EDITORA PÉ QUENTE

Raquel Cozer trocou o jornalismo cultural pelo mercado editorial em 2015, bem no início da série de crises que assolaram o país e, mais especificamente, a indústria do livro no Brasil. Começou como editora-executiva na Planeta, passou a editora de aquisições na Intrínseca e, de lá, em 2018, a diretora editorial da Harper Collins/Harlequin Brasil. Apesar da situação crítica da economia brasileira nesse período, duas das três casas cresceram muito na época em que Raquel começou a trabalhar nelas, razão pela qual costuma brincar que é pé quente. Nesta Conversa Com (A) Gente, ela fala sobre a transição do jornalismo para o mercado editorial, comenta sua experiência como editora e os livros que tem buscado para compor o catálogo da HC _ obras muito distintas entre si. Só para exemplificar com as aquisições na VB&M, Harper Collins publicou recentemente PÃO DE AÇÚCAR, do jovem premiado autor português, Afonso Reis Cabral; OS LEÕES DA SICÍLIA, saga histórica best seller da autora italiana Stefania Auci; está preparando a edição de SINOS DA AGONIA, um dos mais impactantes títulos de um dos nossos maiores clássicos, Autran Dourado; e a outra grande notícia para a agência esta semana, ANISTIA, deslumbrante romance do professor e crítico Pedro Sussekind, confiado a Raquel e sua editora de literatura brasileira, Maria Luiza Poleti . Raquel também analisa o mercado editorial desde o início de sua atuação e os maiores desafios impostos pela pandemia. Na sua visão, “os livros na lista hoje não vendem mais um milhão de exemplares ao ano (…), mas, por outro lado, me parecem ter uma vida mais longa”. O que está totalmente de acordo com o que a orienta na construção de um catálogo duradouro para a Harper Collins: “Lançar livros de ocasião é menos importante para a gente do que publicar títulos que, mesmo que escritos por influenciadores, tenham relevância para uma vida longa.”

VB&M: O que a levou a deixar uma posição de grande visibilidade como jornalista da Folha de S. Paulo, em 2015, a fim de atender ao convite de Cassiano Elek Machado para assumir a área de ficção da Planeta?

RC: O jornalismo e a literatura são duas paixões na minha vida, e os anos em que escrevi sobre livros e mercado editorial na Ilustrada foram muito felizes para mim, profissionalmente. Mas, com o tempo, quanto mais conhecia o mercado editorial, mais me interessava fazer parte dele não apenas como observadora. A ideia de fazer livros começou a me parecer mais atraente do que escrever sobre eles. Nessa equação entraram também questionamentos meus sobre o jornalismo cultural num momento em que os meios de informação vinham mudando demais.

A Planeta fez uma aposta que poucos fariam em mim. Embora fosse uma repórter sênior, eu não conhecia nada da edição de livros na prática, e comecei já como editora-executiva. Lembro que na nossa primeira conversa na editora, o Cassiano, que tinha sido meu colega na Folha, me perguntou o que eu conhecia de livros juvenis, uma das áreas que ficariam sob minha responsabilidade, e eu só tinha lido John Green, para uma reportagem, e J.K. Rowling. Aprendi muito lá, uma empresa que assim como a HarperCollins é uma ótima escola, por entender que os editores devem participar de toda a vida do livro, da aquisição e edição até o acompanhamento de marketing, comercial e planejamento estratégico.

VB&M: Considerando sua rápida carreira como editora, da Planeta para a Intrínseca e, desde 2018, na direção editorial da HarperCollins/Harlequin-Brasil, você diria de si mesma que é mais do livro do que da notícia? Sente-se hoje editora desde sempre ou ainda vigoram de alguma maneira o coração da repórter e o olhar da jornalista?

RC: Não consigo dissociar as duas experiências, na verdade. Os anos como jornalista me deram uma bagagem fundamental, não só de texto e maneiras de comunicar em geral, como de tentar entender o leitor, ir a fundo nos problemas, investigar caminhos.

Se no começo senti falta do ritmo das redações, logo percebi que o editor também precisa, como o jornalista, estar atento às tendências, saber onde está a “notícia” – que, no caso dos livros, envolve reconhecer um conteúdo que seja relevante daqui a seis meses como daqui a seis anos, e para leitores que terão gostos muito diferentes dos seus.

VB&M: O que a orienta na aquisição de títulos para a Harper Collins? Há uma assinatura Raquel Cozer nos livros que contrata?

RC: É uma assinatura coletiva, tenho muito orgulho da equipe editorial da HarperCollins hoje. Estamos há apenas seis anos no Brasil e isso nos permite criar muito. Nos últimos anos, com a ajuda das outras áreas da empresa, lançamos nosso selo infantil, a HarperKids, reforçamos nossa lista juvenil, trouxemos diversidade, começamos a publicar ficção nacional, ampliamos a lista de autores clássicos e literários, nos firmamos como uma editora de importantes obras comerciais. E fizemos uma renovação total na Harlequin, nossa editora de romances femininos, que tinha ficado um pouco sem rumo depois que os romances de banca perderam seu principal canal.

O que nos orienta no editorial é a ideia de construir um catálogo duradouro. Lançar livros de ocasião é menos importante para a gente do que publicar títulos que, mesmo que escritos por influenciadores, tenham relevância para uma vida longa. A HarperCollins é conhecida internacionalmente como uma editora de força comercial e temos orgulho disso, porque os livros precisam mesmo chegar ao maior número de pessoas, mas trabalhamos o tempo todo para unir esse alcance com qualidade editorial em termos de autores, texto e projeto gráfico.

VB&M: Do catálogo da VB&M, você contratou, entre outros títulos, OS LEÕES DA SICÍLIA, de Stefania Auci, saga histórica, grande sucesso italiano e internacional. O que a atraiu nesse livro?

RC: Ouvimos falar de OS LEÕES DA SICÍLIA quando a HarperVia, o selo de literatura internacional da HarperCollins Publishers, adquiriu os direitos para os EUA. Resolvemos avaliar para a nossa lista porque estávamos atrás de mais literatura de língua não inglesa.

A obra estava recém-lançada na Itália e já alcançara o topo das listas. Comecei a ler esperando algo diferente – naquela época, o comparativo para ficção italiana de sucesso era Elena Ferrante. No fim, o estilo de Stefania Auci me lembrou mais outro autor que adoro, Ken Follet, com a Trilogia do Século (Arqueiro/Sextante): você se envolve com os personagens, o tempo passa, e daí você se envolve com os filhos e netos deles. É o tipo de livro que ganha os leitores no boca a boca, e que hoje é usado como o comparativo quando agentes querem vender livros de autores italianos de ficção.

VB&M: Harper Collins está lançando PÃO DE AÇÚCAR, premiado drama português baseado num caso real de assassinato de uma mulher trans brasileira, de um autor muito jovem, Afonso Reis Cabral. O leitor brasileiro deveria estar mais a par do que está acontecendo na ficção portuguesa contemporânea?

RC: Conheci a obra de Afonso Reis Cabral quando estive em Portugal no final de 2019. Fui visitar livrarias, e PÃO DE AÇÚCAR me foi recomendado por livreiros. Fiquei impressionada com a escrita dele e com as escolhas que fez para contar aquela história. Dias depois ele ganhou o Prêmio Saramago.

Nessas visitas às livrarias portuguesas, percebi que conheço menos do que pensava a ficção portuguesa contemporânea. Já tinha lido nomes publicados aqui, como Inês Pedrosa, Gonçalo M. Tavares, José Luis Peixoto, mas voltei de lá com uma lista imensa de autores a conhecer.

Quando publicamos o livro do Afonso, recebemos questionamentos de leitores que estranhavam não termos adaptado o texto para o português do Brasil. Isso é algo que até pode ser feito em livros de não ficção comercial, mas não numa ficção literária cuja linguagem partiu de muita pesquisa sobre a fala de adolescentes que viviam pelas ruas do Porto, como é o caso do PÃO DE AÇÚCAR. Esse estranhamento mostra como, no geral, a literatura portuguesa chega a círculos restritos de leitores aqui. Mas não acho que o caminho inverso seja muito diferente.

VB&M: Em face da contratação de OS SINOS DA AGONIA, uma das mais impactantes narrativas de um dos maiores clássicos da literatura brasileira, Autran Dourado, e ANISTIA, magnífico romance do professor e crítico Pedro Sussekind, ambos da lista de clientes da VB&M, cabe a pergunta sobre qual é e será o foco da HC para a literatura brasileira.

RC: Até recentemente, o catálogo nacional da HarperCollins era composto quase só de não ficção comercial. Neste ano estamos publicando alguns dos nossos primeiros livros de ficção contemporânea nacional, títulos como “Gostaria que você estivesse aqui”, de Fernando Scheller (primeiro nacional da TAG Inéditos), “Atirem direto no meu coração”, de Ilze Scamparini, e “O Último Ancestral”, de Ale Santos. Para essa lista, buscamos qualidade literária e força comercial.

Também estreamos nos clássicos contemporâneos, com a obra em romance e folhetim de Nelson Rodrigues. Autran Dourado, outro clássico, faz parte da nossa estratégia também para escolas. É uma obra riquíssima e atemporal, e o tipo de clássico que tem capacidade de fazer o jovem gostar de ler. A gente vem trabalhando para trazer outros nomes de primeira grandeza para fazer companhia a Nelson e Autran nessa lista.

VB&M: Quando recebeu o convite para mudar de lado do balcão, passando do jornalismo literário para a edição de livros, você buscou alguma leitura para inspirá-la na nova atividade?

RC: Sempre gostei de ler livros que contavam bastidores do mercado editorial, como “Max Perkins, um editor de gênios” (Intrínseca), de A. Scott Berg, e “Mercadores de cultura” (Unesp), de John B. Thompson, mas não li nada em específico nessa transição. Até porque uma das primeiras coisas que aprendi como editora foi que, se como jornalista de literatura quase não me sobrava tempo para ler qualquer coisa por lazer, como editora de livros não me sobrava tempo nenhum mesmo (rs).

VB&M: Quais livros foram mais formadores da Raquel Cozer jornalista, da editora e da mulher e mãe?

RC: Difícil fazer uma seleção assim, mas, para citar alguns livros/autores que ficaram gravados na minha vida: os contos de Lygia Fagundes Telles e Ignácio de Loyola Brandão, que me ensinaram a gostar de ler. “Grande Sertão: Veredas” (Companhia das Letras), de Guimarães Rosa, que deveria ser mais reconhecido no exterior como uma das maiores obras-primas da literatura mundial, e acho que deixou até meus e-mails mais bonitos por um período (ou talvez apenas mais ridículos). “Asfalto selvagem” (Agir) e “O casamento” (Nova Fronteira), de Nelson Rodrigues, que hoje tenho a honra de editar – Nelson foi um dos autores que mais li na juventude, a capacidade que ele tem de colocar todas as palavras certas numa frase é um negócio fora do normal. E tudo da Janet Malcolm, minha autora favorita de não ficção, que me mostrou que o bom jornalismo também é uma arte.

Como mãe, além de um que recomendo a todas as mães recentes — “Já tentei de tudo” (Sextante), de Isabelle Filliozat —, para mim foi uma delícia redescobrir Ruth Rocha. Cada livro dela é uma aula de narrativa.

VB&M: Atuando como editora desde 2015, qual o balanço que você faz do mercado do livro nesses seis anos?

RC: Costumo brincar que sou pé quente, porque duas das três editoras em que trabalhei (a Planeta e a HarperCollins) cresceram muito na época em que entrei nelas, dado que minha chegada fez parte de um processo de renovação nos dois casos. Talvez por isso meu olhar para o mercado possa soar mais otimista do que deveria, e privilegiado, do ponto de vista de grandes editoras.

Quando olho para as listas de mais vendidos hoje, vejo mais clássicos e títulos upmarket do que via nos meus tempos de jornalista, quando as listas eram povoadas por eróticos, livros de colorir, livros de padres. Os livros na lista hoje não vendem mais 1 milhão de exemplares ao ano como aqueles livros vendiam, mas, por outro lado, me parecem ter uma vida mais longa.

Olhando para o mercado como um todo, perdemos duas redes importantes de livrarias físicas, e outras redes aproveitaram a oportunidade para crescer. Vejo editoras fazendo um movimento necessário de trabalhar com as livrarias independentes, que foram as que mais sofreram com a pandemia. Do meu ponto de vista, proteger a bibliodiversidade envolve evoluir o debate sobre a lei do preço fixo do livro no Brasil, mas, enquanto isso não acontece, é preciso encontrar maneiras de garantir que esses canais tenham força para continuar.

VB&M: Nesse ano e meio pandêmicos que vivemos até agora (certamente tem muito mais pandemia pela frente), qual foi o maior desafio que você enfrentou?

RC: O maior desafio foi encontrar os leitores, para além dos canais online, quando eles não podiam estar nas livrarias. Foi um ano em que todas as equipes na HarperCollins precisaram ser criativas e se reinventar, e exigiu também que trabalhassem em sintonia para levar a cabo projetos importantes numa época em que as vidas de todos estavam muito abaladas.