Anna Luiza Cardoso e Luciana Villas-Boas
Marie Lannurien, fundadora e diretora da Books & More (BAM), agência literária francesa baseada em Paris e parceira da VB&M como coagente e cliente, Conversa Com (A) Gente sobre o mercado editorial francófono, os atuais interesses dos editores e leitores franceses, a forte produção feminista contemporânea do país que gerou Simone de Beauvoir, a herança do Nouveau Roman e o fenômeno da literatura franco canadense. No mercado há 15 anos, Marie se vê como uma “contrabandista” do livro e diz que, apesar da desconfiança das editoras francesas dos fenômenos literários internacionais, ela tem sentido maior abertura à diversidade cultural em seus catálogos.
VB&M: Você trabalha no mercado de direitos internacionais há 15 anos, primeiro como sócia de Corinne Marotte em L’Autre Agence, agora como fundadora e diretora da BAM (Books And More). O que a atraiu para o negócio do livro?
ML: Eu me vejo como uma contrabandista. Amo descobrir e me apaixonar por um livro e encontrar-lhe um bom editor, uma boa casa. Também gosto muito de conhecer pessoas, e minha relação com Sophie Langlais, que se juntou comigo à BAM em 2020, faz parte dessa nova era em que os relacionamentos, a bondade e uma certa visão do futuro são primordiais para trabalhar serenamente com livros e seus aficionados.
VB&M: O que você diria ser específico ao mercado editorial francês, particularmente em relação à literatura traduzida de outros países, mas também em relação à exportação da ficção e não-ficção francesa para o mundo? Qual é o jeito francês de trabalhar com livros?
ML: Há alguns anos, entre agentes anglo-saxônicos, circulava uma anedota dizendo que, se um editor francês for o primeiro a comprar os direitos de tradução de um livro, temos um sinal muito ruim para o mercado. Nenhum outro editor estrangeiro vai querer contratar aquele livro
Penso que essa anedota reflete o caráter cultural, literário e político específico do mercado do livro na França; e o fato de que, embora as editoras francesas estejam muito interessadas na literatura e na não-ficção estrangeiras, elas também revelam cautela e desconfiança dos fenômenos literários internacionais. As editoras estão finalmente interessadas em manter uma certa diversidade cultural. Cerca de 20% dos novos livros publicados a cada ano são traduções, de acordo com a pesquisa do SNE (Sindicato Nacional de Edição). O inglês é o principal idioma de origem, seguido pelo japonês, alemão, italiano, espanhol, entre outros.
Exportar a ficção e a não-ficção francesa tem sido muito gratificante nesses últimos anos, especialmente quando se representa, como nós fazemos, editoras independentes e criativas. Penso que a França abriga uma nova geração de autores que farão os estrangeiros esquecerem a imagem da literatura francesa narcisista e egocêntrica. DE PIERRE ET D’OS (De carne e osso, em tradução livre, assim como todos os títulos a seguir nesta entrevista), de Bérengère Cournut, publicado pela Le Tripode, já vendeu mais de 100 mil exemplares na França, e os direitos de tradução foram para a Itália (Neri Pozza), Alemanha (Ullstein), Holanda (Prometheus), Turquia (CAN), Catalunha (MesLlibres), Espanha (Errata Naturae). Quanto à não-ficção, representamos a editora Les Liens qui Libèrent, que publicou LA GUERRA DES MÉTAUX RARES (A guerra dos metais raros), de Guillaume Pitron, também vendido para 10 territórios.
VB&M: Há algumas décadas, no mercado internacional costumava-se dizer que o Nouveau Roman destruiu a literatura francesa para os estrangeiros, por ser sombrio, hermético demais. Agora o Noveau Roman pertence a um passado remoto, mas você concorda com essa afirmação? Diria que a literatura francesa precisou se “recuperar” do Noveau Roman para reencontrar seu lugar no mundo?
ML: Acredito que o fato de precisar se afastar de uma “imagem internacional”, em matéria de literatura, já é um luxo, porque isso quer dizer que essa imagem existe! São muitas as literaturas estrangeiras que não têm essa “imagem internacional” e lutam para alcançá-la.
O “Noveau Roman” foi um movimento literário de grande sucesso que trouxe aos leitores obras de grandes nomes como Marguerite Duras, Claude Simon, Nathalie Sarraute, entre outros. Penso que esses autores não destruíram nada, mas sim contribuíram para a notabilidade da literatura francesa em todo o mundo. Hoje surgem novas vozes, inclusive nas Éditions de Minuit, que foi o epicentro do “Nouveau Roman”. A Minuit teve grande sucesso internacional com uma jovem romancista, Pauline Delabroy-Allard. A literatura francesa está se tornando muito mais diversificada com o sucesso dos bestsellers internacionais, como o autor nascido em Ruanda Gaël Faye, que escreveu “Petit Pays” (Pequeno país), publicado pela Grasset, ou Adeline Dieudonné, que vem da Bélgica, com “La vraie vie” (A vida verdadeira), publicado por l’Iconoclaste, ambos traduzidos em mais de 30 países.
VB&M: Simone de Beauvoir é a voz feminista mais importante do século XX. Hoje há uma explosão de vozes femininas na literatura em todos os continentes. Como esse fenômeno está se desenvolvendo na França e quem você diria que são as melhores e mais legítimas herdeiras de Beauvoir na literatura francesa?
ML: Eu diria que a cena literária feminista é muito interessante atualmente, tanto na ficção como na não-ficção. “Sorciéres” (Bruxas), de Mona Chollet, é um grande best-seller francês e internacional. Devo mencionar também “On ne naît pas soumise, on le devient” (Não se nasce submissa, torna-se), de Manon Garcia, e Camille Froidevaux-Metterie, que publicou pela Anamosa o “SEINS – EM QUÊTE D’UNE LIBÉRATION (Seios – em busca de uma libertação), uma exploração sociológica emocionante da relação entre a sociedade e os seios das mulheres. Ou mesmo a Amandine Dhée e o merecido sucesso de seu A MAINS NUES, publicado pela Contre-allée. “Le consentement” (Consentimento), de Vanessa Springora, ou “La familia grande”, de Camille Kouchner, foram/são grandes lançamentos, e é notável constatar que esses livros trouxeram debates importantes para a sociedade na França. Esses textos até mesmo ocasionaram mudanças de leis por causa das fortes evidências e denúncias levantadas por eles.
Um gênero tradicionalmente masculino, como a HQ, também alcançou grande sucesso entre feministas com “LA CHARGE MENTALE (A carga mental), da artista Emma, que foi traduzida para diversos idiomas. O pensamento feminista se beneficia também de produções em áudio e de podcasts como “La Poudre”, de Lauren Bastide, “Le coeur sur la table”, de Victoire Tuaillon, ou “A bientôt de te revoir”, de Sophie Marie Larrouy. Essas produções se situam na fronteira do jornalismo, da literatura e da política.
VB&M: A BAM está se expandindo significativamente no Canadá francês. Quais são as contribuições mais importantes da literatura franco-canadense? O que lhe agrada nessa produção?
ML: O mercado franco-canadense é muito rico. É acessível na França sem precisar de tradução, mas oferece um imaginário literário muito diferente. Por vezes, até mais aberto, mais selvagem do que a literatura francesa. Eu amo sua liberdade (ainda que relativa), de fato.
Da mesma maneira como acontece na França, no Quebec, nós temos a chance de trabalhar com casas editoriais independentes, criativas, que amam e encorajam a diversidade. Ficamos muito felizes em vender os direitos de LE MONDE EST À TOI (O mundo é seu), da feminista Martine Delvaux, originalmente lançado no Quebec pela Héliotrope, a uma nova editora na França, Les Avrils. Também fiquei impactada ao ver TÉNÈBRE (Escuridão), de Paul Kawczak, lançado pela franco-canadense La Peuplade, publicado na França em edição de bolso pela J’ai Lu.
VB&M: Você diria que a literatura franco-canadense está passando por um momento particularmente efervescente? Poderia apontar as causas para o surgimento dessas novas vozes no Quebec?
ML: Na França, de todo modo, é exatamente este o caso, pois os editores (e leitores) recente e surpreendentemente descobriram a cena literária franco-canadense. Penso que a vontade dos editores e autores do Quebec de difundir sua produção internacionalmente, ligada à recente curiosidade e gosto dos editores na França pelos autores do Quebec, favorecem o crescimento da literatura franco-canadense pelo mundo. A prova disso é o sucesso de POIDS DE LA NÉGE (Peso da neve), de Christian Guay Poliquin, lançado por La Peuplade. Por exemplo, recentemente, o autor de “Les villes de papiers” (As cidades de papel), Dominique Fortier, venceu o Prêmio Renaudot de Ensaio na França e foi traduzido para mais de 10 idiomas. Ou, ainda, ”La trajectoire des confettis” (A trajetória dos confetes), de Marie Eve-Thuot, publicado por Les Herbes Rouges, que figura entre os 10 títulos selecionados para o Festival Internacional de Cinema de Berlim 2021.
VB&M: Gostaria de comentar sobre o impacto da pandemia da Covid-19 no seu negócio?
ML: As negociações internacionais presenciais foram reduzidas a quase zero em 2020 com o cancelamento de todas as feiras. É certo que todo mundo aumentou o número de reuniões virtuais ou encontrou outras formas de suporte, novos jeitos de se comunicar (como este blog!), mas nada disso substitui a energia que se transmite quando nos encontramos nas feiras. Falando em negociações, observei que o número de vendas de direitos entre territórios infelizmente diminuiu em geral.
Acrescente-se a isso o fato de que os editores, como em qualquer indústria, tiveram de ser muito cautelosos. Com o atraso das programações e a impossibilidade de prever um futuro tranquilo, isso é muito compreensível. Mas também houve alguns fatos positivos. Mais curiosidade, maior disposição para títulos mais inesperados, e tenho notado que a atividade com autores franceses na França está aumentando. Conversando com colegas alemães e espanhóis, vimos que as editoras estão mais focadas no mercado nacional. Mas 2021 será e já é diferente com um desejo ainda maior de belas descobertas literárias.
Essa pandemia que nos fez passar tanto tempo dentro de casa contribuiu para a ascensão das séries de TV, mas as pessoas também leram bastante. “L’anomalie”, que rendeu a Hervé Le Tellier o Prêmio Goncourt do ano passado, já vendeu 800 mil exemplares na França, um feito muito raro. (Nota-se também uma mudança cultural: este autor é representado por um agente literário, a agência Astier-Pécher.) O livro continua como uma forma de lazer cultural fundamental no cotidiano das pessoas.