CANA: UM JORNALISTA INFILTRADO NA POLÍCIA FRANCESA

Miguel Sader

Acaba de sair na França um livro com potencial para abalar as estruturas do país. FLIC: UN JOURNALISTE A INFILTRÉ LA POLICE, reportagem investigativa de Valentin Gendrot, foi publicado na semana passada pelas Éditions Goutte D’or, editora parisiense jovem porém já consolidada no mercado e com uma linha editorial muito avançada. Flic é “cana”, “tira”, “policial”. O autor se infiltrou como agente na polícia francesa.

Imediatamente em seguida ao lançamento, o livro começou a causar grande barulho – e não somente na França, mas em outros países da Europa também. Portais poderosos como The Guardian e El Mundo já inseriram o trabalho de Gendrot em suas pautas. Outros jornais e revistas da Itália, de Portugal, da Turquia e até mesmo da Austrália também procuraram o autor para entrevistas. Em poucos dias, FLIC decolou para o primeiro lugar na lista de mais vendidos da Amazon na categoria de não-ficção, com mais de 55 mil exemplares comercializados. Números impressionantes.

Não é para menos. O trabalho do jovem jornalista é de fato impactante. Ele assumiu os riscos de se infiltrar no departamento de polícia de um dos distritos mais violentos de Paris, o 19º arrondissement, para investigar de dentro o funcionamento do sistema que diariamente mata jovens negros e imigrantes nas periferias francesas. Por dois anos, Gendrot viveu disfarçado, passou por todos os treinamentos, pôde testemunhar de perto o dia-a-dia de um policial comum; e ele compartilha essa experiência em seu livro. Os relatos são tão tristes quanto urgentes: as condições precárias de trabalho, o suicídio de um colega de delegacia, os elementos racistas e xenófobicos que atravessam as abordagens, os erros, os enganos, os encobrimentos. Gendrot não deixa passar nada.

Mas o autor faz questão de frisar: este não é um livro anti-polícia. É um depoimento dolorosamente verdadeiro de quem vive os dramas de um policial comum, que muitas vezes carrega sozinho a culpa por apertar o gatilho, quando na verdade este é um trabalho feito em conjunto pelo Estado e pela sociedade. Ele traz a perspectiva de quem está na ponta da lança.

Cada país tem suas indiossincrasias, é claro. Traçar paralelos entre França e Brasil não é simples, por conta de uma série interminável de fatores culturais, históricos, políticos e sócio-econômicos. Mas o ano de 2020 tem mostrado com muita clareza que a luta contra a opressão policial está cada vez mais unificada. O alcance e os impactos gerados pela atuação do movimento Black Lives Matter em resposta às mortes de negros inocentes nos Estados Unidos são inéditos em nível global. FLIC chega ao público para somar nesta luta. Que chegue logo ao Brasil.