente (“presumed innocent”), até que a promotoria consiga provar a sua culpa sem qualquer sombra de dúvida. Sabich é suspeito de ter cometido o crime e, por isso mesmo, levado a julgamento. Mas o que os novos promotores terão de fazer, batendo-se contra um experiente advogado de defesa contratado pelo próprio Sabich, é provar que a sua suspeita tem fundamento. O que não conseguirão, e Sabich será inocentado.

Carolyn Polhemus era uma mulher muito ambiciosa. Na obra original de Scott Turow, ele mesmo um advogado criminal, Carolyn é descrita como alguém que não hesitava em usar seu poder de sedução para subir na carreira, até chegar ao cargo de assistente da promotoria de Kindle. Foi amante e parceira do juiz Lyttle, que mais tarde presidirá o tribunal encarregado de julgar Rusty Sabich. E também do chefe da promotoria, Raymond Horgan. E de Rusty Sabich, como sabemos e ele mesmo relata, confessando a paixão que sentia por ela.

Três anos depois da publicação do livro, estreou nos Estados Unidos uma adaptação cinematográfica escrita e dirigida por Alan J. Pakula – conhecido diretor de “Todos os Homens do Presidente” (1976) e “A Escolha de Sofia” (1982), entre outros filmes de sucesso. Com Harrison Ford como o protagonista Rusty Sabich; Raul Julia como Sandy Stern, seu advogado; e a belíssima Greta Scacchi no papel da irresistível Carolyn Polhemus, o filme é fiel ao romance original, embora seja uma versão bastante resumida deste e consagre menos tempo à disputa política pela promotoria, concentrando-se principalmente no julgamento e absolvição de Sabich. O que me parece ser uma decisão acertada.

A história do promotor acusado de matar a amante volta agora muito modificada no formato de uma série de televisão. Para começo de conversa, Rusty Sabich, interpretado desta vez por Jake Gyllenhaal, confessa em várias ocasiões ser ainda perdidamente apaixonado por sua colega Carolyn, o que provoca enorme sofrimento em sua mulher, agora interpretada por uma atriz negra – no livro, Barbara Sabich é judia, o que estava mais de acordo com as expectativas sociais na época da sua publicação. Outra diferença é que agora os Sabich têm um casal de filhos adolescentes, ao passo que no livro tinha apenas um filho ainda bem garoto. E o promotor chefe Horgan, no livro um competidor de Sabich pelo amor de Carolyn que aceita depor contra ele no tribunal, torna-se na série o advogado do promotor que está sendo julgado.

Mas a maior diferença, sem dúvida, é quanto à promotora assassinada. Carolyn Polhemus, na série, não é tão bonita como no filme de longa metragem, e tampouco é aquela mulher que usa de forma oportunista a sua beleza sensual para seduzir os homens que podem ajudá-la a avançar na carreira. Isso seria visto hoje como inaceitável, e os produtores da série possivelmente imaginaram que não poucos espectadores considerariam que ao ser assassinada ela teve um castigo merecido. No streaming, Carolyn é nada mais do que a vítima da sua paixão por Sabich. Sua vida sexual pregressa foi bastante omitida, o que torna o roteiro sem dúvida menos interessante.

No final, como todos já sabemos, Rusty Sabich é mais uma vez considerado inocente da morte da sua amante. Permanece, como uma espécie de epílogo, a questão sobre quem afinal teria matado a bela promotora. Aqui também temos direito a uma solução bem diferente da que é apresentada no livro, como saberão aqueles que decidirem ler a obra original. Uma boa escolha para quem busca bom entretenimento e um aprendizado estimulante sobre a maneira como se fazem as adaptações literárias para as séries televisivas. Principalmente quando transcorre algum tempo e os padrões morais da sociedade mudam. Neste caso, infelizmente, para pior.