Luciana Villas-Boas
A Conversa Com (A)Gente desta semana é um alento em meio ao “filme de terror” que se tornou o Brasil, nas palavras de nosso ilustre entrevistado, o escritor, educador, ex-ministro de Estado e senador da República, Cristovam Buarque. Ele fala de política, mas também de sua obra literária, atuais (re)leituras e do novo livro, ainda inédito, VISLUMBRES DO MUNDO, composto por relatos de conversas e encontros com grandes personagens da história pelo mundo afora. Sobre o Brasil de hoje, é categórico: “Sinto tristeza por minha geração, apesar de alguns acertos, ter feito um Brasil sem coesão nem rumo. (…) Nosso erro foi não perceber que a educação é o vetor do progresso”. Sobre a relação com o tempo, ele é de uma precisão absoluta: “A agenda aprisiona mais que a jaula.”
VB&M: Nosso assunto é a literatura em sua vida. Para começar: pode-se dizer que a partir de novembro de 2018 a literatura ganhou um escritor em tempo integral? A política foi deixada definitivamente para trás?
CB: Em tempo mais integral, sim. Mas durante todo o tempo em que tive cargos políticos escrevi bastante. Nos períodos com mandato, devo ter publicado uns 15 livros. Ganhei um Jabuti com um livro infanto-juvenil chamado A AVENTURA DA UNIVERSIDADE (Paz & Terra) na época em que atuava como governador do Distrito Federal.
A palavra definitivamente é muito definitiva, por isso arriscada. Posso dizer que não me vejo disputando cargos eleitorais no futuro. A quarentena me fez descobrir que a agenda aprisiona mais que jaula. Não me vejo querendo ficar preso às agendas políticas. Mas vou continuar participando do processo político com opiniões.
VB&M: Em que medida a política dá forma e afeta a sua produção literária?
CB: Acho que a política atrapalhou. Tenho a impressão de que se eu tivesse me dedicado mais às atividades acadêmica e literária teria dado contribuição maior tanto à literatura quanto ao pensamento econômico e social.
VB&M: Seu novo livro, VISLUMBRES DO MUNDO, é uma composição de histórias muito diversas, passadas em mais de 50 países ao longo de 85 capítulos, numa espécie de contos de não-ficção interessantíssimos. Há algum aprendizado comum de todas as histórias que possa ser sintetizado aqui?
CB: O livro é composto por relatos do que aprendi em viagens. Não é livro de aventuras, nem de turismo. Descrevo o que aprendi e as reflexões que conversas com pessoas de culturas diferentes me provocaram. Aprendi a virtude da modéstia ao ver que culturas que tratamos como menos valorizadas que as nossas também nos tratam como inferiores, porque o que nos parece inferior neles lhes parece superior à maneira como agimos e pensamos. Percebi isso ao conversar com um motorista de táxi muçulmano no Senegal. Mostro também qualidades que descobri em personagens que encontrei mundo afora, como o grande escritor Arthur C. Clarke, no Srilanka; o financista George Soros, em Budapeste; o astronômo Carl Sagan, no México; ou o economista banqueiro dos pobres Muhammad Yunus, em Bangladesh.
Essas reflexões me proporcionaram tantos conceitos novos que fiz um dicionário com quase 300 termos formulados ao longo dessas viagens. Não sei se devemos publicá-lo junto ou separado dos relatos.
VB&M: Seria possível identificar os encontros mais impactantes em sua vida? Qual o líder político mais memorável com quem o senhor conversou?
CB: De VISLUMBRES DO MUNDO, considero importantes as reflexões a partir de encontros com Mario Vargas Llosa, Carl Sagan, Arthur C. Clarke, Gabriel García Márquez, Yoko Ono, Bianca Jagger e Edgar Morin.
Entre os políticos, creio que foram marcantes as reflexões provocadas por Fidel Castro e, por incrível que pareça, também por George Soros. Descrevo minha tentativa de fazer e gravar um encontro com eles. Chamei o Roberto D’Avila para ser o âncora. Descrevo porque não deu certo. Outros encontros memoráveis foram com Boutros Gali, Kofi Annan, Julius Nyerere, Federico Mayor.
VB&M: O senhor já navegou por praticamente todos os gêneros literários, do infantil aos contos, romance, reportagens, ensaios. Que tipo de escrita lhe dá mais prazer, corre mais fácil?
CB: Depende do dia. Mas hoje estou me sentindo bem com um novo gênero: reescrever o que escrevi antes. Como minha tese de concurso para Professor Titular, “Minhas dúvidas sobre a Economia”; ou minha análise dos debates no parlamento para a aprovação da Lei Áurea, “Dez dias em maio de 1888”. Gosto também de traduzir poesia.
VB&M: E que tipo de leitura mais o atrai?
CB: Sou volúvel em leitura. Mas nos últimos anos tenho me dedicado muito aos problemas da contemporaneidade, tanto ambientais, quanto políticos e existenciais. O futuro da humanidade é um tema recorrente nos 85 relatos de VISLUMBRES DO MUNDO. Tanto quanto educação.
VB&M: Naquele mágico tempo pré-pandemia, por onde o senhor caminhava mais à vontade – nos corredores do Congresso, nas feiras literárias, ou simplesmente no campus da universidade?
CB: Desde que eu saí do Senado, só voltei lá uma vez para uma fala na comissão de educação sobre um projeto de lei que deixei. Antes da pandemia eu caminhava pelos corredores dos aeroportos e entre os meus livros, agora só entre os livros.
VB&M: Em sua atuação política, o senhor deixou um extenso legado em prol da educação e do livro. O que o Brasil de hoje está fazendo dessa obra e como o senhor se sente? Dá vontade de chorar?
CB: Filme de terror não dá vontade de chorar. Dá horror, medo. A realidade social e politica parece um filme de terror em que 200 milhões de pessoas e seus descendentes que ainda não nasceram são arrastados por líderes de direita ou de esquerda falando coisas diferentes mas puxando para a mesma direção. Sinto tristeza por minha geração, apesar de alguns acertos, ter feito um Brasil sem coesão nem rumo. No momento em que ingressamos no nosso terceiro centenário. Essa situação fortalece minha convicção de que nosso erro foi não perceber que a educação é o vetor do progresso. Sinto um “frustralívio”, frustração por não ter conseguido mudar isso, e alívio por não estar mais em cargos de direção. Para um intelectual público, há tempo de ação e tempo de reflexão. Este é de reflexão.
VB&M: Se o senhor estivesse no Senado hoje, como se movimentaria com relação ao impeachment de Jair Bolsonaro?
CB: Não entendo como uma pessoa que defendeu o impeachment do Collor ou da Dilma não defende o impeachment do Bolsonaro. Ele dá muito mais razões para impeachment do que os outros dois. Collor e Dilma erraram, Bolsonaro está destruindo o Brasil. Eu defenderia o impeachment. Mas acho que vai ser difícil. Se estivesse lá, estaria tentando convencer os candidatos à Presidência a se unir em torno de um só nome desde o primeiro turno e que o escolhido assumisse o compromisso de não se candidatar à reeleição. Desse modo, os atuais candidatos se candidatariam em 2026 com o Brasil livre das ameaças que o presidente atual representa. Fizemos isso em 1985. Pior do que não ter impeachment agora é deixar o Bolsonaro ser reeleito. A divisão dos democratas de direita e de esquerda poderá levar a isso.