À ESPERA EM MONTPARNASSE

Alexandre Staut, autor de PARIS-BREST (Nacional, 2016) e BANQUETE INDÍGENA, primorosa reunião de histórias gastronômicas brasileiras a sair em áudio e pelos formatos tradicionais de papel e digital, oferece à coluna Narrativas & Depoimentos uma adaptação de texto homônimo publicado na antologia “Olhar Paris” (Nós, 2016), organizada por Leonardo Tonus e composta por registros da geografia emocional parisiense. No conto de Staut, que além de escritor e editor da Folhas de Relva, é artista plástico e chef, um viajante brasileiro observa o movimento na estação Montparnasse Bienvenue enquanto tenta se proteger do inverno rigoroso da capital francesa.

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Uma voz feminina pausada anunciou a chegada de um trem. O som se espalhou pelos alto falantes da estação. “Bem-vindos a Montparnasse Bienvenue!” O trambolho gemeu ao encostar na plataforma e dele saiu uma figura trajando um sobretudo bege até os pés. Olhava para o chão. Depois, veio uma garota arrastando uma mala. Também olhava para o chão. Atrás dela, dois cachorros rebolavam. Uma mãe puxava um carrinho de bebê, do qual não se via a face — a criança estava protegida por um plástico fechado a zíper bem na frente do rosto. Em seguida, viu uma multidão descer do trem.

Manoel se sentava em um banco em frente à plataforma 7. Tinha duas malas ao seu lado. De seu posto, viu os últimos três ou quatro a deixarem os vagões. Dois homens anunciaram ao telefone que haviam chegado à capital. “À toute à l’heure!”, ambos disseram quase ao mesmo tempo aos seus interlocutores. Os passageiros ganhavam o átrio da estação com a velocidade do vento gelado que levantava fios de cabelos e varria sacos plásticos e folhas de jornais abandonados.

Manoel observou casais se despedirem, outros visivelmente se reencontrando, um homem de meia idade esperando o possível filho. Estavam todos nas mesas de um café, ao lado da bancada em que Manoel descansava as pernas.

Ele conferiu as horas em um grande relógio pendurado no meio da praça central da estação centenária. O relógio também devia ser centenário em sua lentidão. Ainda restavam duas horas para tomar o comboio rumo à Bretagne.

Estava no ar há mais de quinze horas. Descera do avião e partira diretamente à estação de trem. Sentia o cansaço e o frio em cada músculo do corpo. Era inverno, fim de dezembro e o frio embaralhava seus pensamentos e também despenteava seus cabelos ralos.

Era sexta-feira, e a passagem comprada nos meses anteriores anunciava que o comboio que faria o trecho Paris-Brest estacionaria na plataforma 7, às 22 horas. Certificou-se de que as malas estavam ao seu lado, procurou a revista de bordo enrolada no casaco, tudo para desviar a atenção do vento gelado. Imaginou como deviam ser as cidades que o trem atravessaria, Rennes, Morlaix. Como o mar se comportaria no inverno, no extremo oeste do país desconhecido? Seria mais pastoso do que o da costa brasileira? O vento levantava ondas para cima de faróis, como nas fotografias de cartões postais?

Antes de chegar a Rennes, de passar por dutos e pontes, e observar, do alto, cidades que pareciam presépios montados para as festas de fim de ano, antes de chegar à gîte alugada por amigos para o Natal, uma comemoração com amigos bretões, precisava esperar longas horas. Era bom não desviar a atenção da voz feminina, os nomes de cidades jamais ouvidos antes, e que se misturavam a um burburinho de vozes, das quais vez ou outra voltava a ouvir: “à toute à l’heure!”.

O inverno europeu inteiro parecia se concentrar na estação, naquela noite. Entrou numa livraria, em busca de abrigo. Lamentou não ler em francês. Entendia apenas uma palavra ou outra. Soletrou títulos de livros e ouviu a voz feminina tomar conta do ambiente: “Nice, Le Mans, Tours, Caen, Avranches”. Bebeu um café, que lhe esquentou o peito, e então voltou a arrastar as malas. Viu uma vitrine de doces. Poderia comer todas as esculturas de açúcar dispostas ali, mas talvez aquilo tudo fosse só enfeite, mostruário. Ele precisava mesmo de comida de verdade, comida que enche a barriga.

Caminhou para a bancada de madeira onde se sentira protegido pouco antes. Já sentado, sentiu mais uma lufada de ar gelado tomar conta da estação. Um trem que chegava da Sibéria, da Islândia? Junto do sopro, desceu um homem que caminhou em sua direção, sentando-se ao seu lado. Falou ao telefone, abriu uma pasta de trabalho de couro envernizado, mexeu em uma papelada, desamarrou os sapatos, olhou para o nada, e os amarrou de novo. O viajante estava bem agasalhado, tinha luvas reluzentes, talvez de pelica. Manoel espiou com o rabo dos olhos e sentiu o gosto do café entre a língua e o céu da boca.

“Bem-vindos a Montparnasse Bienvenue!”. Ele teve a impressão de que o anúncio fizera com que o vizinho desse um pulo do banco e saísse sôfrego, ocultando-se no meio à multidão em direção à saída da gare.

Um cachecol. O estranho esquecera um cachecol xadrez, vermelho, azul, preto e cinza um tanto puído. O coração de Manoel bateu quente. Ele agarrou o tecido com os dedos enrijecidos. Olhou para os lados. Torceu para o dono da peça não voltar à procura da peça. Não teve dúvidas. Enrolou-a no pescoço, cerimonioso, sentindo a lã perpassar a pele.

Na mesma hora, sentiu um arrepio, um rubor tomou conta de si, da sola dos pés aos fios de cabelo. Era como se o acessório lhe desse acesso à alma do estranho. Manoel sentiu-se dono da estação ferroviária, até mesmo da voz feminina e da vitrine de doces. O ato de rapiná-lo fez até mesmo o tempo passar mais rápido.

*

Não tardou e a voz misteriosa anunciou: “Paris-Brest, 22 horas, plataforma 7”. Manoel cobriu as orelhas com a nova vestimenta e arrastou as malas até o vagão 8, segunda classe. Meteu a bagagem no maleiro e, meio zonzo, encontrou sua poltrona, que dava para o corredor. Olhou para o vizinho de viagem, que lhe lançou um olhar de reprovação. O desconhecido apontou para o acessório que esquentava Manoel e fez um gesto com a mão mostrando o próprio peito, como se ele fosse o dono da peça ou como se a pedisse emprestada. Manoel analisou o sujeito. Definitivamente não era o viajante que se sentara ao seu lado, na praça central da gare. Tirou o cachecol do pescoço e o passou para o vizinho, que caiu em um sono profundo assim que o vestiu. Manoel seguiu viagem. Observou paisagens em alta velocidade, o mar, campos e cidadezinhas. De vez em quando olhava para o cachecol, sem saber se voltaria a tocá-lo antes de chegar ao seu destino.