UM LIVRO NAS MÃOS

Para Lúcio Autran, curador da obra do grande Autran Dourado, o relançamento pela HarperCollins-Brasil de OS SINOS DA AGONIA e A ÓPERA DOS MORTOS – dois dos romances mais importantes na vasta, diversificada e magistral obra do canônico autor mineiro falecido em 2012 – significou não só o retorno às livrarias de um autor injusta e incompreensivelmente caído no ostracismo, como o cumprimento de sua promessa de filho para pai em seu leito de morte: manter viva sua literatura. No emocionante ensaio “Um livro nas mãos”, escrito a convite da VB&M para a a coluna Narrativas & Depoimentos, Lúcio reflete sobre a dimensão da tarefa que lhe foi confiada e a emoção que sentiu ao tocar pela primeira vez a bela edição de OS SINOS DA AGONIA, primeiro dos dois títulos a sair com apresentação de Socorro Acioli e todo o esmero da HC, finalmente pronto para ser (re)descoberto pelos leitores brasileiros.

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UM LIVRO NAS MÃOS

And you, my father, there on the sad height, (…)/ Do not go gentle into that good night. / Rage, rage against the dying of the light.

(Do not go gentle into that good night. Dylan Thomas)

O que pode significar um livro nas mãos, lentamente folheado?

Um livro será sempre um símbolo, nos dias que correm o símbolo de uma vitória sobre o tempo presente, dias medíocres, tempo de dificuldades para quem ama a literatura e prefere viver sob o signo da liberdade, da sensibilidade e da arte. Porém, no meu caso, este livro que tenho nas mãos é bem mais, é também início da realização de uma promessa a um desejo último de um homem, agravado por esse homem ser meu pai.

Quando ele morreu, lentamente se indo, me ensinou a simplicidade da morte (sim, a morte, embora difícil, é simples, não são antônimos, uma simplicidade acachapante). Ali, ante seu corpo se afastando da vida, perdendo-se entre minhas mãos, tive três certezas: da inexistência de outra vida possível, da imensa saudade que sentiria e do peso da responsabilidade pela tarefa que ele me deixara por testamento, desnecessário ato solene, mas talvez quisesse afastar qualquer dúvida acerca de sua vontade: a de que eu seria o gestor responsável de sua obra. Tarefa que me orgulha, mas que não posso negar ser difícil e, eventualmente, cruelmente frustrante.

Ali pude sentir, com toda a intensidade de uma sofrida lição, o que uma vez conversáramos: a dicotomia entre autor e obra, e talvez devesse escrever esquizofrenia, seria a palavra a ser usada. Naquele doloroso instante me recordei dele dizendo que o autor é apenas um leitor de si mesmo, e nem sempre o melhor; sempre em boa companhia, nada muito diferente do que ensinaram Goethe e Barthes sobre a reconstrução da obra pelo leitor, especialmente o leitor futuro: Minha obra é a de um ser coletivo e ela traz o nome de Goethe; e Barthes o completou: la naissance du lecteur doit se payer de la mort de l’auter, (o nascimento do leitor deve ser pago com a morte do autor), obviamente não em sentido literal. Lição tão mal compreendida pelo nosso tempo, que insiste em confundir o autor com sua obra, abatendo-a estupidamente no necessário voo de fuga das mãos aprisionadoras do autor, condenando-a ao imobilismo, negando a ela o sobrevoo na amplidão da exegese em sua infinita possível multiplicidade, sua libertação para ser recriada pelo leitor futuro. 

Não tenho, como disse, infelizmente, fé, mas em sua missa de sétimo dia, pela qual ele não se interessaria, ao contrário, mas necessária para que pudéssemos cumprir os ritos sociais da morte e vestir nosso luto, um fato me comoveu e deu ainda mais convicção da lição aprendida e do peso da responsabilidade que ele me legara, ambas permeadas por uma inesgotável saudade. 

Terminada a missa, depois de lido por mim um emocionado texto que eu escrevera para a ocasião, notei uma senhorinha que tentava, meio aos cansativos abraços de praxe, angustiantemente falar comigo. Me desvencilhei das condolências e fui ao seu encontro. Ela veio, com o vagar do peso da idade, me abraçou carinhosamente – os abraços então ainda eram possíveis – e sussurrou ao meu ouvido: “filho, não conheci seu pai, como não conheço você e nenhum dos presentes, mas sou uma ávida leitora de sua obra”. Contradigo-me? Era do autor que ela vinha despedir-se? Não, com certeza não, talvez de suas mãos, sua imaginação, o que lhe daria certeza de que suas personagens naquele momento nos acenavam, reafirmando sua existência autônoma, que seu autor já repousava no duro chão das lembranças.

Invejei-a, confesso, eu havia perdido meu pai, mas para ela o importante era a obra, e esta, como ela disse, estaria nas suas estantes, abrindo as portas do universo mítico do autor, que dele se libertara.

Senti o ônus daquele legado, árduo e doloroso, além de carregar o peso de uma promessa afetiva, as mais difíceis de romper, feita a um morto – e esse morto era meu pai – que, mesmo ante meus argumentos, não mais poderia revogá-la. Pesava sobre mim a responsabilidade da permanência da obra ante seus leitores.  

A primeira providência foi procurar ajuda profissional. Vivendo no meu exílio voluntário (título de um livro meu, “Fragmentos de um exílio voluntário”), avesso ao convívio intelectual, cultivo a solidão por gosto e precisão, dedicado a conviver com meu pequeno universo amoroso, a escrever e, principalmente, a ler, urgência e vício que herdei de meus pais, ambos leitores compulsivos. 

Havia algumas pendências a resolver acerca de direitos de publicação da sua obra, que, por mesquinhas, não cabem ser relembradas neste momento, devem ser, e serão, solenemente ignoradas; além da dificuldade de levar a termo sua última vontade, num país com o triste grau de analfabetismo do nosso, e tão pouco afeito à leitura de obras mais, digamos, “sofisticadas”, cada vez mais agravada. Foi então que me lembrei da Luciana Villas-Boas, com quem já travara relações sociais por meio de um amigo comum, Márcio Parente, que com muito gosto nutro e cultivo uma já antiga amizade.

Grata surpresa, além do imprescindível conhecimento da obra do meu pai, sem o qual não haveria conversa possível, somava-se o competente profissionalismo e a delicadeza no trato, cada vez mais urgente, que permeiam toda a equipe que a auxilia, a quem nomeio e agradeço abaixo. Esse o esteio dos que querem trabalhar com literatura: conhecimento, profissionalismo e sensibilidade.

De plano deixei claro que o importante era a obra. Se os direitos autorais são importantes? Sim, claro que sim! Até por respeito ao trabalho do artista, mesmo não sendo dado ao vício da pecúnia, aprendi com meu pai que remunerar o autor faz parte da dignificação do seu trabalho. Porém, naquele momento, o mais importante era a obra, tão injustamente esquecida.

Foram dez anos de luta, sim, inacreditáveis dez anos para conseguirmos uma editora à altura de sua obra, detentora de vários prêmios, como o Prêmio Goethe de Literatura no Brasil, Prêmio Jabuti, Prêmio Camões, Prêmio Machado Assis, para ficarmos nos principais. No início, queria que fosse contratada a obra em conjunto (ainda não perdi a esperança de vê-la publicada numa só editora), não queria desmembrar seu universo, sua unidade, rara em nosso país, não queria criar fronteiras na cidade mítica de Duas Pontes, apartar personagens criados literalmente a régua e compasso, cujos destinos ele rigorosamente traçara e entrecruzara em seus vários livros, fruto de árduo trabalho e rigorosa disciplina. Mas era preciso derrubar muros, financeiros inclusive, e me conformei em desmembrar a obra. 

Até que veio a notícia de que a HarperCollins resolvera publicar, graças a Raquel Cozer, OS SINOS DA AGONIA e A ÓPERA DOS MORTOS. Confesso que estranhei a escolha; embora estejam entre meus livros preferidos, são bastante sofisticados, o primeiro alicerçado – na feliz expressão do prefácio de Socorro Acioli, por sinal excelente (“O romancista carpinteiro”) – em “Fedra”, de Sêneca, e sua releitura por Racine e “Hipólito”, de Eurípedes. Escrito com muito bem disfarçada erudição, como deve ser, trata do arquétipo da madrasta apaixonada pelo genro, da traição, da rejeição, do ódio, da injustiça” ainda na feliz dicção de Acioli. Mas, para leituras mais descompromissadas, embora igualmente sofisticadas e exigentes, uma obra com imagens cinematográficas (talvez, talvez…), um enredo que nos rouba a desatenção (“o enredo é a forma que tenho para distrair o leitor e lhe bater a carteira”, divertidamente ele dizia) e a fascinante ideia da “morte em efígie”, extraída da obra “Capítulos de História Colonial, de Capistrano de Abreu, aliás, uma das epígrafes dos SINOS DA AGONIA: Este padeceu o suplício em efígie; os outros subiram ao patíbulo. A morte social, a condenação à inexistência em vida, a pior forma de morte, pois consciente de si mesma. 

Uma curiosidade: em mais um ridículo da ditadura militar – e isto é um pleonasmo, pois as ditaduras, embora trágicas e covardes, guardam sempre a grotesca face do ridículo -, essa epígrafe foi retirada do livro em várias edições, e era difícil convencer os editores a derrotar o medo. Perguntado se deveria voltar agora, não titubeei em dizer: claro que sim!

Quanto à segunda obra, na minha modesta exegese, tem, entre muitas, no mínimo duas leituras possíveis, como, aliás, qualquer obra literária de qualidade: uma metáfora da morte ou, caso prefira o leitor (eu prefiro), da loucura, envolta no testemunho da decadência do Brasil rural. Talvez, a ÓPERA DOS MORTOS, até mais do que os SINOS, seja o livro dele que mais me fascina, mas já me alongo em excesso, sobre esse livro falo em outro momento. 

Era apenas o início de uma trilha que foi, em todas as suas etapas, permeada por fortes e compreensíveis emoções: a notícia da publicação, a assinatura do contrato, a aprovação da capa, a revisão feita com rara competência e respeito pela equipe da editora, sempre perguntando o que o autor diria, seus neologismos e “erros”, aquilo que ele me ensinou ainda muito jovem, “meu filho, aprenda a escrever corretamente, para que você possa errar corretamente”, em sua obsessão e amor pela língua portuguesa. Inevitável, claro, minha rendição à malfadada reforma ortográfica, sobre a qual ele perguntava, amaldiçoando e denunciando a invencível submissão ao colonizador, aquele mesmo que permeia OS SINOS DA AGONIA: “se era para unificar o português, por que não pelo português falado na Ilha de Cabo Verde?”. Fica a pergunta até hoje não respondida.

Mas uma coisa é atravessar todo esse processo, outra bem distinta é ter o livro nas mãos, apalpá-lo, folheá-lo, cheirá-lo, e quem gosta de ler sabe a importância do cheiro de um livro novo, e isso, é urgente que o diga, só foi possível graças ao dedicado profissionalismo da agência Villas Boas & Moss, tendo à frente Luciana Villas-Boas, auxiliada pelo competente (e delicado) trabalho da Anna Luiza Cardoso, da Yasmin Ribeiro e do Miguel Sader, que só ficam nesta ordem porque o papel assim o exige.

Aqui está, dr. Autran – como brincando, óbvio, o chamava – o primeiro passo de sua última vontade, seus leitores já poderão ver neste livro passar pelas ruas e por outros caminhos imaginários traçados por suas mãos trêmulas a Malvina, o Gaspar e o Januário, e, em muito breve, com a publicação de A ÓPERA DOS MORTOS, Rosalina poderá mostrar o sobrado fechado ao mundo, sua “arte de parar relógios”, como um dia escrevi, e os mortos que não conseguia enterrar, uma Antígona nas Geraes (a analogia é dele, que pensava nesse livro “como tragédia, mais do que como um romance (…) os mortos-vivos”), e passarão por baixo das janelas mineiras dos sobrados das múltiplas leituras, o Coronel Capistrano, José Feliciano e Quiquina.

E esperem, pois mais breve do que pensam, numa segunda etapa de minha promessa, a depender de mim e da agência, serão trazidos à vida, do silêncio estranhamente compulsório onde estão, Fortunato, Terezinha Virado e tantos outros, que ressurgirão das sombras da estupidez, não tenho mais dúvidas quanto a isso, como pude ver pela recepção e alegria que têm manifestado seus leitores, prenúncios de muitos outros que ainda virão. 

Aqui, dr. Autran, está concretizada sua vontade última e o que prometi ante seu corpo inerte e a calva da morte, duríssima, esculpida em pedra, dor e inexistência, que nada ouvia. Pois se é preciso que se “pague o preço da morte”, e todos, autores ou não, pagarão, só os primeiros terão suas personagens vivas, que serão recriadas por seus leitores, presentes e futuros.

Aqui está, leitor, ante sua imaginação e liberdade, uma obra que há muito era sua, apenas, por desatenção das gentes, andava injustamente esquecida.

Alumbre-se e a recrie, ela é sua.