ÁFRICA LEVA O NOBEL, O BOOKER E O GONCOURT

NARRATIVAS & DEPOIMENTOS traduz o artigo “From the Booker to the Nobel: why 2021 is a great year for African writing” (Do Booker ao Nobel: por que 2021 é um grande ano para a escrita africana”), da jornalista literária britânica Alex Clark, publicado no Guardian no último domingo. O texto fala do sucesso de autores africanos este ano nas grandes premiações internacionais, consequência da força que as vozes literárias da África e da diáspora africana vem ganhando nos últimos anos. Com o romance A MAIS SECRETA MEMÓRIA DOS HOMENS, a sair no Brasil pela Fósforo, o jovem senegalês Mohamed Mbougar tornou-se o primeiro escritor da África subsaariana a vencer o Goncourt. Em entrevista a Clark, Sarr torce para que isso não seja uma exceção à regra: “O prêmio Goncourt é um tremendo incentivo para mim na construção de minha obra, mas também para os escritores africanos, especialmente os jovens. O futuro é deles […] Acima de tudo, eu não quero ser uma exceção. Eu não devo ser. Eu não sou”.

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Do Booker ao Nobel: por que 2021 é um grande ano para a literatura africana

Os principais prêmios deste ano foram para autores de África e de sua diáspora. Damon Galgut, Mohamed Mbougar Sarr, Abdulrazak Gurnah e outros explicam o que vencê-los significa para eles.

Alex Clark

“Este foi um grande ano para a literatura africana”, anunciou Damon Galgut ao aceitar o prêmio Booker no início do mês por seu multifacetado romance, “The Promise”, que conta a história de uma família africâner em meio ao cataclismo político e social que sucedeu ao fim do Apartheid. “Gostaria de aceitar esse prêmio em nome de todas as histórias contadas e não contadas, dos escritores conhecidos e desconhecidos do fascinante continente de onde venho.”

Não foi um exagero. A vitória de Galgut no Booker chega no fim de um ano em que muitos dos principais prêmios literários foram vencidos por escritores de origens e heranças de países africanos. Em junho, o segundo romance de David Diop, “At Night All Blood Is Black”, traduzido do francês (para o inglês) por Anna Moschovakis, venceu o International Booker Prize: sua história visceral foi inspirada pela experiência dos atiradores senegaleses na Primeira Guerra Mundial. Nas últimas semanas, o Senegal voltou aos holofotes com a vitória de Mohamed Mbougar Sarr no Prix Goncourt com seu último romance, LA PLUS SECRÈTE MÉMOIRE DES HOMMES, tornando-se o primeiro autor da África subsaariana a vencer o prêmio francês.

No mês passado, o Nobel de literatura foi concedido a Abdulrazak Gurnah, romancista nascido em Zanzibar que veio para a Grã-Bretanha em 1968, após uma revolução em seu país, e que explorou temas como distanciamento e deslocamento ao longo de 10 romances. A obra de Gurnah, que inclui os títulos “Paradise”, “By the Sea” e, mais recentemente, “Afterlives”, vem ganhando respeito da crítica pela sutileza e potência com que examina o que ele chama de “caos trágico”, que afetou a tantos na era pós-colonial. Agora é provável que sua obra alcance novos leitores.

Com Galgut, outra romancista sul-africana, Karen Jennings, também esteve na lista longa do Booker deste ano com “An Island”, sobre o encontro de um faroleiro com um refugiado. Como aconteceu com Gurnah, o prêmio ampliará radicalmente sua base de leitores – o romance teve uma tiragem de apenas 500 exemplares até aparecer na lista do Booker, quando milhares de exemplares foram encomendados. Enquanto isso, a escritora somaliana-britânica Nadifa Mohamed entrou na lista curta com “The Fortune Men”, sobre um marinheiro somaliano acusado injustamente de ter cometido um assassinato no País de Gales, baseado em erro judicial real ocorrido em Tiger Bay, nas docas de Cardiff.

Ler as runas desses triunfos é uma tarefa que, entretanto, requer cuidado e começa com ressalvas importantes. Esses são prêmios europeus, com tudo que isso implica: suas histórias estão entrelaçadas com a valorização do romance como uma criação europeia, adotada e curada por séculos a fio na condição, pode-se argumentar, de forma de arte burguesa; se seus autoproclamados guardiões estão agora preocupados em reconhecer seu potencial mais amplo e expandir seus parâmetros, quem dá forma a esse processo e decide quem tem a permissão de falar? A quais leitores eles se dirigem? E, ao falar tanto de “países africanos” como da “diáspora africana”, quais identidades são privilegiadas e quais, marginalizadas?

Prêmios literários são a ponta visível de um iceberg formado pelas carreiras de escritores – em geral longas, diligentes e não devidamente alardeadas –, pelos esforços de editores e livreiros e pelas criativas ecologias dos países, idiomas e regiões. Como Ellah Wakatama, editora externa da Canongate e presidente do prêmio AKO Caine para literatura africana, observa diante das vitórias deste ano: “Não é um momento que aconteceu de repente. É um momento que aconteceu por causa de muito trabalho para abrir espaços.” E esse trabalho não será terminado, ela disse, “até chegarmos ao ponto em que os escritores sejam publicados em volume suficiente de maneira que concorrer ao Booker seja parte da nossa cultura, não algo visto como estranho ou singular.”

Ponto final de um processo intrincado, prêmios são indicadores de algo – a constituição dos painéis que os outorgam, mudança de gostos, a resposta a diferentes tipos de obra –, mas esse algo é complexo e nem sempre imediatamente óbvio. Nas conversas com os escritores em pauta, dois elementos foram recorrentes: que qualquer discussão acerca de um “fenômeno” deve englobar a diversidade das culturas literárias de herança africana e que isso deve ser visto como um começo de conversa em vez de seu ápice. Nas palavras de Galgut: “O que espero é que conversas como esta venham a guiar o pensamento das pessoas de uma maneira particular, para que este se cristalize numa atitude de observar e levar em conta.”

Pergunto a Gurnah se ele percebe um mundo mais aberto a ouvir as histórias às quais foi relutante no passado. “Poderia ser,” ele responde. “Eu espero que sim, é claro. Mas penso que esse talvez seja o resultado de muitos processos importantes que aconteceram recentemente. Talvez exista uma sensibilidade mais aguda para o que está acontecendo em outros lugares; não somente ao que é noticiado nos jornais. Acho que é uma espécie de contra-narrativa que também está se desenvolvendo, menos dependência na história estabelecida ou, digamos, na história oficial.” Ele aponta as respostas aos eventos no Iraque, na Síria e na Líbia – países que sofreram interferência significativa dos EUA e da Grã-Bretanha: “Todas as respostas exibiram a feiura daquelas políticas e as crueldades que são infligidas a governos mais fracos. Penso também no movimento Black Lives Matter, e tudo que está ocorrendo na Grã-Bretanha nos últimos meses, guerras culturais, estátuas e por aí vai … todos esses processos geram provavelmente um tipo de conscientização maior, mas duvido muito que sejam eles que conduzam a prêmios literários. Gostaria de pensar que a razão de esses prêmios serem atribuídos tem a ver principalmente com a obra que esses escritores produziram.”

Gurnah é incisivo – e também secamente bem-humorado – sobre as guerras culturais às quais se refere, descrevendo-as como uma “conversa inútil entre pessoas que estão, ao que me parece, resistindo insensatamente a coisas que vão ultrapassá-los de qualquer maneira” (ele se esforça para esclarecer que a ultrapassagem é puramente intelectual) e mantem que isso não ocupa demais o seu pensamento. “Não tenho problema algum com suas batalhas e contestações, o problema é deles, mas o debate, ao meu ver, já foi perdido há pelo menos um século e meio. No sentido de não haver mais posição moral que tais debates possam defender. E para de alguma maneira continuar, eles precisam encontrar outra pequena plataforma sobre a qual possam gritar o mesmo velho lixo. Então, deixe que falem, eu não me incomodo.”

Não obstante, é nítido que os romancistas são afetados pelo clima político e social em que criam sua obra e, particularmente, pela maneira como a cultura literária é assimilada. Para Galgut, o reconhecimento do júri do Booker precisa ainda ser ecoado na África do Sul; por exemplo, ele ainda não teve notícias do departamento de artes e cultura, uma omissão que ele não leva para o lado pessoal, mas que indica o tratamento dado aos escritores no país. Se o reconhecimento acontecer, Galgut suspeita que será apenas uma questão de ótica; uma chama brilhante a ser usada para atenuar um cenário político sombrio. “Meu lado cínico diz que a maioria dos políticos na África do Sul não dá a mínima.”

Como muitos autores, Galgut preocupa-se em frisar – como fez em seu discurso de aceitação do Booker – a necessidade de apoiar e fortalecer a cultura literária por meio de práticas concretas, incluindo uma tentativa de solucionar o alto custo dos livros pela eliminação de impostos, uma campanha que tem sido conduzida na África do Sul há alguns anos. Embora pareça um problema técnico, é a chave para impulsionar a leitura e a escrita e para garantir que a literatura não seja mais vista como um passatempo da elite – que, como é explorado em “The Promise”, muitas vezes iguala a população branca. “É preciso criar uma cultura que valorize a leitura e a escrita,” diz Galgut, “antes que a população invista as muitas e muitas horas necessárias para começar a fazer isso bem. E isso não é apenas uma prioridade.”

A conversa com Timothy Ogene, poeta, acadêmico e autor que cresceu na Nigéria e agora vive nos EUA, rende perspectivas originais. Seu romance satírico “Seesaw”, a sair em breve, é a história de um romancista nigeriano obscuro e fracassado, capturado por um americano rico e branco e levado a Boston a fim de “representar” seu país. Como Galgut, Ogene é incisivo e consciente sobre a fortuna e o privilégio inerentes à ecologia literária ocidental, desde a publicação à distribuição e ao financiamento dos prêmios. Mas ele também acredita que as vitórias recentes nas premiações destacam a diversidade das vozes vindas tanto da África quanto da diáspora, chamando atenção, por exemplo, a culturas asiáticas, árabes e indianas. A pergunta que deveríamos levantar, ele diz, é o que constitui a literatura africana: “Tínhamos uma definição muito estreita, e isso vem desde as décadas de 1950 e 1960, quando os Chinua Achebe(s) e os Soyinka(s) começaram a surgir,” ele argumenta. “Você sabe, o movimento anti-colonial; essas tendências se tornaram o que agora entendemos como literatura africana. Mas isso está começando a mudar, creio eu. Muitos escritores contemporâneos estão passando a explorar várias linhas de ideias sobre como ser africano, observando diferentes epistemologias.”

Fundamental à criatividade é agência. E agência inclui habilidade e força para resistir a expectativas e constrangimentos externos. Para Ogene, que diz tentar ir a “lugares que não são tipicamente frequentados por autores africanos” e assim abrir-se a “novas formas de abordar os temas da raça, da identidade ou de ser africano no mundo”, o desafio é escapar da dicotomia. “Está na hora de começar a ir além disso e encontrar conexões que não são só ideológicas ou políticas.”

LA PLUS SECRÈTE MÉMOIRE DES HOMMES (A memória mais secreta dos homens), de Mohamed Mbougar Sarr, cuja trama apresenta um escritor “esquecido” apelidado de “Rimbaud negro”, descoberto muitos anos depois por um jovem romancista senegalês, é uma narrativa alimentada pela “recepção ambígua aos escritores africanos negros no campo literário ocidental”, ele me conta. É impressionante que seu romance seja baseado em um escritor real, Yambo Ouologuem, romancista do Máli que, depois de muito aclamado, foi acusado de plágio e em seguida desprezado, e cuja obra levanta visões fascinantes sobre autoria e autoridade.

Para Sarr, seu último romance traz à luz a aparente “anomalia” de se tornar o primeiro escritor da África subsaariana a ganhar o prêmio Goncourt desde sua concepção em 1903. É uma exclusão que levanta “questões estruturais e dilemas literários e sociológicos ligados à dominação colonial e suas consequências (racismo, desprezo literário, ignorância, falta de interesse do meio editorial e do público francês na publicação de romances escritos por outros autores francófonos globais, particularmente os africanos).” Enquanto essa anomalia parece ter sido “corrigida” com esse prêmio recente, ele diz, “penso que seria um erro interpretar isso como uma imensa graça rara e preciosa. Se for visto como uma exceção à regra, isso ainda significará que nada mudou, que esse prêmio é um simples desvio das normas e que logo voltaremos à antiga ordem.”

Pluralidade e empatia são características dos romances premiados este ano. O ímpeto crucial para o futuro é manter os espaços não apenas abertos, mas em expansão. Como diz Sarr: “O prêmio Goncourt é um tremendo incentivo para mim na construção da minha obra, mas também para os escritores africanos, especialmente os jovens. O futuro é deles […] Acima de tudo, eu não quero ser uma exceção. Eu não devo ser. Eu não sou”.