AS MUDANÇAS DE CARÁTER DA HUMANIDADE

A coluna Narrativas & Depoimentos passará a publicar com regularidade bimensal artigos de relevância para o mundo do livro e da literatura, que tenham saído na imprensa ou mídia digital internacional menos corrente no Brasil, sempre em alternância com os textos de qualidade inéditos ou publicados somente de maneira limitada, assinados por clientes e amigos da agência. O artigo de hoje, traduzido por Yasmin Ribeiro, é do editor e escritor escocês James Campbell, que se notabilizou pela biografia TALKING AT THE GATES sobre vida e obra do canônico ficcionista e ensaísta preto americano, James Baldwin. Os dois James nutriam grande amizade recíproca, Campbell trabalha no “Times Literary Supplement”, mas o artigo foi publicado em “The Wall Street Journal” no dia 24 de setembro e, a partir do excerto de uma palestra de 1924 de Virginia Woolf (foto), trata de uma profunda mudança na apreciação das artes e da literatura, que o articulista percebe ter iniciado há seis anos, precisamente em outubro de 2015.

De James Campbell, tradução de Yasmin Ribeiro

Uma das mais charmosas declarações já feitas sobre o desenvolvimento da arte ao longo dos séculos veio de Virginia Woolf (foto da capa) em 1924, numa palestra na Universidade de Cambridge. “Em ou por volta de dezembro de 1910, o caráter da humanidade mudou”, disse Woolf. O tema era o movimento modernista. Ela fez a palestra dois anos após a publicação do poema aparentemente impenetrável de T. S. Elliot, “The Waste Land”. O romance “Ulysses”, de James Joyce, fora lançado na mesma época. Picasso já estava em sua terceira ou quarta fase de inovação. Stravinsky saiu do palco sob vaias em Paris. Um ano depois da palestra, a própria Woolf publicou o romance impressionista “Mrs. Dalloway” — um livro em que autora e protagonista são sujeitas a mudanças em seu “caráter humano”.

Para atualizar a observação de Woolf, minha sugestão é algo como: “Pelos idos de outubro de 2015, o caráter da humanidade mudou outra vez.” Menos conciso que o original e com flexibilidade na data. Mas uma mudança aconteceu, de fato. Em outubro de 2015, a intelectual feminista Germaine Greer foi censurada na Universidade de Cardiff, na Grã-Bretanha, após ter, de acordo com uma petição online, “demonstrado visões misóginas acerca de mulheres trans”. No mesmo mês, o mundo inteiro voltou sua atenção para as fantasias de Halloween em Yale, e termos como “aviso de gatilho” e “espaço seguro” entraram no vocabulário popular. O lugar de fala ganhou prioridade sobre a crítica na apreciação geral das artes e da literatura. Revistas literárias sofreram mudanças incontestáveis com a repentina soberania do critério de inclusão sobre todas as decisões editoriais. Quem quiser argumentar, abra antes qualquer edição recente da “New Yorker” e compare-a com outra de 20 anos atrás.

A frase de Woolf tem sido amplamente citada, assim como suas alusões a Arnold Bennett, na era anterior à mudança, e a D. H. Lawrence na nova. Mas foi no parágrafo seguinte, quase nunca mencionado, que ela contextualizou a pequena revolução. “Todas as relações humanas mudaram”, disse Woolf, “aquelas entre mestres e servos, maridos e esposas, pais e filhos”. Não precisa de muita reflexão para transpor essas mudanças nas relações ao nosso próprio tempo, introduzindo termos como privilégio e igualdade, negro e branco, público e polícia. Woolf continuou: “E quando as relações humanas mudam ocorre ao mesmo tempo uma mudança na religião, conduta, política e literatura.”

Minha preocupação é com o bem-estar dessa última. Sempre houve limitações à produção literária. Basta voltar ao julgamento de “O amante de Lady Chatterly”, de D. H. Lawrence, em 1960, e à publicação de “Trópico de Câncer”, de Henry Miller, no ano seguinte, nos EUA, para perceber que desde então vivemos sob um diferente entendimento quanto ao direito de expressar os próprios pensamentos e de divulgar suas consequências. Mas os avanços feitos nos anos 1960 a respeito da liberdade de expressão foram revertidos em 2015. Trata-se com certeza de um dos mais estranhos fenômenos culturais recentes, pois, enquanto no passado eram sempre os jovens radicais que lutavam contra os grilhões da censura, seus herdeiros de hoje lideram a campanha para a volta das algemas.

Na maior parte das vezes, isso é feito em nome da justiça retroativa, ou para proteger culturas minoritárias de serem ainda mais exploradas pelos supostos beneficiários do privilégio colonialista. É difícil se opor à justiça, mas esse conceito raramente foi um aliado da arte. Tal como a natureza, a arte — do tipo feita pelas pessoas mencionadas acima — não se importa com a justiça. Caso tente, o resultado provavelmente será ruim. Contudo, noções vagas de acerto de contas e representatividade ditam os debates atuais sobre o tema. Editores, críticos, jurados e membros de painéis em premiações — todos estão sujeitos à doutrina da inclusão, admitam esse fato ou não. A avaliação não é mais sobre o melhor livro ou o artista mais talentoso. Não há um painel de jurados sobre o mundo ocidental que não reagiria a uma queixa sobre uma lista “ser branca demais” ou “ter homens demais”. Se você ainda não notou, esteja atento para a próxima leva de gênios premiados com a bolsa MacArthur, ou dê uma olhada na lista curta do National Book Award.

A mudança afeta não só o gosto artístico, mas também o acesso. Em setembro de 2020, uma exposição de pinturas de Phillip Guston programada para percorrer Washington, Londres e Boston, entre outras cidades, foi cancelada. Em questão, como colocou Peter Schjeldahl em seu artigo na “New Yorker”, estavam “algumas pinturas obscuras e cômicas que apresentavam sátiras de figuras da Ku Klux Klan”. Schjeldahl avaliou Guston como um “grande artista americano”, mas endossou o cancelamento “num tempo em que nenhum símbolo parece estar livre de ser politizado”. Não é trabalho do crítico incorruptível precisamente pôr o valor estético acima de caprichos políticos? Será que Schjeldahl apoiaria o banimento ou a censura do retrato de Gertrude Stein por Pablo Picasso se a novela “Melanctha” dessa autora fosse condenada pelo conteúdo racista?

Recentemente, na BBC, o dramaturgo Tom Stoppard, parecendo um pouco perplexo, discutiu esses temas. “Cinquenta anos atrás”, afirmou, “a liberdade para dizer o que se quisesse, dentro dos limites da lei, era a liberdade sobre a qual todas as outras liberdades se baseavam.” Perguntado pelo entrevistador se essa liberdade cessara de existir, ele respondeu categoricamente: “Sim.” Então, Stoppard discorreu sobre o conceito mais sutil de auto cancelamento. Mesmo em um programa como esse, ilustrou, “eu expresso não mais que uma ideia casual e estou ferrado para o resto da minha vida”.

Como chegamos até aqui? Pelos idos de outubro de 2015, a liberdade de expressão sofreu um ataque de constrangimento agudo. O processo contou com a cumplicidade dos editores e comentaristas de jornais e periódicos de prestígio com suas táticas apaziguadoras. Nas editoras, “leitores sensíveis” agora aconselham autores sobre o que é ou não apropriado dizer, esvaziando acusações de pensamento colonialista antes de o texto ser publicado e correr o risco de ferir o público: precisamente a mesma mentalidade que manteve “O amante de Lady Chatterley” em confinamento legal na Grã-Bretanha — um espaço seguro, de fato — até 1960.

Há uma forma de voltar atrás? Sim. Lá no fundo, você sabe o que é uma obra de qualidade quando a vê. Não abra mão da liberdade de afirmar a sua opinião.