CASA SEM CORTINAS E SOCIEDADE POLICIAL

A FRASE SUBLINHADA de hoje vem da biblioteca de Luciana Villas Boas, “Os testamentos traídos”, de Milan Kundera, na edição da Nova Fronteira, lido pela primeira vez em 1994, assim que lançado no Brasil, e devidamente relido em 2022: “Quando se retoma um livro que foi uma fonte de luz no passado, e o encanto se repete, é como cair novamente nos braços de um velho amor; a euforia do encontro e da revelação é ainda mais intensa, fica inevitável pensar: não o largo nunca mais. Fui atrás de uma Frase Sublinhada em ‘Os testamentos traídos’, do romancista e ensaísta Milan Kundera; lembrava que eu havia destacado um sem número de trechos quando li pela primeira vez essa livro do tcheco, que, se ainda não recebeu o Nobel, só deixa provado que esse prêmio representa muito pouco no contexto da literatura contemporânea. De fato, meu velho exemplar está todo em destaque, mas fui sugada pelo texto e encontrei ainda mais o que sublinhar.

‘Os testamentos traídos’ são ensaios sobre a arte do romance organizados como num romance ou numa sinfonia, nos quais os protagonistas se revezam em cada uma das nove partes, Stravinski e Kafka, seus (maus) amigos Ansermet e Max Brod, Hemingway e seu limitado biógrafo, Janacek e o que veio a ser a República Tcheca, Rabelais e os romancistas contemporâneos. Mas os testamentos traídos de Kundera vão muito além do ensaio literário, iluminando todos os grandes temas da atualidade e, publicados originalmente em 1993, revelando de maneira estarrecedora a intuição política e cultural de Kundera do que viria suceder à civilização ocidental no século XXI. Basta ver esses dois parágrafos escritos uma década antes de as mídias sociais tomarem o mundo.”

“O pudor é uma das noções-chave dos tempos modernos, época individualista, que hoje imperceptivelmente se afasta de nós; pudor: reação epidérmica para defender a própria vida particular, para exigir uma cortina na janela; para insistir que uma carta endereçada a A. não seja lida por B. Uma das situações elementares para a passagem da vida adulta, um dos primeiros conflitos com os pais, é a reivindicação de uma gaveta para suas cartas e seus cadernos, a reivindicação de uma gaveta com chave; entra-se na idade adulta pela ‘revolta do pudor’.

A velha utopia revolucionária, fascista ou comunista: a vida sem segredos, em que vida pública e vida particular são uma só. O sonho surrealista caro a Breton: a casa de vidro, casa sem cortinas onde o homem vive sob o olhar de todos. Ah, a beleza da transparência! A única realização bem-sucedida desse sonho: uma sociedade totalmente controlada pela polícia.”