A Narrativa desta sexta feira é assinada pelo escritor e professor de literatura Maicon Tenfen, autor da bem-sucedida série QUISSAMA (Biruta), cujo novo romance, ainda inédito, reconstrói ficcionalmente a biografia do poeta maldito Álvares de Azevedo, a partir da perspectiva do próprio. O trecho aqui publicado é a terceira das cartas que integram O MANUSCRITO, título do romance.
Maicon Tenfen
27 de setembro de 1886
Ilustríssimo Sr. B. L. Garnier:
Perdão por escrever com um dia de antecedência.
Não que eu me sinta ansioso para saber o que o senhor está achando do manuscrito, não se trata disso. Tampouco me preocupa se ainda pensa que sou um impostor. Mesmo que fosse — mas não sou, e apresentarei as provas no momento propício —, ambos concordamos que o senhor possui um verdadeiro tesouro nas mãos. Até no canhestro mundinho literário em que vivemos, com um pequeno percentual de brasileiros alfabetizados e, entre eles, uma risível minoria interessada em leitura, é certo que um novo livro de Álvares de Azevedo trará dividendos à caixinha da Livraria Garnier.
Estou escrevendo, isso sim, porque eu mesmo comecei a sentir falta de certas complementações no manuscrito. Ao relembrar algumas das passagens que lancei no papel, percebo que os meus amigos de São Paulo simplesmente desapareceram do relato. A lacuna me parece má, motivo pelo qual iniciei a redação de um pequeno epílogo. Gostaria de ouvir sua opinião sobre a conveniência de acrescentar esse adendo ao livro. A rigor, nunca mais tive contato com nenhum colega da faculdade, mas ocorre que, por acaso ou determinação do destino, encontrei dois dos meus antigos camaradas: José de Alencar, cuja conversa registrei em alguma parte do manuscrito, e Bernardo Guimarães, que visitei no leito de morte.
Há cerca de dois anos, quando regressei ao Brasil, fiz questão de ler tudo que havia de mais relevante no cenário nacional, ou seja, tudo que é publicado pela Garnier. O senhor e eu já estivemos frente a frente, na livraria da Rua do Ouvidor, e trocamos algumas palavras sobre um livro que eu desejava adquirir: Rosaura, a enjeitada — veja o nome da personagem-título! —, o último romance do Bernardo. Normalmente sou atendido por um dos caixeiros, mas naquela manhã, sabe-se lá por quê, o senhor estava trabalhando no balcão. Desmanchou-se em elogios sobre “um dos nossos maiores prosadores, que mora longe, coitado, em Ouro Preto, mas participa da vida na Corte através dos artigos que envia ao Jornal do Comércio e dos volumes que publica por nossa modesta casa editorial”.
Lembrou-se do diálogo? É evidente que o senhor não perceberia o sorriso por baixo do meu bigode, ainda que tenha estranhado a forma pomposa com que me apresentei — Antoine Laurent de Lafayette —, fingindo o sotaque para afirmar a minha condição de comerciante franco-brasileiro, no Rio a negócios, mas aproveitando a viagem para conhecer as letras locais. Eis o meu disfarce. Já pensou o que aconteceria se eu saísse por aí dizendo a quem quisesse ouvir que sou o autor do Macário e da Lira dos Vinte Anos? Muitos seguiriam o seu exemplo e me chamariam de impostor. Outros tomariam providências concretas para me internar num hospício.
Depois que li a Rosaura, tive vontade de voltar e contar ao senhor que o livro é uma recriação ficcional da nossa vida estudantil em São Paulo, uma espécie de roman à clef, como dizem vocês franceses, no qual o Bernardo, que na obra se chama Belmiro, refere-se ao Lessa como Aurélio e a mim como Azevedo (que óbvio!). Talvez o senhor esteja a par disso, não sei. O fato é que, após a leitura, resolvi seguir a sugestão de dois discretos amigos e escrever a minha própria versão do que vivi na faculdade, com uma Rosaura mais realista, satânica, e não essa peça de idealização romântica remontada pelo Bernardo.
Antes de me atirar à tarefa, todavia, empreendi uma longa e cansativa viagem a Minas Gerais. Não iria além de Ouro Preto, até a distante Diamantina, terra do Lessa, pois logo soube que o meu emotivo amigo morreu moço, em 1861, ao contrário do Bernardo, que continuava vivo, embora doente de cama, como o senhor mesmo havia me dito. Eu devia essa visita a ele — e a mim mesmo. A maneira fria e magoada com que nos despedimos foi indigna da amizade que nos unia em São Paulo.
À entrada de Ouro Preto, ao perguntar por ele, ouvi uma enfiada de histórias sobre a visita do Imperador, anos antes, que não sossegou até apertar a mão do autor d’A Escrava Isaura, livrinho que comoveu as sinhazinhas com a história de uma cativa branca. Fosse a personagem negra, ninguém se importaria com seus infortúnios, e o livro, em vez de se tornar um panfleto abolicionista, seria apenas mais um na estante das efemeridades. A literatura tem esse poder. Ao inverter os papéis num mundo de mentira, consegue escancarar as injustiças da vida real.
Não sei se o Bernardo estava tentando se redimir da maneira espertalhona com que tratava o Ambrósio, mas a verdade é que não encontrei um único botequim ouro-pretano em que os fregueses não alardeassem a ojeriza do escritor aos maus tratos que certos fazendeiros impingem aos seus negros. A notícia corrente é que o romancista se rebelou contra a escravidão durante uma viagem a Congonhas. Ao presenciar um açoitamento no tronco, coisa que não se vê mais na Corte, resolveu descarregar a sua revolta no papel.
Foi fácil achar o endereço do mais querido poeta da cidade, o que é dizer muito em Ouro Preto. Todos apontavam para um velho sobrado no Alto das Cabeças, onde estaria sepultado o crânio de Tiradentes, mais uma lenda que o Bernardo inventou e o povo engoliu. Apeei no quintal, amarrei o cavalo na cerca e bati à porta da casa. Eram dez horas da manhã. Atendeu uma mocinha de cabelos ruivos que me causou um estremecimento. Ela me lembrava um pouco — só um pouco — a aparência de Mary Child. Senti tonturas e calor, segurei-me numa coluna da varanda.
— O senhor está bem? — perguntou a mocinha. — Quer que eu busque um copo d’água?
Sacudi a cabeça, espantando as recordações, e tentei me situar no tempo e no espaço em que de fato me encontrava.
— Não se preocupe, minha jovem. Vim para falar com o Bernardo Guimarães.
— É meu pai.
— Ele está?
Duas senhoras surgiram atrás da menina, Dona Felicidade, a sogra do Bernardo, e Dona Teresa, a mulher que meu amigo tomou como esposa. Entre os caixilhos da porta que me levaria ao passado, três gerações de mulheres me olhavam com curiosidade e expectativa.
— Sou amigo do Bernardo — expliquei. — Estudamos juntos em São Paulo.
As três sorriram e se benzeram pelas preces atendidas. Era disso que o pai, o esposo, o genro estava precisando, um visitante da mocidade, alguém que recordasse os velhos tempos e lhe devolvesse a alegria de viver.
Fizeram-me entrar.
Em vez de café, ofereceram-me aguardente. Bernardo não aceitava que ninguém entrasse em sua casa sem beber uma dose de cachaça, costume enraizado na hospitalidade das mulheres. Falei sobre a época em que montamos a república na Rua da Glória, mas por alto, pois temi que me relacionassem ao amigo poeta que perecera na flor da idade.
Pediram que eu subisse as escadas.
Entrei no quarto do Bernardo, que mantinha os olhos fechados.
A filha é que me apresentou.
Estava animada, esperançosa de que a minha presença provocasse um milagre.
— Visita para o senhor, papai. É um homem da Corte.
— Obrigado, Constança querida. Vai lá embaixo e faz um mingauzinho para o teu pai, sim?
Ela olhou para mim antes de sair. E sorriu, cúmplice.
Meu peito apertava, um nó doía na garganta, tive medo de cair no choro.
— Como estás, Bernardo?
Ele abriu os olhos devagar.
Mantinha a barba e a cabeleira de antigamente, embora grisalhas. Estava magro quase esquelético, mas a face apresentava um inchaço comum aos doentes do fígado. Ficou um tempo olhando para mim, tentando me identificar, deixando que alguma coisa se movesse em seus pensamentos.
De repente deu um pulo na cama.
Arregalou os olhos, arfante, e apontou o dedo para mim.
— Maneco? — perguntou. — És tu?
Olhou ao redor, buscava a luz da janela, um ponto de realidade pelo qual se orientar. Acho que não pediu socorro à mulher porque lhe faltaram forças para o grito.
— Então chegou a minha hora? Vieste me buscar? É assim que se morre?
Foi uma longa conversa, cheia de espanto e explicações, mas também de lembranças, anedotas e reconciliação. O Bernardo se reanimou, embora continuasse pasmo e um tanto descrente com a minha história. Obrigou-me a contar tudo em detalhes, desde o modo como “morri” até os infortúnios no castelo dos satanistas e o porquê de ter perdido os dentes em Paris. O diálogo, recomposto de memória como os demais do manuscrito, poderá ser lido nas páginas que seguem com esta carta. Como apontei acima, gostaria de ouvir uma opinião sobre a vantagem — ou a desvantagem — de acrescentar um epílogo ao livro.
Em se tratando do Bernardo, como o senhor bem sabe, as surpresas são obrigatórias. Quando me levantei para a despedida, ele se inclinou na cama e segurou a minha mão com força.
— Não assinaste aquela promissória do Ambrósio — disse —, mas ainda me deves um conto de réis.
Por favor, Sr. Garnier, peço que envie a resposta pelo moleque de recados.
Sou de V. S. Atento Criado Venerador.
Álvares de Azevedo