VIVA A LIBERDADE DE EXPRESSÃO

Para NARRATIVAS & DEPOIMENTOS, Luciana Villas Boas traduziu o artigo “The Left Needs Free Speech”, da ensaísta americana Katha Pollitt, publicado na revista digital “Dissent” (Divergência), sobre a defesa da liberdade de expressão como um princípio importante para todo mundo e para a esquerda em particular. Esquerdista de raiz, filha de comuna (seguida por Luciana com admiração desde meados dos anos 90 em “The Nation”), de uma linhagem diferente do socialismo tribalista dos dias de hoje, Katha explica direitinho nesse artigo por que a cultura do cancelamento é ruim para todos, mas muito perigosa para uma esquerda que, desacostumada de olhar e analisar o real e induzida ao delírio narcísico pelas mídias sociais, se crê ideologicamente majoritária, quando na verdade é pequenininha. É bom que a ideia de censura não se torne aceitável, porque pode se virar contra a gente, e vai doer. O artigo é bem americano, mas pode se aplicar ao Brasil, onde a cultura do cancelamento ainda não tomou a proporção que tem nos EUA, mas está querendo chegar lá.

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A ESQUERDA PRECISA DE LIBERDADE DE EXPRESSÃO

O que dá aos esquerdistas espaço para promover posições impopulares é o respeito da maioria à importância do debate de ideias

Quando a editora WW Norton decidiu suspender a distribuição da biografia de Philip Roth assinada por Blake Bailey depois que algumas mulheres acusaram o autor de estupro e outras afrontas, imediatamente liguei para meu livreiro do bairro e reservei um exemplar. Quando Amazon parou de vender When Harry Became Sally (Quando Harry virou Sally), que defende a partir de um ponto de vista conservador que a mudança de sexo não é possível, fui à Alibris.com e comprei um exemplar usado. Eu teria comprado também todos os livros do Dr Seuss retirados de distribuição pelo editor, mas demorei demais: os exemplares à venda online estavam saindo por centenas de dólares. Que esses livros tenham se tornado “polêmicos” deixaram-me mais curiosa a respeito de seu conteúdo do que normalmente eu ficaria. Sou uma adulta, pensei comigo mesma, posso formar minhas opiniões sozinha.

Esses livros foram tirados de circulação por diferentes razões. O livro de Bailey foi descontinuado pelo editor por causa do suposto malfeito do autor. O caso Dr Seuss envolve o grupo econômico que detém os direitos da obra. When Harry Became Sally diz respeito ao direito de um livreiro decidir sobre as mercadorias que vende, mas o negócio fica muito maior devido ao tamanho da Amazon: suas vendas são responsáveis por mais da metade de todos os livros vendidos nos Estados Unidos. O que esses casos têm em comum – assim como os bem sucedidos movimentos para fazer a Hachette cancelar a aceitação das memórias de Woody Allen e a Simon Schuster deletar o plano de publicação de The Power of Big Tech, de Josh Hawley – é que os questionamentos saíram da esquerda amplamente definida: ativistas trans, feministas, antirracistas e antitrumpistas.

O novo entusiasmo da esquerda para tirar maus livros das prateleiras é um erro. É do interesse de todo mundo, mas especialmente da esquerda, ter um discurso o mais amplo possível.

No campus da elite, ou nas páginas de The Nation, onde escrevo, a esquerda pode parecer poderosa e com direito a showzinho de exibição de musculatura. Mas no país como um todo a esquerda é fraca. Os Republicanos controlam todos os braços dos 23 governos estaduais; em contraste, os Socialistas Democráticos da América têm 90.000 membros. Na mídia, nada na ponta esquerdista tem a popularidade da Fox News ou dos programas de rádio da direita. Mais: pesquisas mostram que Republicanos são muito mais empenhados do que Democratas no sentido da proibição dos livros que desaprovam em bibliotecas escolares: como aqueles que têm personagens LGBTQ, bruxaria, vampiros, evolução e ateísmo, ou que usem “linguagem explícita”, por exemplo.

Algumas posições da esquerda, como direito universal ao seguro de saúde e um salário-mínimo muito mais alto, têm muito apoio. Mas muitas outras posições não o têm: poucos americanos querem abolir a Polícia e as prisões, ou o Controle Alfandegário e de Imigração, ou que depredação e vandalismo sejam boas ferramentas para ferrar o Sistema; de acordo com uma recente pesquisa de opinião do Gallup, somente um terço dos eleitores apoia atletas trans nos esportes femininos. O que dá aos esquerdistas o espaço para promover posições impopulares em lugares hostis é o respeito que a maioria dos americanos atribui à liberdade de expressão.

Gente que quer tirar a plataforma de oradores ou jogar um livro ao mar gosta de dizer que a Primeira Emenda se aplica somente ao governo. Mas socialmente e culturalmente, a noção de que as pessoas têm direito a dizer o que acham e ler o que querem é muito mais ampla que isso. Por isso, desculpas corriqueiras – sempre se pode comprar online, o orador tem uma porção de outras maneiras de se expressar, livros saem de circulação e catálogo a toda – soam fajutas.

Tirar a plataforma de um orador que foi escolhido através de canais universitários reconhecidos, ou atacar a cadeia de lojas Powell’s Books por vender Unmasked: Inside Antifa’s Radical Plan to Destroy Democracy (Desmascarado: Por dentro do plano radical do Antifa para destruir a democracia), de Andy Ngô, significa baixar a própria posição no debate. Você ganha a cara do seu inimigo. E o que se leva na prática? Powell não põe os livros de Ngô nas prateleiras, mas vende online. Charles Murray (cientista político da direita, autor de The Bell Curve) fica parecendo a vítima de uma turba do Middlebury (escola da Califórnia). Josh Hawley, como Woody Allen, levou seu livro para outro editor.

Quando se censura um livro ou se cala um orador, o que se está fazendo é dizer que é preciso proteger as pessoas das ideias com as quais você discorda. Você não acredita que as pessoas sejam capazes de contextualizar, historicizar, pesar argumentos ou mesmo, como eu, apenas satisfazer uma curiosidade, sem cair no buraco do erro que o coelho cavou. Se caírem, você não acredita em sua própria capacidade de puxá-las de lá. Elas ficarão lá para sempre, pensa você, roendo as cenouras do reacionarismo. Você pode argumentar à vontade que não existe essa história de “cultura do cancelamento”, mas as pessoas sabem quando a inteligência delas está sendo desrespeitada.

Com razão, a linhagem libertária na cultura americana é responsabilizada por muitos problemas. Mas tem um lado positivo. É o que permite que pessoas que acham o aborto moralmente errado acreditem que as mulheres deveriam ter o direito de tomar suas próprias decisões; é o que leva pessoas que desprezam os ateus (ou quaisquer outros com uma religião diferente) a resistir à coerção religiosa e mesmo à guerra tão comum em outras partes do mundo. É o que permite aos socialistas americanos imaginar um socialismo que preserve direitos individuais, inclusive a liberdade de expressão.

A pergunta, como sempre, é quem decide o que é permissível e o que ultrapassa os limites do razoável. E quem, como diz o provérbio latino, vigiará os vigias. Fácil imaginar que as pessoas no comando serão como nós, mas a história de censura editorial e literária nas democracias ocidentais, sugerem o oposto. Os mesmos tipos de gente estão sempre no poder quando as ideias vão no sentido da supressão: fanáticos, obsessivos, carreiristas, aparelhistas. Mas as ideias acabam escapando: Mein Kampf foi banido na Alemanha até poucos anos atrás, mas há décadas existem bandos de nazistas e neonazistas por lá.

“Basicamente, você é uma liberal clássica”, disse-me meu marido quando li para ele o rascunho deste ensaio. Talvez. Esquerdistas gastam montes de tempo atacando o liberalismo e confiando nele para protegê-los, como filhos que pensam que podem dizer coisas terríveis aos pais, e os pais sempre estarão lá para eles. Isso pode valer para os pais (a maioria deles), mas na política não funciona assim. Se você exige que uma livraria não tenha os livros de seu inimigo ou se regozija quando um clássico problemático é retirado de catálogo e circulação, seu inimigo pode fazer o mesmo. Aí tudo passa a se resumir a quem tem mais poder. Não haverá um princípio universal ao qual apelar. Na era macartista, comunistas americanos como meu pai compreendiam isso muito bem. Os stalinistas eram mais liberais que os liberais nem que fosse por autopreservação.

Eu apoiaria a liberdade de expressão mesmo se não fosse uma necessidade tática deste momento, porque não penso ter a chave para toda a verdade desse mundo. Mas o fato é que, dadas as realidades americanas, em que metade do eleitorado votaria em Donald Trump e grande número de pessoas sequer acredita na evolução das espécies, ninguém precisa mais de liberdade de expressão do que a esquerda. É confuso, é contraditório, significa conviver com insultos e estupidez e até, às vezes, com o mal e a dor. Felizmente, seu inimigo está na mesma posição. Isso é o melhor que se pode ter.