DOÇURA MINEIRA E LITERATURA

A jornalista, produtora musical e escritora Maria Dolores, biógrafa de Milton Nascimento com “Travessia” (Record), decidiu escrever suas memórias só para a família, lembrando por meio de contos e histórias seus momentos com cada um dos parentes, mas principalmente com os quatro avós. O resultado é um livro muito delicado e cheio de humor, “A cor que falta”, tendo na capa uma foto do “tapete da vó Maria Lúcia” e uma impressionante tiragem de 50 exemplares rodados em Três Pontas (MG), em 2020. Narrativas & Depoimentos publica o primeiro capítulo e desafia os leitores do blog VB&M a negar que o texto de Maria Dolores tenha um perfeito gosto de doce mineiro. Com uma fatia de queijo de Minas para cortar com eficácia o excesso do doce. O último livro lançado pela autora é o romance “A lua no terreiro” (Penalux), deste ano.

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Algumas palavras

Comecei a escrever sobre a família porque eu queria que meus filhos pudessem conhecer mais sobre a história deles. Saber de onde vieram para, quem sabe, entender melhor para onde vão, por onde vão. Mas não só por isso. Comecei a escrever para que eles conhecessem as histórias e alguns personagens desse universo rico e fascinante que é o passado. E para que seus filhos possam conhecer também, se eles assim o quiserem. No futuro tudo se perde. Mas a palavra escrita sobrevive à palavra falada, um pouco mais.

À medida que eu escrevia e relembrava, senti o desejo de compartilhar esses escritos com o restante da família. Compartilhar as minhas lembranças com as pessoas que fizeram parte dela, e com os que vieram depois e abriram espaço para novas lembranças e novos aprendizados.

Não se trata de uma biografia familiar. Não é um retrato dos fatos. São apenas memórias. E a memória é muito mais fiel ao sentimento de quem recorda do que à realidade. É a forma como eu me lembro, com as cores da percepção que eu tive em cada momento e da vida que eu tenho agora. Recordar é ver o passado a partir do presente, apontando para um futuro. Por isso, peço aos parentes queridos: não fiquem bravos se algum fato estiver errado, se algum objeto não existir, se algum caso foi com aquela pessoa e não com esta. Nem se uma pessoa aparece mais que a outra.

Esse relato não pretende ser justo. As regras da memória são de outra natureza. Eu poderia ter escrito também sobre a segunda geração, dos meus pais, tios e tias. Mas cada coisa a seu tempo. Hoje, presto a minha homenagem aos que vieram antes. Estas páginas são isto: o meu resgate de histórias e pessoas que, em sua maioria, já não estão aqui, o quanto significaram para mim e quanto de cada uma delas persiste em cada passo de cada um dos meus dias.

Maria Dolores
18/10/2020

 

Capítulo 1

– Você vai ter que arrumar o corpo lá, moço.

Ele coçou a cabeça, a nuca, apertou a boca e puxou o ar que conseguiu pegar em volta.

– É que aqui, senhora, tem o laboratório, tem tudo o que é necessário.

– Minha mãe não quer sair de casa. Não preocupa, a gente arruma e você vai só dar uma ajeitada. Não precisa arrumar muito, só um pouquinho.

– E tem a vigilância sanitária.

– Não tem problema. A vigilância não vai falar nada. Minha mãe não saiu nem para ir ao hospital. Te espero então, tá, na casa ali da esquina.

O homem da funerária parecia exausto, cansado de pelejar com tantas solicitações incomuns de uma vez só. Primeiro foi o caixão. Assim que minha vó morreu, eu, tia Joyce, o Zé Carlos marido dela, e tio Flavinho atravessamos a rua, andamos três casas e entramos na funerária para tomar as devidas providências. Tia Joyce escolheu o caixão mais simples, sem os braços dourados, entalhes, verniz e adereços. Era de compensado, cor de papelão e envelope. Com muito jeito o homem explicou não ser aquele um caixão adequado. Minha tia não desistiu, eu também não. Era o mais simples, o melhor. Ele não se conformou e, por fim, explicou:

– É que esse é de indigente.

– Minha mãe não vai ligar, moço, não tem problema.

Mas os deveres da profissão e de cristão não o deixaram desistir, continuou a oferecer todos os argumentos ao seu alcance para nos convencer. Estava tão visivelmente perturbado por minha vó ser velada e enterrada como indigente que tia Joyce ficou com pena dele. Acatou a orientação técnica. Desistiu do caixão papelão.

– O João, meu irmão, disse que queria um caixão branco. Você tem, moço?

Tinha. Estava desmontado, porque não era muito comum. E era muito branco, fez questão de ressaltar.

– Branco branco, moço? Branco não é branco?

– É muito branco, branco mesmo.

– Tudo bem, a gente quer branco.

– Mas é bem branco. – ele insistiu.

– Branco da cor da parede? – eu perguntei.

– É, branco muito branco, da cor da minha camisa.

– Está certo, é isso mesmo, pode montar o caixão.

– Vocês têm certeza? É muito branco.

– Sim, moço, pode montar.

Soubemos depois que o caixão branco era para jovens virgens, o que explicava a resistência do vendedor-técnico em arrumação de defunto. Minha vó não era nem jovem, nem virgem. No entanto, ficaria linda num caixão branco, como se estivesse dormindo em uma nuvem, e isso era o principal. O moço, tão correto no seu labor, tendo feito tudo sempre de acordo com as normas vigentes e etiquetas do universo fúnebre, acabou concordando em montar o caixão branco e arrumar o corpo na casa.

– Vou preparar os materiais, daqui a pouco eu chego lá – disse, limpando o suor que escorria pelo canto esquerdo da testa.