ACHADOS E PERDIDOS

O escritor e jornalista Maurício Torres Assumpção, autor de CAFEÍNA, maravilhoso romance histórico publicado pelaLeya  em 2020, encerra a semana do blog com um conto inédito na coluna Narrativas, inspirado em fotografia de Selmy Yassuda. Em “Achados e Perdidos”, o narrador revive suas memórias com um amigo de infância e reflete sobre o orgulho, sempre derrubado pelo destino.
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Achados e Perdidos
Maurício Torres Assumpção

Lembro-me como se fosse hoje. Você, sem camisa, exibindo o seu relógio novo, um Casio digital, dando corda à minha inveja, disfarçada com um falso desdém. Ali, medindo pouco mais de um metro, você já sabia o que queria. Seria engenheiro, como o seu pai. Construiria pontes, túneis e viadutos. Um projeto de vida concreto, de longo prazo e longo alcance, que despertava a minha curiosidade, nutrindo um sentimento de admiração que eu sempre teria por você. Quanto a mim, você preferia não me iludir: eu jamais seria astronauta. Mas poderia ser caminhoneiro, como você sugeria. Seria mais fácil.

Das suas primeiras obras, lembro dos castelos de areia na praia, construídos com pás e baldes de plástico, sob o tórrido sol dos trópicos. Sentados na areia, fazíamos o acabamento do castelo, furando-lhe janelas com a ponta do dedo ou nivelando a sua muralha com o palito de sorvete. Por uma questão de segurança, construíamos um fosso que deveria proteger aquela fortificação dos inimigos e da maré, que, dissimuladamente, aproximava-se da nossa obra-prima. No final, coroávamos o nosso trabalho com um detalhe essencial: a bandeira no topo da torre, vermelha e branca como a embalagem do Chica-Bon.

Mais tarde, quando a maré dos tempos já havia demolido os nossos castelos, nós nos associamos na realização de uma nova empreitada: a construção de um robô para a feira de ciências do ginásio. Como sempre, o projeto era seu. Convidado, eu aceitava com entusiasmo o papel de seu auxiliar, mais esforçado do que eficiente, sempre intrigado pela quantidade de coisas que você sabia a respeito de tudo o que eu ignorava. A pilha tem polos? Positivo e negativo! E o rádio? O do meu avô tem válvulas. O do meu pai, transístores! Sobre a televisão, eu preferia nem perguntar, mas disfarçava a minha ignorância fazendo piada: lá em casa já temos TV a cores. Como? Colocando o papel-celofane em frente à tela, a imagem fica toda azul! Você não ria, o que só confirmava a minha nulidade tecnológica e humorística.

Seguindo o projeto que você elaborara para o robô, coletamos o material na rua, pedindo caixotes no supermercado, uma caixa na sapataria, quatro rolimãs na oficina do seu Geraldo. Com pilhas, fios e pequenas lâmpadas, preparamos o painel de controle que, instalado na barriga do robô, nos manteria atentos à sua inescrutável atividade mental. Da caixa de sapatos, eu fiz a cabeça do humanoide, com olhos de chapinha e cabelos de estopa, detalhes puramente estéticos, delegados a mim por serem irrelevantes para o funcionamento daquela máquina. Terminada a operação, erguemos juntos o robô, pondo-o de pé, ainda que ele oscilasse suavemente por conta de tachinhas e pregos mal colocados.

— Pronto? — você perguntou, esperando pelo meu olhar, antes de acionar o botão que daria vida à nossa criatura.

Pronto! As luzes se acenderam e o modelo XK001 começou a funcionar, processando dados, fazendo piscar as luzes da sua barriga no ritmo da guirlanda de Natal.

Como na construção do castelo de areia, você, uma vez mais, havia imaginado, projetado, realizado. Com essa visão, você passou sem arranhões pelo segundo grau, gabaritou o vestibular, entrou na faculdade de engenharia. E ali, empregando a mesma estratégia, como se a vida fosse uma linha reta entre o sujeito e o objeto, você imaginou, projetou e construiu uma família, namorando a colega mais bonita da sala, aquela com que todos nós queríamos nos casar. Assim, diploma, casamento e lua de mel, antecederam a consagração final: a empreiteira, em sociedade com o pai, construindo pontes, túneis e viadutos pelo Brasil a dentro. Imaginação, projeto, realização. A lógica da vida fazendo sentido.

Com o casamento vieram as filhas. Uma tricolor, como você; outra flamenguista, como a mãe. Foi a rubro-negra, por acaso, que mais se interessou pelo que você fazia. Da sua genética, herdou o raciocínio lógico, pragmático, e, por tantas outras influências do cotidiano, interessou-se por química. Agora, faz faculdade, quer ser engenheira química. Quanto à tricolor, se, na arquibancada do estádio, foi sua companheira fiel e constante, na vida profissional não poderia estar mais distante de você. Estuda teatro, lendo, ensaiando e interpretando as obras de outro tricolor, talvez o mais famoso deles.

— E as meninas? — eu lhe perguntava, quando, aos sábados, nos encontrávamos na adega do Miranda.

— Meninas? Mulheres feitas! Só falta terminarem a faculdade, e a minha obra estará completa.

Enquanto você imaginava, projetava e realizava, seguro das certezas da vida como se de equações matemáticas se tratasse, lá longe, do outro lado do mundo, numa cidade da qual você nunca ouvira falar, um homem, ou, quem sabe, uma mulher, caiu doente, sendo internado num hospital público. Doença misteriosa que, surpreendendo os médicos, também os contaminou. Como num efeito dominó, o vírus da doença passou de um médico para um paciente, e do paciente para um parente. O parente espirrou no ônibus, contaminando a passageira ao lado. Distraída, a mulher chegou em casa, abraçou e beijou os filhos, que, por sua vez, beijaram a vizinha que partia em viagem para a Europa. No avião, a vizinha tossiu, contaminando um professor de história, que daria aulas na Universidade de Milão. Foi lá, na Piazza Duomo, que o Julião, um palmeirense simpático, recebeu do professor italiano uma caneta e, com ela, o vírus que logo passaria ao irmão, que o visitava na Itália. Já no Brasil, o vírus circulou pelo Sul e por São Paulo antes de chegar ao Rio de Janeiro, onde fez contato com muita gente que gosta ou não de futebol, até entrar pela sua boca tricolor, quando você palitava os dentes na adega do Miranda.

Imaginação, projeto, realização, caos.

Hoje o telefone tocou. Era a sua mulher. Queria desabafar, queria que eu estivesse a par da sua situação. Internado, entubado, em estado grave, sem reação. Os médicos falam em grupo de risco. Fazem o que podem. Sua mulher não entende. É cardíaco? Ninguém sabia.

Sem poder vê-lo, estando eu mesmo confinado em casa, lembrei-me dos nossos castelos de areia, da praia que frequentávamos, de um píer, longo e retilíneo, que avançava pelo mar adentro. Aquela obra lógica e precisa que, em sua húbris humana, desafiava a perene e revolta imensidão do mar.