A FRANTUMAGLIA DE MARTHA BATALHA

Anna Luiza Cardoso

Martha Batalha, autora de A VIDA INVISÍVEL DE EURÍDICE GUSMÃO e NUNCA HOUVE UM CASTELO (Companhia das Letras), Conversa com (A)gente sobre o conceito de Frantumaglia, cunhado pela napolitana Elena Ferrante: aquele conjunto de ideias, pensamentos e memórias que flutuam na consciência, baseando a escrita. Martha, como Ferrante, usa a cidade de sua infância como cenário de histórias sobre mulheres comuns e ao mesmo tempo fascinantes. Com imensa graça, compreensão e amor pelo Rio de Janeiro, mais um irônico piscar de olho para universais carioquices da gente, ela recorre à paisagem urbana até para comentar o machismo: “O sistema patriarcal é como um Opala 73 com a lataria enferrujada e o motor batendo pino, tentando acelerar na Linha Amarela. Não funciona.”

VB&M: Como você começou a escrever? De onde vem a inspiração para a construção de seus personagens tão únicos e tão universais?

MB: Comecei tarde, depois de ter trabalhado muitos anos como repórter e editora. Quando minha primeira filha nasceu, foi um momento de ruptura na minha vida. De solteira, moradora do Rio de Janeiro, dona de editora, de repente me vi casada, morando em Nova York, aprendendo a ser mãe e trabalhando em uma editora no Village. Foram muitos recomeços, e decidi dar uma chance à escrita.

Sobre inspiração para criar personagens, não é uma resposta simples para nenhum escritor. Gosto do conceito de Frantumaglia da Elena Ferrante, que é esse conjunto de ideias, pensamentos e memórias que flutuam na consciência, e que tentamos capturar e dar nexo por meio da escrita. Os personagens, as cenas e tramas vêm todos dali.

VB&M: Você tem uma das vozes narrativas mais originais da literatura brasileira contemporânea _ de uma ironia e humor a toda prova para tratar de problemas dramáticos das relações entre homens e mulheres, das famílias, dos conflitos entre indivíduo e sociedade. Como você a construiu nos seus dois primeiros romances, ambos publicados, A VIDA INVISÍVEL DE EURÍDICE GUSMÃO e NUNCA HOUVE UM CASTELO?

MB: É aquela história do Michelangelo esculpindo a estátua de Davi. Quando perguntado como fez, ele disse que tirou do mármore tudo o que não era Davi. Para uma escritora é a mesma coisa. A gente tem que escrever muito, ler demais, imitar os outros, para em algum momento conseguir ver num texto o que é original e é bom, e o que deve ser descartado.

Essa questão da voz autoral sempre me fascinou. Como leitora, o que me faz querer virar a página é ser guiada por um narrador inteligente, irônico, lírico ou bem humorado. Alguém que me encante. O José Cândido de Carvalho, por exemplo, em “O Coronel e o Lobisomem”. Ou os narradores dos contos “A Força Humana”, do Rubem Fonseca e “A maior ponte do mundo”, do Domingos Pellegrini. A voz, o estilo dessas narrativas, salta da página.

Em relação à construção da minha voz, eu trabalho para que seja sincera, direta, às vezes irônica e sempre acessível. Romances nacionais de escrita acessível, nos quais os leitores possam se reconhecer nos espaços geográficos, personagens e temas são um importante instrumento político, não no sentido panfletário, mas no de construção da identidade, memória, entendimento de si e do entorno.

VB&M: Suas grandes personagens até hoje são mulheres brasileiras na história recente. O que você quis que elas nos dissessem?

MB: Que o sistema patriarcal é como um Opala 73 com a lataria enferrujada e o motor batendo pino, tentando acelerar na Linha Amarela. Não funciona, já passou, está obsoleto. Aliás, nunca funcionou. Nem as mulheres nem os homens se beneficiaram com o arranjo. O que esse sistema conseguiu ao longo dos séculos foi criar uma sociedade hermética e hipócrita, em que homens e mulheres se frustram e não conseguem se realizar intelectual nem emocionalmente, por estarem limitados a certos papeis.

Mas voltando às minhas mulheres: dizem que os escritores estão sempre escrevendo o mesmo livro, de novo e de novo, que voltam sempre à mesma temática. Um dos temas que me fascina é a falta da memória do brasileiro. O outro é a capacidade de destruir e silenciar nossos talentos, quando fazem parte de minorias. É daí que vem a Eurídice. O resultado é uma sociedade mais ignorante, e a soberania de mediocridade.

VB&M: Como foi a experiência de ter sua obra publicada em tantos países e de vê-la adaptada com tanto sucesso para o cinema?

MB: É muito gostoso abrir as mídias sociais e ver alguém falando sobre meus livros numa língua estranha, descobrir uma capa num alfabeto desconhecido. Eu não esperava esse sucesso, e agradeço muito, porque me permite exercer a escrita como trabalho.

VB&M: Você vive há muitos anos nos EUA, casou, teve filhos e criou família e raízes no exterior, mas sempre vinha ao Brasil mais de uma vez por ano. A Covid-19 obriga-a a permanecer longe por muito mais tempo do que poderia imaginar. Como a separação física do país que lhe oferece seu idioma de trabalho a está afetando?

MB: A rotina não mudou muito com a pandemia. Sou caseira, mal vejo TV, cuido dos filhos e da casa, leio e escrevo. Nada de emocionante acontece, e adoro que seja assim. Mas é difícil não poder ir ao Brasil, não ter ideia de quando verei meus pais. E na verdade são problemas mínimos, se comparados às consequências da pandemia para outras pessoas.

VB&M: Pensa que algum dia você escreverá em inglês?

MB: Acho que hoje eu já poderia escrever não ficção em inglês, mas não tenho a menor vontade. Gosto do português, de escrever sobre temas brasileiros. Se meus próximos livros forem traduzidos, ótimo. Se não forem, tudo bem. Minhas preocupações não têm a ver com língua e tradução, mas com a vida que se pode dar ou não a uma história.