VIRGINIA E A NOVA ERA, primeiro volume da trilogia OS AMANTES DE BLOOMSBURY, de Stephanie H. Martin, é o grande lançamento de junho da editora alemã Aufbau. Fruto de pesquisa vasta e profunda sobre a obra, a vida e a época de Virginia Woolf, o romance de Martin recria com impressionante nitidez o cotidiano dos autodenominados Bloomsberries, o coletivo londrino de artistas, filósofos e escritores que compuseram um dos mais prolíficos e relevantes grupos de intelectuais do século passado, com o crédito de terem realizado uma verdadeira reinvenção do pensamento e da criação modernas. Em entrevista a seus editores na Aufbau, traduzida por Yasmin Ribeiro para a coluna Conversa Com (A) Gente, que abre a semana do blog VB&M, Stephanie Martin conta como o desafio da ficção permitiu-lhe apreender a humanidade de Virginia para além do ícone literário e como foi possível retratar com grande fidelidade os imensos traumas de infância sofridos pela escritora numa era de intenso puritanismo vitoriano; e comenta suas relações com a irmã artista plástica Vanessa Bell e toda a turma de mentes brilhantes como o economista Maynard Keynes, o pintor Duncan Grant e o crítico e biógrafo Lytton Strachey.
AUFBAU: Virginia Woolf foi uma mulher que lutou durante toda a vida para encontrar tanto felicidade quanto uma voz literária. O que a levou a escrever sobre ela? E até que ponto foi possível descobrir novas facetas de Virginia durante o processo de escrita?
SM: Biografias de escritoras sempre me atraíram. Mas, na verdade, a biografia de Virginia Woolf foi uma das poucas que sempre me intimidaram – assim como sua obra ficcional. Eu a considerava uma verdadeira mente intelectual, brilhante e difícil, icônica demais para me aproximar dela num nível humano. Só consegui o acesso a ela por meio de sua irmã, Vanessa Bell, cuja incondicional capacidade de amar assim como sua obra artística me fascinavam tanto quanto Woolf.
Fiquei muito surpresa quando, durante minha pesquisa, pude apreender Virginia Woolf como uma mulher profundamente gentil, bem humorada e imensamente ávida pela vida, que resistiu a inúmeras e recorrentes crises psicológicas de uma maneira impressionante. Tenho todo o respeito por essa mulher, que explorou as profundezas de sua mente com coragem incomparável e, a partir daí, criou algumas das melhores obras literárias do mundo.
AUFBAU: Como você abordou os “Bloomsberries”? A que ponto a trama do romance é autêntica e quão próximos são os seus personagens das pessoas que realmente viveram naquela época?
SM: Há pouquíssimas turmas de amigos com tanto material biográfico e autobiográfico como o Grupo de Bloomsbury. Afinal, quase todos eram figuras literárias, escreveram muitas cartas e diários, tornaram-se famosos como Lytton Strachey, Maynard Keynes, ou Duncan Grant, ou, até mesmo, como foi o caso de Virginia, viraram ícones.
Tomei o partido da fidelidade histórico-biográfica e queria fazer a estas pessoas o máximo de justiça possível. Mas a abundância de material (auto)biográfico é tanto maldição como bênção. A tarefa é exatamente extrair da massa histórica bruta as cenas e eventos que podem ser trabalhados numa narrativa envolvente, a fim de criar suspense sem distorcer os fatos comprovados.
Bloomsbury facilitou isso para mim, porque a vida dessas pessoas já era tão repleta de conflito, drama e emoção que a própria história real delas parecia um romance. Mas eles não podiam fazer meu trabalho como escritora, que consistia em transformar a verdade em ficção, para tornar minha aquela história. Então, certamente, todas essas personalidades como estão no romance foram filtradas pela minha mente, seus pensamentos e sentimentos são, em última instância, meus. Mas posso assegurar que tudo que acontece no romance corresponde à verdade, nenhum personagem foi inventado, e só em ocasiões muito raras, por motivos de economia narrativa, interferi de forma mínima no curso temporal historicamente documentado.
AUFBAU: Até que ponto Virginia e sua irmã Vanessa foram filhas de sua época? Qual papel desempenharam as circunstâncias históricas nos conflitos psicológicos de Virginia?
SM: As duas irmãs Stephen, Virginia e Vanessa, tiveram que resistir a severos golpes do destino na juventude delas: a morte da mãe quando Virginia e Vanessa tinham somente 13 e 15 anos. Depois, a morte da amada irmã mais velha, Stella, e as importunações do meio irmão que tinham. O quão longe foram essas “importunações” – ou, para ser mais direta, abusos – no caso de Virginia ainda é discutido. Mas há um acordo sobre o fato de que causaram nela uma aversão à sexualidade masculina e a estruturas patriarcais, e, junto às experiências de perdas precoces, desencadearam doenças mentais que eventualmente levaram-na ao suicídio. Além disso, em seu lar vitoriano, era certo que o ensino, especialmente a educação universitária, era reservada apenas aos rapazes.
De acordo com os vitorianos, as mulheres desempenhavam o papel de “anjo do lar” – a mãe e esposa multitalentosa, amorosa e constantemente carinhosa que devia assegurar o bem estar dos integrantes masculinos da família. Se rebelar contra esses fatos era equivalente à insanidade. Mulheres que se levantavam contra sua gente, como as sufragistas, eram acusadas de histeria. A histeria era considerada uma doença mental. Não é surpreendente que Virginia Woolf, cuja mente brilhante foi forçada a florescer em meio a esse ambiente tóxico, haja lutado tanto consigo mesma. Esse é o conflito central que rege a trama e que percorre toda a vida e obra de Virginia.
AUFBAU: Com o Grupo de Bloomsbury, você descreve um elenco de personagens deslumbrantes que viveram num mundo em plena mudança de paradigma. Qual foi o desafio ao escrever sobre essas pessoas, e o que foi interessante sobre isso?
SM: Os Bloomsberries não apenas “viveram” em um tempo de mudança – eles desempenharam um papel crucial em moldar essa mudança por meio de suas obras. Virginia Woolf e sua irmã Vanessa se reuniam com a elite intelectual britânica da época. Homens, é claro, quase sempre homossexuais, um mais brilhante que o outro. Eles eram ao mesmo tempo intelectuais e revolucionários, inspiravam-se nas ideias filosóficas da Grécia antiga, da literatura clássica, formados pelo espírito conservador de sua criação vitoriana, simultaneamente se rebelavam contra o status quo. Questionavam tudo que a sociedade pensava ser imutável, desde o imperialismo ao tabu da sexualidade.
Esse foi o desafio. Como evocar o espírito dessas reuniões de Bloomsbury, tornar tangível o brilho dessas pessoas tão diferentes com meus meios, em comparação, tão modestos? Eu frequentemente me questionava e me desesperava. Meus diálogos precisavam de uma certa perspicácia linguística, alusões literárias, acuidade analítica, vivacidade e às vezes pathos – que tarefa! Mas foi justamente isso que tornou o desafio tão atraente. Foi uma questão de usar todos os temperos disponíveis para mim e preparar uma refeição deliciosa e harmoniosa com eles.
AUFBAU: Sua trilogia se chama OS AMANTES DE BLOOMSBURY, e o amor em todas as suas facetas representa um papel significativo na vida dos personagens. De que maneira o amor é um instrumento de liberdade na narrativa?
SM: “Bloomsbury” é considerado sinônimo de revolução sexual. Muitos dos Bloomsberries eram homossexuais ou ao menos se envolveram com pessoas do mesmo sexo por um tempo. Os homens mantinham relações sexuais uns com os outros, Virginia Woolf confessou que tinha “tendências sáficas”, Vanessa Bell teve um filho com o pintor homossexual Duncan Grant, etc.
A sexualidade era abertamente discutida no círculo de Bloomsbury, quase sempre em termos drásticos – e era nisso que consistia a revolução. Na era vitoriana, o tema da sexualidade devia ser mantido oculto, e a fisicalidade era tabu. De tal forma que não era nem permitido dizer a palavra “privada”. A homossexualidade era punida com a pena de prisão. Então, se Lytton Strachey foi para a cama com Maynard Keynes, eles cometeram um crime.
No começo de sua amizade com as irmãs Stephen, Virginia e Vanessa, a “decência” ainda era preservada. Eles mantinham uma relação muito respeitosa e conversavam sobre filosofia e literatura. No primeiro volume da saga, vemos o quão repentinamente isso muda. Em alguns aspectos, os Bloomsberries eram mais progressistas do que somos hoje. Mais de 100 anos se passaram, e as pessoas que se desviam da norma socialmente propagada referente a sua sexualidade ainda precisam lutar por seu reconhecimento. Esses paralelos com nossa sociedade atual me atraíram enquanto eu escrevia sobre Bloomsbury.