UMA MANHÃ DE DOMINGO

A Narrativa que fecha esta semana, UMA MANHÃ DE DOMINGO, é o prólogo de OS PLANOS, próximo romance de Carlos Marcelo, a sair pelo Grupo Editorial Letramento em 2021, uma história de sonhos corrompidos pela impunidade, uma trama impregnada pelo desalento com o país. Marcadas por cicatrizes do passado, as principais personagens têm duas opções diante de novas situações extremas: dar um jeito de seguir em frente ou sucumbir. Mais um livraço do autor de PRESOS NO PARAÍSO (Tusquets/Gallimard) e de O FILHO DA REVOLUÇÃO, a biografia de Renato Russo (Planeta).

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Carlos Marcelo

Ninguém ainda sabia que havia um cadáver no lago, por isso o último domingo de agosto começou como os outros domingos do mês. Seco, silencioso, obscenamente ensolarado. Frutas jaziam em bufês nas padarias, ciclistas ocasionais ajustavam malhas grudadas nas coxas e bundas, pais que pretendiam passar o dia inteiro com a família ignoravam que os filhos tinham outros planos. Desde cedo, remadores deslizavam com os esquifes por cima da vila afogada depois de a água, confinada e libertada por ordens superiores, sair da represa para encharcar os alicerces e se infiltrar pelas lacunas das paredes de casebres erguidos com suor, tábuas e improviso. Nas primeiras horas da manhã nada deixou de acontecer como o previsto para o dia diferente da semana, dia de música, não de notícia. Afinal domingo não era dia para trabalhar muito menos para morrer.

Todos sabiam que agosto era mês de rachaduras nos lábios e nas cascas dos frutos das paineiras. O amarelo vivo dos ipês surgia e resplandecia nas áreas verdes das quadras, entre os eixos, além das asas, no centro do planalto. Livres dos galhos finos e pontiagudos, as flores coloridas flutuavam à mercê do vento. Pairavam de forma graciosa no ar rarefeito antes da queda na terra exausta. Também tingiam o cinza das calçadas, pintavam os para-brisas, enfronhavam-se na pelagem dos cães dóceis, apodreciam no chão coberto pelas fibras algodoadas.

Impulsionada por redemoinho de folhas e poeira, parte da floração de árvores próximas de uma ponte percorreu caminho improvável. Driblou os bicos das garças e chegou até o encontro cúmplice da areia com as ondas do lago que abraçava a cidade. Caprichosamente, uma das pétalas amarelas voou ainda mais longe e coloriu as costas do corpo do homem de terno cinzento que boiava com os pulmões inundados pela água fria.