UMA MULHER LIVRE NO SÉCULO XVII

Considerada pelos especialistas do meio-ambiente uma das primeiras ecologistas do mundo, a naturalista e artista alemã Maria Sibylla Merian foi uma revolucionária por qualquer ângulo que se olhe para sua trajetória. Sua pesquisa pioneira sobre a metamorfose das lagartas no Suriname transformou o olhar científico sobre a origem dos insetos quando ainda se acreditava que surgissem da lama ou de restos orgânicos. No remoto século XVII, quando toda mulher deveria viver para a casa, marido e filhos, ela rompeu com as convenções sociais e garantiu sua liberdade. Divorciou-se, ficou com a guarda das filhas fazendo-se mãe solteira, tornou-se uma empreendedora, viajou sozinha com uma das meninas para estudar os insetos e a flora amazônica no Suriname e desenvolveu uma pesquisa que marcou para sempre a história da entomologia. Deixou um imponente legado artístico de desenhos e pinturas de flora e fauna. O mais incrível é que uma figura tão extraordinária quanto Maria Sibylla tenha chegado ao século XXI ainda praticamente desconhecida até nos países onde viveu e atuou, Alemanha, Holanda e Suriname. Nesta Conversa Com (A) Gente, Yasmin Ribeiro traduz a entrevista feita pela casa editorial alemã Aufbau com Alexander Schwarz, autor de A EXPLORADORA DO MUNDO, o novo romance da bem sucedida série “Mulheres Extraordinárias entre o Amor e a Descoberta”. Ele apresenta a vida da pesquisadora que deixou contribuições enormes para a ciência e levou uma vida admirável numa era de verdadeira servidão do sexo feminino. Que pelo menos nestes tempos de inédito interesse nas conquistas das mulheres ao longo da história o livro de Schwarz contribua para fazer de Maria Sibylla um modelo e um referencial.

AUFBAU: Qual a origem de Maria Sibylla Merian, a grande naturalista do século XVII, como personagem de romance? O que há nela de tão fascinante?

AS: Primeiro, pensei que gostaria de escrever sobre alguém que, como eu, havia se mudado da Alemanha para a Holanda. Então Maria Sibylla surgiu bem rapidamente. Quando comecei a ler sobre ela, fiquei imediatamente fascinado. Que mulher enérgica! Maria representou quase tudo que ainda não era possível às mulheres no século XVII: artista, cientista, empreendedora, divorciada, capaz de criar sozinha suas filhas. Ela estava anos luz à frente de seu tempo de tantas maneiras, e eu queria muito saber mais sobre isso.

AUFBAU: Como você abordou Maria Sibylla, considerando as dificuldade apresentadas pela grande distância histórica entre autoria e a época vivida pela personagem?

AS: Primeiro de tudo, há a pesquisa. Começa então a surgir uma imagem de que tipo de pessoa Maria Sibylla pode ter sido – há muito pouco registro sobre ela. Depois vem a a necessidade de deixar ir, de fechar meus olhos e mergulhar no mundo dela, deixando-a tomar forma em minha mente. Enquanto escrevo, me encontro num estágio intermediário e quase sinto como se Maria Sibylla estivesse me dirigindo. Esses momentos talvez sejam o mais próximo dela que eu consiga estar. Quando releio meu trabalho, sempre acho mais coerentes as cenas criadas nesse transe.

AUFBAU: Qual foi a maior conquista de Maria Sibylla Merian como naturalista? O que era revolucionário sobre ela, também no que diz respeito ao papel das mulheres em sua época?

AS: Maria Sibylla foi revolucionária em dois níveis. Primeiro, em seu trabalho, porque ela uniu a arte e a ciência. Graças a sua arte, até hoje considerada incomparável, ela foi capaz de compartilhar conosco seu conhecimento científico: na natureza, tudo está conectado. Deliberadamente, ela desenhava a lagarta com sua planta hospedeira, mostrando que flora e fauna estão interligadas. Ao fazer isso, mudou nossa percepção de natureza.

Há que se ter em mente: Maria Sibylla embarcou para o Suriname, ao norte do Brasil, exatamente 100 anos antes de Alexander von Humboldt viajar para a América Latina. Sua vida pessoal não foi nada convencional para a época em que viveu, no final do século XVII, para dizer o mínimo. Divorciou-se do marido, na prática tornando-se mãe solteira; conduziu seu próprio negócio com as filhas e determinou-se a viajar sozinha para o Suriname. Tudo inconcebível para os padrões da época.

Maria Sibylla ainda é um modelo a seguir, especialmente, mas não somente, pelas mulheres. Sua mensagem para nós é: Acredite em si mesmo e siga seu próprio caminho, não importa se convencional ou não, não importa quantos obstáculos estejam a sua frente. Apenas vá.

AUFBAU: O que há de especial nos lugares onde a história se ambienta?

AS: O centro de Amsterdam é magnífico, um museu do século XVII a céu aberto. Logo antes de Maria Sibylla vir para Amsterdam, o famoso conjunto de canais semicirculares estava sendo concluído. Então ela viveu em um prédio praticamente novo. Uma caminhada pelos arredores pode se tornar uma viagem no tempo. Alguns dos prédios e lugares que descrevo no romance ainda estão de pé. Alguns têm nomes diferentes hoje em dia. Outros, como o Rijksmuseum, ainda não existiam na época, ou são fictícios. Quase não há contraste entre os cenários.

Já Paramaribo era uma cidade muito pequena com clima tropical. Tanto na época quanto agora, é a única cidade substancial no Suriname, ainda composto por 80% de mata atlântica. Foi assustador o que aprendi enquanto pesquisava sobre as monoculturas, os campos de trabalho baseados na maximização do lucro, opressão e violência. Como Maria Sibylla se identificava com a próspera cidade de Amsterdam e com as realidades do Suriname? Achei muito intrigante explorar essas tensões.

AUFBAU: Como você conduziu sua pesquisa? Houve algo em particular que o surpreendeu ou impressionou?

AS: Eu estava incrivelmente curioso sobre essa figura e passei meses pesquisando (e ainda pesquiso, o interesse nunca acaba): lendo livros, visitando museus e conversando com especialistas (cientistas e artistas). Pinturas antigas, desenhos, gravuras, plantas de cidade e mapas são muito valiosos. Mostram, por exemplo, prédios que não existem mais, o que as pessoas costumavam usar na época e o que acontecia nas ruas. Ajudou muito o fato de eu conseguir ler literatura e documentos nas fontes originais e conversar em holandês com especialistas.

Fiquei surpreso que, como escritor, pareço levantar questões diferentes daquelas dos cientistas. Por exemplo, Maria Sibylla não incluiu nenhuma observação sobre os quatro primeiros meses de sua estada no seu livro sobre lagartas do Suriname e sua metamorfose. O que ela fez durante esse tempo? Até então, ninguém parece ter perguntado, embora isso seja no mínimo digno de nota.

Em todo caso, estou impressionado com o número de lugares em que se pesquisa sobre Maria Sibylla Merian nos dias de hoje. Ela ainda sabe nos emocionar, seja como artista, cientista ou como mulher. E talvez meu romance ajude a trazê-la de volta ao holofote que merece.