UM MODERNISTA CONTEMPORÂNEO

“Um livro assim pequeno, pensei que fosse ler de uma sentada. Mas é poesia – e poesia não é curta se o livro é curto. Nunca encontrei nada parecido dentre as coisas que pessoas jovens me dão para olhar”, comentou Caetano Veloso enquanto lia IDENTIDADES (Nós), segundo romance de Felipe Franco Munhoz, jovem autor cuja obra, tão desafiadora quanto potente, VB&M tem orgulho de anunciar a representação. Para o bom leitor, são necessárias poucas linhas lidas para perceber que se está diante de um grande escritor. Na escrita de Felipe Franco Munhoz, poucas palavras bastam. É o que atesta o conto MOONSHINE, publicado pela primeira vez em português nesta coluna Narrativas & Depoimentos. Originalmente escrito para publicação em inglês na Words Without Borders, nos EUA, em tradução de Eric Becker, depois vertido para o francês por Stephane Chao, para sair numa revista parisiense, MOONSHINE é um texto de beleza pungente, cuja leitura impacta e impressiona, fica dentro de nós por tempo muito mais longo do que em geral acontece com contos. Impressionante também é a lista de nomes de peso que endossam a obra de Felipe, que ainda inclui os romances MENTIRAS (Nós) e LANTERNAS AO NIRVANA, este lançado em junho por Rodrigo Lacerda na Record: além de Caetano Veloso, os tradutores e irmãos Caetano e Rogério Galindo, o jornalista Manuel da Costa Pinto, o poeta e tradutor Paulo Henriques Britto, a editora da Bloomsbury, Liz Calder, o dramaturgo inglês Tom Stoppard, para quem ele é “um verdadeiro modernista”, entre muitos, muitos outros. Comum a todos, a sensação de que não se passa ileso pela obra de Felipe Franco Munhoz. Não mesmo.

*

Moonshine

A culpa não foi nossa: a culpa foi de Curitiba, com seu áspero aspecto de interior; foi da fácil pesquisa; do Jack Daniel’s que bebíamos puro na ocasião; e – é claro, mais importante – a culpa foi de William Faulkner. Porque decidimos, no auge do uísque, encenar textos aleatórios.

Garimpamos, primeiro, na estante, uma sequência de peças de língua inglesa: uma coleção de paperbacks com, no topo de suas capas, a centralizada logomarca de dois efes, caixa-baixa, sobre a palavra “plays”, fonte reduzida, caixa-alta, e essa logomarca sobre os nomes dos autores e os títulos: David Hare, Skylight; Tom Stoppard, The real thing; Brian Friel, Translations.

Eu jamais imaginaria o jantar convertido em teatro e nós, nus, interpretando atores dedicados, à luz de velas, compenetrados, entre os móveis da sala, sérios, falando inglês. Falando The best thing is loving with your whole heart; Loving and being loved is unliterary; Indeed – English, I suggested, couldn’t really express us. Falando, sempre, com forçado sotaque britânico em decibels brandos.

Até que – logo, de repente – a dramaturgia caseira de lado Car l’Homme a fini! l’Homme a joué tous les rôles!, Catarina recitava Rimbaud. Alcoólicos poliglotas. Ou melhor: jovem casal pretensioso, risível, ridículo. Ou melhor: jovem casal procurando esconderijos em literatura. Jovem casal fingindo ser possível ultrapassar os limites do cotidiano estático, da cidade insuficiente, das próprias vidas. Uma fuga.

Fugaz.

Minha amiga – minha nova namorada? – cansou-se do poeta Queria um Rimbaud romântico, apaixonado; qual dos autores, aqui, é o mais romântico? Brincando, respondi Faulkner. E, da estante, puxei Sanctuary – como se puxasse, inconsciente, um gatilho trágico de pistola: disparando a ideia fatal. Curiosa voraz, Catarina folheava o livro; enquanto cambaleei cambaleei à cozinha para constatar que o Jack Daniel’s, que inferno, havia acabado.

Eu   Meia dose.

Catarina   Bebemos inteira?

Eu   Estava aberta.

Catarina   O que é moonshiner?

E Catarina emendou, em anasalada voz alta, um diálogo do romance:

“Was that why you left Belle?” Miss Jenny said. She looked at him. “It took you a long time to learn that, if a woman dont make a very good wife for one man, she aint likely to for another, didn’t it?”

(Do forçado sotaque britânico em decibels brandos, contidos e disciplinados, ao forçado francês blasé mas de enérgico volume – ao forçado inglês pastoso, hillbilly?, do Mississippi. Combinados com a textura natural curitibana, sulista, de ondulação cantada. Vernáculo? Que prolonga determinados sons vocálicos. Vernáculo? Que enfatiza determinadas vogais ao final das palavras. Invernáculo?

O dialeto que se usa.

Múltipla orgia fonética, triste e fracassada.)

“But to walk out just like a nigger,” Narcissa said. “And to mix yourself up with moonshiners and street-walkers.”

Eu   Quem fabricava moonshine: uma bebida forte, ilegal, feita em casa. Era feita, eu acho, com milho. Em grandes receptáculos, banheiras, tonéis.

Catarina [abanando-se com o livro]   Vamos fazer um pouco?

Pronto. A ideia derradeira.

Eu   Aqui?

Catarina   Aqui tem banheira; não tem?

Eu   Que já foi preenchida hoje, inclusive: conosco, apertados.

Catarina   O uísque acabou, a garrafa; não acabou?

Vasculhando a internet, gélido Google adentro, How to make moonshine, encontramos uma receita simples. Caneta? Catarina, em papel sulfite A4 bege, reciclado, surrupiado da impressora, anotou 1,100k Farinha de milho 4,5k Açúcar 15g Levedura e, com ânimos envoltos em álcool, Gaze Baldes Panela gigante Panela de pressão e Precisa furar a panela de pressão, você tem furadeira?, e precisa de um tubo de cobre, que difícil, porra, podia ser mais cedo, quase onze, não precisa da banheira, melhor, faz no fogão mesmo.

Curitiba, com seu áspero aspecto de interior ambígua; a amplitude vazia: tanto no conteúdo quanto na ocupação do território. Oceano raso, calmo. Espaço na ponta dos pés – ora pequeno, porém crescendo. Verão. Pela janela, do oitavo andar, o Campo Comprido esburacado, seis araucárias, prédios baixos e distantes um do outro: boca banguela. Avenidas largas. Curitiba. Longos horizontes.

Curitiba.

Às onze horas, comprar qualquer ingrediente – impossível.

No entanto, Catarina, em minutos, via grupos de WhatsApp, reunira tudo. E, após colocar as roupas amarrotadas, saiu, quente noite afora, à coleta – o carro, suponho, traçando ziguezagues: Rua Walenty Golas, Rua Professor Pedro Viriato Parigot de Souza, Rua Professor João Falarz, Rua Monsenhor Ivo Zanlorenzi e o resto, o trajeto de ida e o de regresso, uma interrogação. Nesse breve ínterim, concentrei-me em produzir o orifício na panela.

Eu   Como é que você conseguiu um tubo de cobre?

Tubo conectado à panela de pressão – quem diria?, um alambique – e material disposto, impulsivos persistentes, iniciamos o meticuloso processo. Passo a passo. Fervemos bastante água. Passo a passo. Cozinhamos a farinha de milho. Depositamos o resultado no balde. Passo a passo. Devolvemos o resultado à panela. Cozinhamos a pasta de milho com açúcar e levedura. Coamos tal mistura, utilizando a gaze, no balde. E agora, Popcorn Sutton?

Uma semana de espera –

para fermentação.

Catarina [adormecendo]   Porra, uma semana.

Adormecemos abraçados

e                    o tempo

(relógios,

(relógios, despertadores,

(relógios, despertadores, compromissos)

e     na semana seguinte

ainda nos sentíamos

um verdadeiro

jovem casal

fora da lei.

Sóbrios, ansiosos, transferimos o líquido fermentado – gaze novamente – para a panela de pressão. Catarina, sorridente, sussurrou Perfeito improviso. O tubo de cobre, esticado, mergulhava na cuba condensadora da pia, repleta de água e gelo; emergindo, prosseguia em direção ao segundo balde, onde pingaria o moonshine, posicionado no chão. Perfeito?

Mal acendemos o fogão e, desde a sala, meu telefone fixo começou a tocar e

Eu   Vou atender. Você cuida?

tocar.

Alô.

Pela janela da sala: duas, três, quatro, cinco araucárias. Cinco. Não eram seis? Eram seis, com certeza. Oferta de plano, operadora de celular; telemarketing. Desliguei rápido e, intrigado, permaneci observando a paisagem. Curitiba. Antes de voltar ao destilador, gritou-me um lapso na estante: em Estados Unidos, século XX; em Faulkner, a ordem incorreta. Invertendo Light in August e Sanctuary – a ordem cronológica As I lay dying, Sanctuary, Light in August, Pylon –, assim que a falha consertada, explodiu um absurdo estrondo.

Catarina sofreu queimaduras de terceiro grau: setenta por cento do corpo destruído. Minha nova namorada.

Em frames turvos, brutos, lembro-me de chegar o bombeiro, a ambulância, o hospital, a família, a notícia Óbito. Eu sei, eu sei, eu deveria ter ficado ali com ela, abraçado-morto, mas a culpa: a culpa foi do telefone Telemarketing que tocou no momento errado; foi das cinco araucárias Eram seis; da estante desorganizada; e – é claro – a maior culpa foi de William Faulkner.