Como lembrança e dica de um livro fundamental para a compreensão do mistério histórico, político, social, filosófico e existencial que é a Rússia, Luciana Villas Boas oferece a Frase Sublinhada em “Imperium” (Companhia das Letras), do jornalista polonês, falecido em 2007 aos 74 anos, Ryszard Kapucinski. Ela faz uma nova apresentação do autor, que em meados dos anos 90, com sua obra publicada pela Companhia, era conhecido por todos que fossem minimamente leitores, mas agora parece bastante esquecido:
“Um dos maiores nomes do jornalismo literário do século XX, chamado de ‘Maestro’ por Gabriel García Márquez e Luís Sepúlveda, Kapucinsky, depois de cobrir e publicar livros sobre o processo de descolonização da África e os movimentos sociais latino-americanos, encerrou sua obra retornando a seu grande tema: as trágicas relações da Rússia com seus vizinhos, fenômeno que lhe era íntimo desde a infância em Pinsk (hoje Bielorrúsia, na época, Polônia), de quando lembrava dos soldados soviéticos marchando e maltratando moradores na cidade e das mães dizendo às crianças: ‘se desobedecer, vai para a Sibéria’, expressão absoluta do mal e da dor. “Imperium”, finalizado enquanto desmoronava o império soviético, retoma os contatos do autor com as regiões diretamente afetadas pelo domínio e controle russos, e ainda com Moscou e o Kremlin, a Sibéria e várias cidades, reportagens realizadas em diferentes épocas, sempre misturando a apuração factual e a descrição detalhada dos acontecimentos – a fim de chegar a seu sentido histórico mais profundo – com a mais vasta leitura e erudição sobre os lugares e os povos investigados.
É o livro mais seminal sobre a essência da Rússia já traduzido para o português, e fica difícil escolher um trecho sublinhado entre tantos, seja pela iluminação que as passagens proporcionam, seja pela beleza de suas frases, pois Kapucinsky elevou a reportagem a gênero artístico-literário. Infelizmente, a tradução da obra está longe de ideal, mas ainda assim pode-se ver a força de sua linguagem.
Na época do lançamento no Brasil, em 1994, tive a honra de entrevistar o autor por telefone para o caderno literário Ideias, do JB, mas para minha tristeza não encontro mais essa matéria. Homenageio o Maestro reproduzindo aqui um parágrafo de Imperium, entre tantos possíveis, que mostra como ele transitava maravilhosamente entre o fato histórico, a literatura e a natureza filosófica da experiência humana. O parágrafo, ligeiramente corrigido de modo a evitar equívoco de compreensão a partir de uma crase errada em “dêem à Foma Opiskina”, abre fazendo referência a uma conversa entre o autor e sua vizinha de assento num voo, já em era pós-soviética, em que a mulher começa a narrar para ele os tormentos sádicos que seu filho está sofrendo no exército – a “diedovchtchina”, padrão de tratamento degradante dispensado aos recrutas pelos oficiais subalternos e soldados veteranos. Outro mistério para mim é por que esse livro, tão importante para o entendimento de Putin e das ações russas na Ucrânia, está fora de catálogo e só o conseguimos comprar na Estante Virtual.”
“Minha vizinha no avião fala-me sobre os tormentos do filho recruta, sussurrando em meu ouvido: trai, portanto, os segredos do grande exército. Não sei se terá lido o estudo de Michailovski sobre Dostoievski, um grande e antigo texto, escrito em 1882. Michailovski foi um ensaísta russo, um pensador. Desprezava Dostoievski, chamava-o de ‘talento cruel’, mas ao mesmo tempo admirava-lhe a sagacidade, o gênio. Segundo Michailovski, Dostoievski descobriu no ser humano uma característica terrível – a crueldade gratuita – pois no homem existe uma propensão, a de causar sofrimento aos seus semelhantes sem qualquer razão ou objetivo. Um indivíduo atormenta o outro sem nenhum motivo, tão-somente porque atormentá-lo lhe proporciona um prazer inconfessável. Essa característica (a crueldade gratuita), associada ao poder e à soberba, deu à luz a tirania mais brutal do mundo. Dostoievski fez essa descoberta, ressalta Michailovski, no conto ‘A aldeia de Stepantchikovo e seus moradores’, onde descreve uma pequena e provinciana cratura: Foma Opiskina, algoz, monstro e tirano. ‘Dêem a Foma Opiskina o poder de Ivã, o Terrível, ou de Nero’, escreve Michailovski, ‘e não ficará nada a dever a eles e surpreenderá o mundo com seus crimes.’ Mais de meio século antes da consolidação de Stalin no Kremlin e da ascensão de Hitler, Dostoievski, com profética intuição, detectou na figura de Foma Opiskina um precursor desses dois tiranos.”