A EPOPEIA DA PANDEMIA

Mais um conto originalmente publicado em podcast do programa “Vai ficar tudo bem”, da Storytel, pode ser apreciado pela primeira vez como texto escrito na coluna Narrativas do blog VB&M: “A Quarenteníada”, história épica da pandemia contada em verso por Simone Campos. A autora de A FEIA NOITE (7 Letras), A VEZ DE MORRER (Companhia das Letras) e NADA VAI ACONTECER COM VOCÊ (a sair pela Companhia em 2021) condensa em estrofes divertidas o drama de um homem em busca de papel higiênico durante o frenesi do início da Covid-19.

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A Quarenteníada

Simone Campos

 

Canta, ó Musa, o varão que neurastênico
no Uno partiu, de Flamengo a São Conrado,
rumo ao mercado, em esforço malfadado:
já se havia acabado o papel higiênico.

Se folha dupla ou cor-de-rosa reciclado,
áspero qual lixa, ou sedoso extra-liso,
João o levaria, pois limpar era preciso.
Apenas par’o Nada não estava preparado.

Metros de vazio é o que existe na seção
de limpeza geral e artigos pra banheiro,
vil cortesia de quem chegou primeiro.
Árido deserto sem perdão para João,
qu’enrolou no rosto a camisa do Mengão
ao se proteger do tal vírus traiçoeiro.
Alvas prateleiras ostentam sua nudez,
feito a Era Sarney em começo de mês.
Mais parece que chegou depois da grande
promoção, do surto de verminose,
ou de uma onda de saque e pilhagem;
mas é somente o covid-19.
Sacanagem!

Eis que João depara o vizinho, Atanásio,
com camisa de outro time, e oportunista,
raptando o último pacote imaculado!
Eles quase se saem num pancrácio,
que João, doente flamenguista,
inda vem no Manto mascarado.

Sobem à cabeça as partidas adiadas
mas Atanásio dribla e foge para os caixas.
É preciso manter a distância segura!
Mas por pouco João não se segura.
Em seu cinéreo carro ele logo reingressa,
e desconta a raiva dirigindo a toda pressa.

Ao retornar ao lar, João, macambúzio,
surpreende – quem mais? – o Atanásio
à porta da quitanda, mui contente,
com outro fardo folha dupla reluzente.
O verme amealha o artigo racionado…!
“Fazes estoque!”, João brada indignado.
“Não, ó meu chegado. Este é pra ti,
E deixa de ser recalcado.”