Narrativas & Depoimentos publica conto inédito da escritora e roteirista Angélica Lopes, autora de A MALDIÇÃO DAS FLORES (Planeta, 2022). Da farta produção literária da pandemia, “A bordo do Moira” acompanha um casal durante a lua de mel em navio de cruzeiro europeu no início da Covid-19. Com sensibilidade, riqueza de detalhes na descrição de vidas de uma geração carioca e profunda compreensão da alma humana, Angélica expõe o estresse da quarentena imposta aos passageiros que ficaram presos no Moira por meses a fio e como a relação dos recém-casados foi posta à prova.
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A BORDO DO MOIRA
Por Angélica Lopes
A lua-de-mel durou mais do que o planejado e menos do que o esperado. Conheciam-se desde a escola, colegas de classe, vizinhos de rua, melhores amigos de infância que logo se perceberam mais.
As famílias costumavam se reunir em churrascos aos domingos, ora no quintal da casa 38, ora na varanda da casa 53, da mesma Rua Edvaldo Pinto, num bairro da Zona Norte. Chamavam os sogros de tios, os cunhados de primos, numa intimidade construída desde sempre em caronas compartilhadas e férias de fim de ano na casa de praia alugada.
Foram o primeiro beijo um do outro e também o primeiro sexo, descoberto na rede da varanda da casa dele, a de número 38, com mãos apressadas e o risco, nunca concretizado, de serem flagrados pelos pais, tanto os dele quanto os dela.
A vida de ambos seguia o que poderia se chamar de curso natural de eventos.
Quando se sentiram seguros em suas carreiras, ela, trabalhando numa escola particular de classe média como professora de geografia, ele, no departamento financeiro de uma empresa de grande porte, marcaram a data. Tranquilos com a estabilidade que os laços e afinidades lhes asseguravam, com tantos amigos e lembranças em comum, nenhum dos dois cogitou a hipótese de abdicar do que parecia ser um destino comum.
É bem verdade que Carla quase decidiu estudar no exterior, assim que completou a faculdade e Michel quase se candidatou a um emprego em outra cidade, quando o primeiro estágio chegou ao fim.
Em diferentes momentos, os dois quase se permitiram alimentar o desejo por outras pessoas que pacientemente aguardavam que aquele namoro de infância terminasse, como é próprio dos namoros de infância.
Porém, todos esses quases mantiveram-se como quases e, envolvidos na rotina, seguiam unidos como casais de cavalos-marinhos que após encontrarem-se uma única vez permanecem juntos. Afinal, a tendência dos corpos é manter-se onde está, como bem apontou Newton em sua primeira lei. Uma taça de vinho não se derrama sozinha, é necessário que haja um tropeço ou um esbarrão. Um carro sem freio só interrompe o movimento ao encontrar uma árvore que lhe faça frente.
Desavisados do que estava por vir, Carla e Michel acreditavam no poder soberano da inércia, esquecendo-se de outro importante princípio da natureza, que nunca tinham tido a sorte ou o azar de experimentar: a inclinação do universo para se expandir e abraçar o caos.
No início daquele ano de 2020, Carla e Michel ainda não sabiam que a vida, contrariando a teimosia das mentes humanas, sempre tentando conferir algum fiapo de lógica a acontecimentos aleatórios, não segue planos e que não há hábitos ou amores que sejam permanentes.
A cerimônia na Igreja de Santa Margarida Maria era a realização de um desejo de infância de Carla que, em pequena, enxergava um castelo no lugar da igreja toda vez que passava pela construção imponente de torres altas à beira da Lagoa Rodrigo de Freitas.
– É aqui que a princesa mora, mãe?
– Não, filha, essa é a casa de Nosso Senhor. Não está vendo a cruz lá no alto?
A menina não se convencia. Era sabido que Nosso Senhor morava no céu, a mãe certamente havia se confundido. Michel não fazia questão da cerimônia religiosa, mas achava que os pais de ambos não superariam a decepção de não poder exibir ampliada e emoldurada em dourado a foto em que Carla apareceria em seu vestido branco de renda e Michel em seu terno alinhado.
– Serão poucos convidados. Só um bolo. Uma data como essa não pode passar em branco – a mãe de Michel insistiu, quando o filho lhe explicou os custos envolvidos.
Depois do brinde no salão anexo da igreja, Carla e Michel seguiram para uma noite de núpcias sem grandes expectativas. Conheciam o mapa do prazer do outro desde a adolescência e, àquela hora da noite, estavam cansados demais para simular surpresas. Mesmo assim, abriram a garrafa de champanhe, cortesia do hotel e, em silêncio, tentaram conectar-se com o tempo passado em que ainda havia cheiros e reentrâncias escondidas nos corpos não de todo explorados.
Quinze dias foi o tempo que conseguiram em seus empregos para realizar a viagem às ilhas gregas. Nascida numa terra dos sacis, curupiras e boitatás, espíritos da mata verde e dos rios, Carla sempre tivera fascinação pela mitologia azul das ilhas longínquas, onde deuses vingativos vestidos com togas brancas e coroas de louro lançavam raios, maldições e brincavam com as vidas humanas como se o mundo fosse um jogo.
Finalmente, Carla poderia visitar os locais que até então só conhecia por imagens. Trilharia pessoalmente as rotas pontilhadas que tanto estudara em seu atlas. A bem da verdade, a ideia de fazer aquela viagem lhe empolgava mais do que o próprio casamento. Michel já era seu desde sempre. Mas o mar, não. Tampouco o vento.
Embarcaram no transatlântico Moira de mãos dadas, mas sem os suspiros tão comuns aos recém-casados. Michel certificava-se pela centésima vez se os passaportes estavam mesmo no bolso da mochila, enquanto Carla admirava a grafia das letras em alfabeto grego que se destacavam no casco.
– Feliz? – Michel quis saber, enquanto desfazia a mala na pequena cabine da classe econômica paga em doze vezes no cartão.
Mas Carla não o escutou, o ruído do vento que entrava pela escotilha e lhe desorganizava os cabelos já a transportara para longe antes mesmo do navio zarpar.
Quando o comandante anunciou que o Moira acabara de entrar em águas internacionais, Carla sorriu em silêncio. Suspendia-se naquele momento a ideia de território determinada por acordos entre homens e nações. Os 425 passageiros percorriam agora um espaço líquido em que as únicas referências seriam meridianos invisíveis e estrelas inalcançáveis.
– Já estamos no entreterras – Carla comunicou ao marido. Era estranho chamá-lo assim agora.
– No meio do nada, você quer dizer – ele brincou, checando a localização exata no GPS do celular e fazendo a conta de quantos quilômetros faltavam para a primeira parada do Moira.
Longe da rotina que os definia, Carla achou que ela e Michel podiam experimentar uma realidade inventada: fingir aos demais passageiros que eram artistas, acordar ao meio-dia em vez das sete, vestirem-se com trajes elegantes.
– E por que faríamos isso? – Michel perguntou quando a mulher lhe confidenciou o desejo.
– Para variar.
– Gosto de ser como eu sou – ele respondeu e, para que ela não ficasse amuada com a recusa, completou – Também prefiro você como você é.
Carla sorriu, mas não acolheu o elogio por completo. Continuaria sendo ela mesmo se de vez em quando brincasse de não ser.
Quem os conhecia da Rua Edvaldo Pinto certamente diria que Michel e Carla conheciam-se como ninguém. Mas a convivência duradoura nem sempre é capaz de perscrutar as profundezas da alma.
Lado a lado, os dois preferiram manter um espaço reservado para si mesmos e respeitavam tanto esse acordo jamais verbalizado que, mesmo após tanto tempo juntos, jamais tiveram uma briga.
– O que houve? Algum problema?
– Nada. Bobagem – era a resposta, pois não gostavam de perturbar a tranquilidade um do outro com suas angústias.
Na primeira noite a bordo do Moira, participaram de um bingo no salão de eventos. Michel olhava concentrado para a cartela à sua frente e estava a apenas um número da vitória, quando ouviu os gritos animados vindos de uma mesa próxima.
Uma jovem cercada pelas amigas comemorava o primeiro prêmio da noite: uma sessão de massagem no spa do navio. Aquele pequeno grupo de moças sorridentes estava a bordo do Moira para comemorar a formatura na faculdade de Medicina, mas Michel e Carla só descobririam essas informações mais tarde.
– Foi por pouco – comentou uma senhora sentada perto do casal, ao espiar a cartela quase completa de Michel – Só faltava o 19.
– Quem sabe na próxima – ele respondeu, calculando mentalmente a probabilidade real de uma vitória futura. Havia de se levar em conta a quantidade de jogadores, as opções impressas em cada cartela e os números que já haviam sido sorteados no pequeno globo de estrutura aramada na primeira noite.
Com menos de uma semana de viagem, Michel tornou-se monossilábico.
O mar o entediava.
– Vamos até o restaurante? – Carla sugeria.
– Estou sem fome.
– Quer dar uma volta no convés?
– Estou cansado.
Ao contrário de Carla, Michel não via sentido em ficar horas tentando avistar um golfinho que, caso avistasse, jamais teria certeza se era realmente um golfinho ou um pedaço de plástico boiando no oceano.
– Você nunca viu tantas estrelas como aqui – Carla tentava chamar a atenção para o espetáculo natural que tinham à sua volta, mas Michel não olhava para cima.
– Com o frio que está fazendo, não consigo ficar cinco minutos aqui fora.
O período ideal para terem feito aquela viagem teria sido entre maio e junho, quando o tempo é quente e a paisagem do Mediterrâneo exibe a paleta de tons turquesa com reflexos dourados dos cartões postais.
Mas o preço que podiam pagar, depois dos gastos feitos com a festa de casamento e o aluguel do apartamento novo no recém-inaugurado empreendimento imobiliário, número 101 da Rua Evaldo Pinto, era o da baixa estação. Além do que, com o carnaval caindo em fevereiro, havia sido muito mais fácil negociar com os respectivos chefes a folga para aquele período.
– Amanhã faremos nossa primeira parada na Itália – Michel lembrou quando os dois tomavam um drinque no bar – Não vejo a hora de colocar o pé no chão.
Carla irritou-se de leve com o comentário, dando mais um gole em seu mojito.
A tranquilidade que normalmente sentia na companhia do marido – ainda era estranho chamá-lo assim – vinha sendo dia a dia substituída pelo incômodo de ter que lidar com o seu mau humor constante.
Meses antes, quando ela lhe apresentou a sugestão de fazerem o cruzeiro, Michel poderia ter se negado, argumentado que não suportava navios, que preferia o romantismo de uma cabana na montanha ou a agitação de uma grande metrópole, mas não o fizera.
– Tanto faz, você escolhe – ele respondera na época diante das alternativas de pacote e, agora, mantinha-se ali, acabrunhado, sem esboçar sorriso, levando Carla a um estado de culpa do qual não se julgava merecedora.
Um comportamento que não era novidade. Carla lembrava-se da vez em que, nos tempos da escola, formaram uma dupla num show de talentos.
Na véspera da apresentação, o nervosismo de subir ao palco atacou o estômago pouco afeito ao lúdico de Michel e Carla teve que ouvir por anos que tinha sido a responsável pela gastrite crônica do namorado.
No dia marcado para o desembarque na Itália, Michel levantou-se antes de Carla. Ela andava preguiçosa nos últimos dias e lhe avisara que talvez nem descesse.
Michel saiu da cabine com urgência de terra. Nas ruas de Nápoles, poderia finalmente caminhar sem o limite do gradil do Moira. Admiraria as fachadas dos prédios, com cores e arquitetura variadas que mudariam a cada passo, diferente do horizonte sempre azul e de monotonia opressora que vinha encarando desde que saíram do Brasil.
Acima de tudo, Michel ansiava pelo momento mágico em que o balanço do mar cessaria. Todo o equilíbrio que lhe fora roubado pelo movimento ondulante do oceano seria em breve restaurado nas terras italianas.
A bordo do Moira, sentia a vertigem incessante de quem está agarrado a um pêndulo incansável. Aquele não parar eterno lhe abalava o foco e deixava seus sentimentos embaçados, como se Michel estivesse num sonho perturbador do qual não se lembraria ao amanhecer, mas que ainda assim lhe deixaria com um desconforto no peito.
– A gente se acostuma depois de uns dias – Carla lhe garantira quando ainda estavam planejando a viagem – O cérebro se adapta a qualquer situação.
Mas Michel sentia-se numa prisão cercado por uma muralha azul e intransponível de milhares de quilômetros. Por estar contando os dias para sua liberdade, naquela manhã de março, foi o primeiro da fila do desembarque. De longe, observava com alguma inveja os trabalhadores que caminhavam pelo porto, já aborrecido com a demora da liberação. O navio já havia atracado há mais de uma hora.
– Nosso desembarque foi cancelado. Não fomos autorizados a descer.
Uma pequena multidão se formou em torno do funcionário que organizava a fila exigindo explicações.
– A Itália fechou as fronteiras. Parece que é uma pandemia – o rapaz informou sem muita certeza.
Carla só acordou quando ouviu Michel abrindo a porta.
– O que houve? Ficou com saudades? – brincou preguiçosa enquanto Michel se sentava na cama, pálido.
Durante os meses de janeiro e fevereiro, os dois chegaram a ouvir notícias sobre um vírus que estava causando uma gripe na Ásia. Mas a Ásia era muito longe da Rua Edvaldo Pinto e também do mar da Grécia. Por isso, na época das primeiras reportagens, Carla e Michel não deram atenção ao noticiário. Estavam em meio a degustações de docinhos, arranjos de flores a escolher, lista de convidados a reduzir. Aquela ameaça não parecia ter a capacidade de alcançá-los.
Sem que tivessem se dado conta, nos dias em que estiveram cruzando o Atlântico e depois o Mediterrâneo, a pandemia havia se espalhado de forma rápida pela Ásia e pela Europa. O comentário geral é de que “o mundo havia mudado”, mas eles não imaginavam como e quanto. O número de mortos era maior do que uma gripe comum e, segundo especialistas, todos os habitantes do planeta iriam contrai-la, já que a espécie humana não tinha qualquer imunidade contra o novo vírus.
Até que se encontrasse uma vacina, as pessoas deveriam se manter onde estavam. O comércio havia fechado, os voos foram suspensos, as fronteiras levantaram bloqueios e as ruas das principais metrópoles do mundo estavam desertas. A ordem era “fiquem em casa”, o que era impossível para os tripulantes do Moira.
Mesmo após a proibição de desembarque na Itália, as atividades no navio continuaram, ginástica na piscina às 9h, show de dança típica após o jantar com o comandante e bingo às terças-feiras. Os sorrisos, porém, estavam mais tensos e os silêncios mais demorados. O assunto nas mesas passou a ser um só.
Os celulares deixaram de ser usados como máquinas fotográficas e voltaram à sua função de fonte de informação e conexão com o continente. Passageiros ligavam para seus parentes para tranquilizá-los, incluindo Michel e Carla, que ficaram aliviados em saber que tudo continuava como sempre esteve na Rua Edvaldo Pinto.
O comandante do Moira decidira seguir até o destino sem as paradas que estavam planejadas no roteiro.
– Estamos parecendo o Odisseu – Carla comentou certa noite já com as luzes da cabine apagadas – O navio dele nunca conseguia chegar. Sempre havia um imprevisto que desviava a rota.
Michel ouviu a história da qual já ouvira falar por alto e suspirou na escuridão. Já não suportava as curiosidades sobre a cultura grega que Carla insistia em compartilhar com ele.
Não estavam mais em lua-de-mel, não se tratava mais de uma viagem de férias.
– Quanto tempo esse Odisseu demorou para voltar para casa?
Carla sabia a resposta, Odisseu levara vinte anos para voltar à Ítaca, mas preferiu não revelar.
O balanço que incomodava Michel desde o embarque agora o enlouquecia. Nos dias que se seguiram, enquanto Carla observava as nuvens e o voo das aves, Michel buscava reportagens sobre o avanço da nova doença e do vírus batizado de Sars-cov-2.
Homem dos números, ele sabia que, num crescimento pandêmico de transmissão exponencial em que um vira dois, dois viram quatro, quatro viram oito e oito dezesseis, como um embrião ganhando forma no ventre da mãe, o lago está apenas com metade da superfície coberta por plantas um dia antes de estar inteiramente tomado por elas.
Ao perceber que Carla não compartilhava de suas preocupações nem de seu desespero por continuar sobre a água e exausto demais para disfarçar seu incômodo, Michel passou a arranjar pretextos para se afastar. Preferia a companhia dos desesperados pela falta de perspectiva a dos otimistas. Sentia-se mais ligado a um dos cozinheiros que tinha a mãe idosa internada em estado grave do que à esposa.
Voluntariou-se para fazer parte de uma comissão que organizaria a dinâmica do navio. As médicas recém-formadas puderam colocar seus conhecimentos em prática e, junto com o oficial-médico do Moira, davam orientações sobre a nova doença, ensinavam protocolos de higiene e tratavam dos doentes com os remédios que os próprios haviam levado e outros que encontraram no estoque do navio.
Houve quem não concordasse com as novas diretrizes acordadas. Um empresário que nos primeiros tempos aproveitava a área de lazer com a mulher e os filhos insistia em seu direito de usar a academia da maneira que quisesse e, ao ser confrontado, teve que ser contido por três.
Quando dois passageiros embarcados no último porto na Espanha começaram a sentir os primeiros sintomas, o Moira se transformou. Determinou-se o isolamento de todos em suas cabines, que para Carla e Michel foi um período de silêncio. Assim que os espanhóis se mostraram recuperados e ninguém apresentou sintomas, concluiu-se que os passageiros do Moira estavam a salvo e poderiam voltar a circular por sua ilha flutuante.
Enquanto grande parte da população do planeta sufocava em hospitais e chorava seus mortos, a boate do Moira foi reaberta. A festa aconteceu num sábado, mas poderia ter sido numa segunda-feira já que os dias da semana deixaram de ser uma referência real. Metade dos passageiros compareceu, dançou e bebeu com a euforia de prisioneiros recém-libertos. Outra metade se ressentiu com a atitude dos primeiros: não havia o que comemorar quando tantos sofriam em terra.
A comida passou a ser mais escassa e a fartura do pacote all inclusive foi substituída por refeições mais modestas, dando prioridade aos perecíveis. O navio também contava com um sistema capaz de transformar água salgada em potável, recurso que poderia mantê-los ali indefinidamente.
– Se houvesse pelo menos um canteiro com terra no convés, poderíamos fazer uma horta – Michel sonhava, ao dar uma mordida na última maçã.
Ele e Carla já não caminhavam mais de mãos dadas como faziam na Rua Edvaldo Pinto.
Ele, atormentado pelo balanço que lhe torturava a alma. Ela, tranquila, com a sensação de que poderia viver no Moira até o fim dos dias.
De longe, Carla viu tudo que conhecia dos mapas, mas desejava ter diante dos olhos: as montanhas de Atenas, a cratera de Santorini e a entrada da ilha de Rodes.
Em seus pensamentos, encantava-se com a teoria de que a pandemia poderia ser obra dos deuses do lugar, sempre movendo as peças do tabuleiro da Humanidade.
Dessa vez, não eram tempestades, ciclopes ou sereias que impediam o navio de chegar ao seu destino como na saga de Odisseu, mas uma criatura invisível e de alguma forma também mágica. Um vírus que exibia uma coroa soberana.
O sexo entre os dois tornou-se mais frequente, marcado por um ardor que há anos não experimentavam. Mesmo ocupado com as novas tarefas, Michel procurava o corpo de Carla com a urgência do fim dos tempos. Ávido pelo cheiro da única mulher que conhecera.
Toda vez que a possuía na pequena cabine da classe econômica, Michel queria despertar Carla do que ele considerava um transe, mas a esposa não o correspondia com a mesma fúria. Amava-o com a tranquilidade de sempre e, ao fim do ato, pegava um livro ou colocava uma música no fone de ouvido.
Assim como acontecera na Itália, a Grécia também se recusou a recebê-los, alegando o perigo de contaminação e condenou o Moira a vagar por tempo indeterminado. O comandante navegou a esmo pelo Egeu até que, para economizar combustível, decidiu ancorar a um quilômetro da costa grega.
Michel passou a respirar melhor quando o movimento se interrompeu. O balanço das ondas ainda era perceptível, mas ele já conseguia pensar com clareza.
A pandemia chegara ao Brasil com milhares de casos e de mortos. Um vizinho da Rua Edvaldo Pinto, destaque na pista de dança do casamento, estava internado.
– Será que ele vai sair dessa? – Michel perguntara à mãe ao celular, mas ela não sabia a resposta.
– Cada pessoa reage de um jeito a essa doença, meu filho.
– Ele elogiou o DJ da festa, lembra? – Michel comentou com Carla assim que desligou. – E ainda levou um pedaço de bolo para casa.
Ela fez que lembrava, distraída, e os dois ouviram gritos vindos do convés, onde encontraram rostos assustados e olhares confusos.
– Cada um tem o seu limite. O dela chegou – murmurava a senhora do bingo, com as mãos no peito.
A alguns metros dali, amparado por um grupo de passageiros, o empresário que semanas antes reivindicava seu direito à academia chorava inconsolável ajoelhado sobre o deck.
– Ela só queria sair desse lugar.
Ele se referia à esposa que minutos antes caminhara até o gradil metálico do Moira e jogara-se nas águas do Egeu. Avisou que iria até o bar pegar um refrigerante e não voltou mais. Quando o marido saiu à sua procura, encontrou apenas seus sapatos de bico fino próximos a borda do convés.
Moira em grego é o mesmo que destino, referência a um trio de divindades responsáveis por tecer os fios de vida de todos os seres. A irmã mais velha Cloto possuía um fuso com o qual tecia a nossa existência. A segunda irmã Laquési colocava os fios produzidos pela irmã na roda da fortuna e, ao girá-la, permitia que os viventes ora experimentassem o auge, ora, o fracasso. Na roda de Laquési, as vidas giravam, giravam, até o momento em que a terceira irmã, a inflexível Átropos, aparecia com sua tesoura. Foi o que aconteceu com Samantha, pois agora os passageiros do Moira se chamavam pelo nome.
Na homenagem organizada para o dia seguinte, o marido Igor e os filhos Anna e Oliver jogaram emocionados alguns dos pertences de Samantha no mar. Valter, um funcionário público aposentado e músico nas horas vagas, tocou uma música suave em sua flauta e Michel teve que conter as lágrimas. Como muitos ali, ele compreendia o que se passara na alma de Samantha.
Com a tragédia, os relacionamentos entre os agora 424 passageiros do navio se rearranjaram. Lurdes, a senhora do bingo, antes tão solitária com seus livros, passou a cuidar dos órfãos de Igor. Glória, uma das médicas recém-formadas, encontrou o amor nos braços do capitão Machado. Larissa e Jaime, casal de meia idade que ocupava a cabine ao lado de Michel e Carla, anunciaram que após anos de tentativas estavam esperando um bebê.
– Se ficarmos mais nove meses por aqui, eu faço o parto – Glória se ofereceu e uma sombra passou pelo olhar de todos.
– O bebê nascerá em casa – Lourdes se apressou em tranquilizar Larissa – Essa doença já terá passado até lá, não acham? É impossível que dure tanto.
O silêncio que se seguiu foi quebrado por Michel.
– Só sabemos que não temos para onde ir, nem para onde voltar.
Carla estranhou o comentário tão melancólico. Michel não era de filosofias.
– Se não temos futuro certo, vamos aproveitar o presente – Carla sugeriu propondo um brinde à gravidez.
Mas Michel não brindou. O futuro que ele imaginara para si havia sido outro. Após a lua-de-mel de duas semanas, que em nada alteraria sua rotina e da qual guardaria apenas fotos e lembranças, o casal se dedicaria à mudança para o novo apartamento. O plano seguiria de forma natural, além de uma promoção no trabalho há muito pleiteada, também havia a gravidez de Carla para o ano seguinte e, quem sabe, uma nova viagem quando o filho estivesse maior. Nordeste talvez.
Mas o caos substituiria a inércia da vida que levavam.
Após uma noite de intensa ventania no Egeu, Michel estava consertando um toldo rasgado, quando avistou Carla caminhando até uma das espreguiçadeiras. O sol havia aparecido e ela estava de biquíni e chapéu de abas largas.
– Dá para acreditar que estamos na Grécia em junho, Michel? – ela lhe sorriu – A melhor época do ano. Quem iria imaginar? A vida é imprevisível mesmo.
O sorriso de Carla a comemorar o sol da alta temporada dentro da prisão em que viviam há meses fez Michel sentir algo inédito. O amor que haviam vivido até aquele momento sustentava-se apenas na tranquilidade da rotina da Rua Edvaldo Pinto. Não era forte o suficiente para resistir a uma situação extrema imposta pelo acaso. Não era justo responsabilizar o vírus. Outros casais a bordo do Moira mantinham-se unidos e, talvez, até mais cúmplices do que antes.
Ao vê-lo ali, parado, Carla percebeu que o rosto do marido – ela já estava até se acostumando a chamá-lo assim – exibia uma expressão desconhecida.
– O que houve? – ela quis saber, levantando os óculos escuros.
Em vez de calar sua angústia para evitar o desequilíbrio como sempre fizera, Michel rompeu o acordo silencioso que mantinham há tanto tempo.
– Não posso continuar.
Carla não entendeu de imediato.
– Nosso casamento. Acabou.
Carla sentiu o chão oscilar sob seus pés pela primeira vez a bordo do Moira.
Ao olhar para o reflexo de sol que incidia sobre a barba crescida do marido, talvez nem pudesse chamá-lo mais assim, Carla sentiu a lâmina afiada da tesoura de Átropos cortando o fio de seu amor antes sereno. O movimento do mar inesperadamente lhe pareceu insuportável. O equilíbrio que nunca lhe faltara desde que conhecera Michel não estava mais a seu alcance.