APOSTA NO LADO LUMINOSO DO POVO

Luciana Villas-Boas

Francisco Azevedo esteve ocupado nas últimas semanas, dando os últimos toques na edição de seu romance A ROUPA DO CORPO, que completa e encerra uma tetralogia ou saga familiar – junto a O ARROZ DE PALMA, DOCE GABITO e OS NOVOS MORADORES -, e será lançado pela Record já na próxima virada outubro/novembro. Chico, amigo desde 2008, é um dos mais lidos autores brasileiros em atividade. Puxada pelo ARROZ, sua obra já vendeu muito além de centena de milhar; sua presença midiática não reflete minimamente a admiração íntima, inconteste e incondicional que seus leitores lhe conferem. Com voz poética e de delicada elegância, ele traz em sua ficção a família brasileira na plenitude de suas paixões, seus pecados, seus terrores, sempre tratados com gentileza e compaixão pelo narrador. A propósito da maneira como o leitor aceita e acolhe suas famílias amorosamente disfuncionais, na Conversa com (A)gente, Chico diz que prefere apostar “no lado luminoso do nosso povo”.

VB&M: Com o original de A roupa do corpo, que você entregou à Record em junho, chega ao fim uma tetralogia de romances de família, verdadeira saga, com personagens que atravessam todos os quatro livros. Quando você escreveu o grandioso O ARROZ DE PALMA, seu romance de estreia, já tinha esse projeto em mente?

FA: Não, de modo algum. Mesmo porque jamais imaginei que O ARROZ DE PALMA faria tanto sucesso, abrangendo um público tão diversificado no Brasil inteiro. São leitores de diferentes credos, faixas etárias e classes sociais que se encantam com a história. Embora precisasse me expressar daquela maneira e gostasse do que havia escrito, achava que o mais provável seria que acontecesse justamente o contrário: que o livro desagradasse a gregos e troianos. Quem se identificasse com a linguagem poética ficaria incomodado com alguns temas tratados, e quem fosse mais aberto a esses temas se entediaria com o modo como eram apresentados. O tema família sempre me serviu de inspiração e o curioso é que, tanto O ARROZ DE PALMA, como DOCE GABITO e OS NOVOS MORADORES foram pensados originalmente para o teatro – em linhas bastante simplificadas, é claro. Apenas A ROUPA DO CORPO nasceu como romance. E mais: resultou também da imensa vontade de reencontrar os personagens dos três romances anteriores, de rever aquelas paisagens e ambientes, mas com os olhos e os sentimentos dos novos protagonistas. A tetralogia foi concebida, portanto, de forma inesperada, a partir da aventura de querer reviver pessoas e lugares que me eram tão queridos. Foi uma experiência gratificante. 

VB&M: Para você é muito importante A ROUPA DO CORPO seja publicado ainda em 2020, porque os enredos da saga sempre terminam no ano de lançamento de cada um dos livros. O fato de 2020 estar marcado pela avassaladora Covid-19, em setembro ainda sem vacina ou solução à vista contra o vírus, apresentou desafios diferenciados e específicos para a criação da história?

FA: Sim, porque comecei a contar a história no início de 2019, era outro mundo. Como já afirmei em entrevistas anteriores, escrevo meus romances sem roteiro prévio, a trama se vai desenvolvendo naturalmente, por ela mesma. Capítulo puxa capítulo, os fatos se costuram no próprio andamento da narrativa – hábito que me assusta e satisfaz ao mesmo tempo, porque é bom demais ser guiado pelos próprios personagens, por suas ações, pelos caminhos que escolhem. Só em abril, com o romance praticamente terminado, me dei conta de que aquelas famílias teriam de encarar a pandemia – como todos nós, elas também foram apanhadas de surpresa. Assim, pensando bem, o que houve não foi exatamente um desafio, mas um grande medo de adentrar em espesso nevoeiro sem ter o que me orientasse ou me desse um mínimo de visibilidade. Como se diz, “fui tocando o barco” e, súbito, o tempo abriu. As pedras do quebra-cabeça se juntaram, e pude ver que passagens anteriores se encaixavam claramente com as da conclusão, e que o último capítulo estava intimamente ligado aos dois primeiros. Sorte? Mágica? Pura coincidência? Sei lá.  

VB&M:Você concordaria com a ideia de que todas as famílias de sua saga são amorosamente disfuncionais? Sabendo que sua literatura está hoje na cabeceira de um vasto número de advogados familiaristas brasileiros, como você vê o futuro dessa instituição? A família é resiliente e forte ou vulnerável e frágil?

FA: “Amorosamente disfuncionais”: não havia pensado nisso, rs. Acho perfeito, e peço licença para usar a expressão daqui para frente – com o devido crédito, é claro. Hoje consideradas assim, acredito que, aos poucos, essas famílias passarão a ser perfeitamente “funcionais” com relação às suas opções afetivas e amores eleitos, tornando-se, portanto, socialmente compreendidas e aceitas. Talvez por isso, juízes e advogados de família se interessem pelo que escrevo. Sabem que a lei deve acompanhar os novos tempos e estar presente onde se fizer necessário. Por sua mobilidade, de todas as instituições, a família é a mais habilitada a apontar rumos para o modo como nos relacionamos. Na família, aprendemos na prática. Dela, geralmente, a teoria passa longe. Cada ser humano é um universo riquíssimo, e o que bem se aplica a Fulano não se aplica a Beltrano – pais e educadores devem estar cientes disso. Sim, a família, que já esteve tão desacreditada na segunda metade do século XX, se tem revelado um núcleo extremamente resiliente e forte, capaz de suportar os assustadores ventos das mudanças e, habilmente, fazê-los soprar a seu favor.  

VB&M: Contra todas as aparências, sua obra é profundamente questionadora, irrequieta, desafiadora, tocando nas mais doídas feridas do ser humano e nos mais profundos tabus da cultura. Considerando a acolhida do público a sua obra, até parece que o brasileiro é menos conservador do que normalmente se imagina. Como você explica que o leitor brasileiro aceite tão bem sua visão generosa e tolerante do incesto (em OS NOVOS MORADORES) e do adultério entre irmãos (em O ARROZ DE PALMA), por exemplo, para nem falar de temas mais comuns como a homossexualidade (de novo no ARROZ e em A ROUPA DO CORPO) e a prostituição (em DOCE GABITO), sempre merecedores de seu olhar gentil, compassivo e solidário?

FA: O romancista francês André Gide afirmava que, na vida e na literatura, podemos dizer tudo, dependendo da maneira como se diz. Confesso que o pensamento me influenciou bastante e me deu a chave e a coragem para abordar esses assuntos “delicados” de forma igualmente “delicada”. Aparentemente, deu certo, embora vez ou outra receba mensagens críticas de alguns leitores desapontados com esse olhar solidário e compreensivo. Meu medo é que vejo uma crescente onda de extremado conservadorismo e intolerância religiosa se formando no Brasil. Preocupante? Sim. Mas, ao mesmo tempo, por sua diversidade cultural, criatividade e curiosidade, o brasileiro sempre se mostra aberto a dialogar com o desconhecido, com o novo que lhe traz experiência, com conhecimentos que o inspiram e aprimoram. O brasileiro é alegre, generoso, inventivo, revela humor mesmo em situações adversas. Meus romances apostam nesse lado luminoso de nosso povo.

VB&M: Você diz que com A ROUPA DO CORPO se encerra sua saga familiar. Não sentirá saudade de suas famílias? Pode falar de novos projetos e de como você desenha mentalmente o próximo capítulo de sua trajetória literária? 

FA: Em princípio, não gostaria de ser apresentado a uma nova família, tendo de acompanhar e compreender suas vicissitudes ao longo de décadas. Mas a vida sempre nos desconcerta, por isso nunca digo “dessa água, não beberei”. Eu havia programado uma temporada em Nova York assim que terminasse A ROUPA DO CORPO. Lá, daria início ao próximo romance, inspirado na história da avassaladora paixão entre Andrés Segóvia e Olga Praguer Coelho – relação que durou mais de 20 anos.  Quem me sugeriu o trabalho foi o filho do casal, Miguel Coelho, que mora em Manhattan. Para tanto, já começamos a elaborar uma pesquisa de fôlego, que envolve personalidades como Heitor Villa-Lobos e o poeta norte-americano Carl Sandburg. Será, portanto, experiência inédita e desafiadora para mim. Entretanto, Miguel e eu decidimos adiar o projeto até que as viagens internacionais estejam normalizadas e possamos nos encontrar novamente, não só para trabalhar, mas para confraternizar. O “próximo capítulo de minha trajetória literária”? Não faço ideia. Está escondido por aí em algum lugar, sendo desenhado pelas mãos de não sei quem. Sou apenas um operário da palavra. Sempre aguardo inspirações que me chegam sei lá de onde.