UM BANQUETE COM ALEXANDRE STAUT

Alexandre Staut, além de exímio escritor, é também talentoso jornalista, editor, pintor e cozinheiro. As histórias de cozinhas e de comidas acompanham sua vida e sua produção literária. Depois de PARIS BREST (Nacional, 2016), ele nos presenteia com BANQUETE INDÍGENA E OUTRAS HISTÓRIAS, a sair em áudiolivro pela Storytel em setembro, que reúne contos, crônicas e relatos deliciosos da culinária brasileira, recolhidos pelo autor desde os tempos em que trabalhava como repórter de gastronomia do Jornal da Tarde, em São Paulo. É desse livro que sai o trecho cedido para esta coluna Narrativas e Depoimentos, em que Alê se baseou nos “causos” contados pela chef mato-grossense Edir Nascimento para escrever a história.

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BANQUETE INDÍGENA

Esta história foi escrita a partir de conversas com a chef mato-grossense Edir Nascimento. Ela descende de indígenas e fala das visitas à tribo que ficava ao lado da fazenda em que morava, no Pantanal, durante a infância. Para manter a linguagem da Edir, escrevi o texto em primeira pessoa. Pedi que ela revisitasse seu tempo de menina, passando-me receitas do povoado indígena do qual descende. A cozinheira me passou cinco pratos, todos com peixes das águas doces do Centro-oeste. Tive o prazer de provar cada uma delas em sua casa, ouvindo seus “causos” que beiram o realismo-mágico.

Da primeira vez em que me encontrei com eles, eram quatro ou cinco. Zuniam em alazões na estradinha de chão batido que atravessava a fazenda São Francisco, onde a gente morava. Cada cavalo era acompanhado de um cachorrinho que corria ao seu lado com a língua para fora.

Tinham cabelos compridos, usavam roupas normais, não andavam nus. Levavam flechas nas costas, que iam balançando de acordo com o galope. Duas ou três horas depois, voltavam pela mesma estradinha. Passavam devagar, como se estivessem cansados. Os lombos dos cavalos vinham quase sempre carregados de macacos amarrados pela cintura; porcos do mato, tudo com um rastro de sangue na terra; queixadas; quatis… só caça boa.

Um dia perguntei para meu pai quem eram aqueles homens. “Eram nossos parentes”, ele respondeu.

Não tardou e um dia estacionaram seus cavalos, ao voltarem das caçadas. Pediram água para eles e para os bichos. Além das caças, traziam uma infinidade de frutos, mangas, bananas, além de flores que nos ofereceram.

Apesar do parentesco, se próximos ou não, disso nunca soube, não falávamos a mesma língua. Nós, o Português. Eles, a Guató. Depois da primeira visita, bastava avistarmos os cavalos se aproximarem da porteira e logo eu, que era menina, percebia que existia sim alguma familiaridade. Era como se tivéssemos crescido juntos, como crescem as crianças em uma família da roça: correndo atrás das árvores do pomar, com varas nas mãos, ao lado de açudes. Os homens faziam um gesto com as mãos na frente da boca, e a gente corria para dentro da casa buscar baldes de água para eles e para a bicharada.

Voltávamos equilibrando a água dentro dos vasilhames. Quando apontávamos a cabeça para fora da casa, eles já estavam a postos, segurando presentes para nós… uma banana, uma maçã, uma goiaba, um ramo de orquídeas, um punhado de flores de maracujá, entre outros mimos. Eu e minhas irmãs os recebíamos tímidas e sorridentes.

Um dia, ao receber as flores, grudei no ouvido da minha mãe e perguntei: “Mas índio não vive pelado?” Ela disfarçou, meio sem graça, como se eles tivessem entendido o português e respondeu: “Esses índios são outra coisa.” O assunto acabou ali.

Não demorava mais de uma semana para voltarem. A Fazenda São Francisco passou a ser rota daqueles homens na volta da caça, antes de tomarem o rumo da Fazenda Expetoria, onde moravam em casas improvisadas, à beira do rio.

Eu era uma criança curiosa. Um dia perguntei para um dos índios de pele avermelhada e pintura preta na cara se na aldeia havia meninas da minha idade. Mamãe chamou seu Manoel para explicar aos forasteiros o que era uma “menina”.

Dias depois, em uma de suas saídas para o mato, levaram até nós três ou quatro mesticinhas, todas de cabelos até a cintura. Elas chegaram sentadas de lado no lombo dos cavalos. Logo entendi que as bororas, ou arepas, como seu Manoel as chamava, passariam a tarde com a gente, enquanto os homens iam buscar caça no mato alto.

Elas ficaram em grupinho, tímidas, debaixo de uma mangueira. Eu e minhas irmãs, Ana Maria, Ana Luíza e Ruth, ficamos do outro lado, brincando com bonecas. Elas riam de tudo, das nossas palavras, dos nomes das bonecas, do doce de tacho que minha mãe ofereceu na hora do lanche. Uma delas, percebi, encantou-se com o nome de uma boneca: “Joana”. Falou uma palavra desconhecida e depois lançou “Joana”. Fiquei me perguntando se queria mudar de nome. Para ser sincera, não me lembro mais qual era seu nome.

As meninas visitaram a gente mais três ou quatro vezes. Penteavam o cabelo das bonecas. Nós penteávamos seus próprios cabelões negros e lisos pela cintura. Elas amavam tudo que tinha açúcar, bananada, mangada, goiabada, doce de abóbora… Uma tarde, minha mãe passou para as mãos de uma das indinhas um saco de rapadura. Ela ninou o embrulho, como se carregasse um bebê.

Passamos a entender mais uns aos outros, quando, certa vez, fomos convidadas para uma festa na aldeia em que moravam.

Arrumei minhas irmãs e fomos de mãos dadas pela estrada de terra. Pegamos carona com um trator, e andamos mais umas duas horas até avistarmos as casas.

As arepas nos reconheceram de longe. Correram até a estrada para nos receber. Estávamos suadas, com as roupas repletas de poeira; elas nos levaram para suas casas e lavaram as nossas pernas e pentearam nosso cabelo. Passamos batom e estávamos prontas para a festa.

No pátio da aldeia, mais de cinquenta pessoas estavam ajoelhadas num silêncio sepulcral, em torno de uma grande fogueira. Todos pareciam rezar baixinho. Nós imitamos a indiaiada sem dar um pio.

Um homem apelidado Velho Tobias alimentou o fogo. Dois índios levaram um caldeirão enorme sobre as chamas. Uma idosa, que depois soube se chamar Veia Xica, jogou na água fervente três ou quatro peixes grandes sem tirar as tripas, sem raspar as escamas. Minha irmã cochichou nos meus ouvidos que não comeria aquilo nem morta. Acreditava que eles entendiam pouco do português, mas cutuquei-a para ser mais discreta.

Do caldeirão, vi subir uma espuma amarronzada, que Veia Xica recolhia numa grande cuia, que ia passando de mão em mão. Assim que o primeiro homem tomou o caldo, começou a cantar e a bater palmas ritmadas. Cada um que ia bebendo aquilo passava a acompanhar a canção na língua estranha hoje falada por apenas quatro ou cinco pessoas, pelo que me disseram numa viagem recente ao Pantanal. Eu era uma menina curiosa e tive a oportunidade de conhecer uma língua quase morta. Eu estava lá! Ouvia aquilo tudo, as palavras sem sentido, enquanto esperava a cuia chegar às minhas mãos. Tomei a espuma, uma mistura de sabores doces e amargos. Sal não havia. Na Expetoria não se usava sal. Encarei mais um gole. Passei a cuia para Ana Luiza, que me imitou de cara feia.

Depois da cantoria, os nacos do peixe cozido foram colocados na cuia, que voltou a passar de mão em mão. Cada um juntava um pouco das fibras brancas do pescado com os dedos e, aos montinhos, levava à boca, passando a cuia adiante.

Quando o caldeirão esvaziou, os índios responsáveis por levar e trazer o panelão, além de manterem viva a chama da fogueira, alimentaram o fogo com lenha fresca, e, para minha surpresa, colocaram nos ombros uma caça, como aquelas que via passar no lombo dos cavalos, na frente da minha casa. “Se for onça ou macaco, eu não como”, prometi a mim mesma. Para minha sorte, não era. Era um porco do mato, caça boa. Morreu sorrindo. Eles colocaram o bicho aos pés da Veia Xica, que limpou a terra de suas patas. Ela parecia rezar. Depois, ordenou que o animal fosse levado ao fogo. Os homens o colocaram sobre a fogueira, com pelo, pele, olhos… E a cantoria continuou. Arrepiei.

O grande pátio foi tomado pelo fedor dos pelos tostados. Mas, em seguida, senti o cheiro adocicado da carne assada. Com uma faca, Veia Xica, que tinha mais de cem anos, conforme entendi pela fala de uma das arepas, abriu a barriga do porco, tirando nacos malpassados que distribuía aos índios. Eles comiam a carne e lambiam o sangue das mãos e dos punhos em silêncio absoluto.

Da primeira vez que me ofereceram, não quis provar as entranhas daquele bicho. Os índios se refestelavam. Eu pensava em mandioca cozidinha, arroz com feijão. Insistiram. Eu não poderia recusar. Foi quando acompanhei os bugres, puxando punhados de fiapos da carne, que comi sem sal ou tempero. Minhas irmãs também comeram.

Não falávamos a mesma língua, nem entendíamos as canções que entoavam durante o banquete. Eu buscava respostas para tantas dúvidas. Mas, menina, entendi que para algumas perguntas não há respostas. Lá no fundo do coração, eu entendia tudo, cada coisa estranha que via ao redor do fogo alto.

A refeição transcorreu como se, por toda a vida, eu estivesse sentada naquele chão, para comer com os índios que eram nossos vizinhos e parentes.