Gisela Zincone representa a terceira geração de uma notável família de editores cuja história começa com a Companhia Editora Forense, especializada em livros de Direito, há cerca de um século. Antes de fundar a Gryphus, em 1995, inicialmente um selo da Forense especializado em obras de ficção, biografia, esporte, espiritualidade e música, hoje uma editora independente reconhecida por seu catálogo variado e de bom gosto, especialmente sólido na área de obras de reflexão existencial e budista, Gisela formou-se em Administração de Empresas pela FGV/RJ, viveu em Nova Iorque estudando música, sua grande paixão, e, ao voltar para o Brasil no final dos anos 80, participou da criação de uma banda de pop rock feminista chamada Afrodite se Quiser. Nesta Conversa Com (A) Gente, Gisela, que, além de editora e roqueira, também é embaixatriz brasileira atualmente nas Filipinas, comenta sua trajetória, vivências riquíssimas, o aprendizado do ofício de editora e os desafios de exercê-lo sem perder de vista o seu gosto pessoal: “Claro que sempre buscamos maximizar as vendas e obter sucesso, sem isso a empresa morre, mas tentamos encontrar um espaço para publicar o que gostamos e acreditamos, e não só o que teoricamente ‘vende’, pois o que buscamos na Gryphus é viabilizar um negócio e não maximizar os lucros.”
VB&M: Como se deu o impacto da pandemia sobre a Gryphus?
GZ: A pandemia tem sido um grande desafio para todos. Dirigindo uma empresa de pequeno porte, fica mais fácil navegar as águas turbulentas, pois temos bastante agilidade para a rápida adaptação. Já vínhamos de um cenário difícil desde 2016, já havíamos diminuído o ritmo de publicações e de investimento. Com a pandemia, tivemos que ralentar ainda mais a nossa programação de lançamento de livros inéditos, quase sempre de maior risco comercial. As nossas estratégias têm sido remexer nosso fundo de catálogo, reeditando obras para as quais já sabemos haver uma demanda e administrando assim os riscos, e publicar livros de temáticas similares aos que já têm espaço no mercado. Por fim, a migração para o online foi radical: investimos em todo tipo de treinamento digital para os funcionários, melhoria do nosso site, melhoria da internet e novos celulares para toda a equipe.
VB&M: Há quanto tempo você dirige a Gryphus remotamente?
GZ: Vim para o exterior em 2016 e no início fiquei muito insegura de tocar o negócio à distância. Conto com a minha excelente equipe no Rio de Janeiro, mas mesmo assim tive dúvidas se isso poderia dar certo. Com as novas tecnologias de comunicação, é possível, sim. No início avisava às pessoas que estava em outro país, mas senti que isso as deixava algo inseguras ou ‘desconfortáveis’. Então passei a não mencionar mais onde estou salvo se perguntam. Como tudo é por e-mail, ninguém precisa saber. Acham que durmo pouco pois estou enviando e-mails às 3h, 4h da manhã! Quando preciso falar com os autores ou com alguém, marco uma hora que seja boa para todos e ligo. Com a pandemia, todos passaram para esse tipo de trabalho online, portanto estamos todos juntos agora nessa modalidade.
VB&M: Vindo você de uma família de editores, a compreensão da própria vocação foi um processo conflituoso ou suave?
GZ: Com uma família de editores, a biblioteca da casa era um lugar central em nossas vidas, era lá que brincávamos, nos escondíamos, nos aventurávamos, ainda não lendo os livros, mas sim absorvendo aquele ar de mistério por trás daquelas enormes estantes cheias de obras que não sabíamos o que continham. Até hoje tenho fascínio por bibliotecas, sempre procuro visitá-las em qualquer lugar que eu vá. Estudei Administração de Empresas, pois não sabia bem o que queria fazer e estagiei na Editora Forense Universitária, na época dirigida por minha mãe, Regina Bilac Pinto, e minha tia, Beatriz Beraldo. Depois de me formar, fui morar em Nova York e estudar música, que sempre foi minha paixão. Foi uma época ótima, saí do piano clássico e entrei no jazz, estudando com feras como Ron Carter e Sheila Jordan e frequentando muitos clubes de música ao vivo. Ao retornar ao Brasil no final dos anos 80, o pop/rock havia estourado por aqui. Muitas bandas fazendo sucesso, e entrei para o Afrodite se Quiser, uma banda só de mulheres com uma pegada de empoderamento feminino, com letras diferentes daquelas em que as mulheres sofriam, eram elas no comando. Fomos contratadas pela Polygram Records, gravamos disco, estouramos uma música e viajamos o Brasil inteiro fazendo shows, foi muito interessante tudo isso. Era uma vida maluca em que eu trabalhava à noite e nos finais de semana. Tinha dois filhos pequenos em casa e comecei a ficar insegura de passar tanto tempo longe. A banda se desfez por outras razões, e foi aí que minha mãe me chamou para trabalhar na então Companhia Editora Forense. Eles haviam detectado na Forense uma sazonalidade muito grande, ou seja, em março e em agosto, início dos semestres letivos, havia grandes vendas, mas em épocas como a do Dia das Mães, Natal etc., a editora não vendia nada, pois ninguém dá livro jurídico de presente de Natal. Daí surgiu a ideia de fazer a Gryphus dentro da Forense, para compensar essa sazonalidade. Inicialmente, pensei em fazer livros de música_ partituras e biografias_ pois era o meu metiê, mas rapidamente vi que não era um negócio viável, pois são livros específicos que exigem profissionais qualificados, e o público leitor é muito reduzido. Fui aprendendo na marra, pois não tive a chance de trabalhar naquele início com algum editor de “trade”. O fato de ter estudado administração me ajudou a entender que editora é um negócio, e nem sempre o nosso gosto pessoal é viável.
Em 2008, a Gryphus se tornou uma empresa independente pois a Companhia Editora Forense foi integrada ao Grupo Editorial Nacional (GEN). Mas voltando a sua pergunta, fiquei muito agradecida à família naquele momento por terem me dado um espaço na empresa. Havia vivido uma outra vida e estava pronta para integrar os negócios da família.
VB&M: A forte presença de livros de reflexão existencial e budista no catálogo da Gryphus tem a ver com uma avaliação de marketing do público que a editora tem mais potencial de encontrar, ou significa também seu interesse pessoal?
GZ: Na verdade, as duas coisas. Quando morava em Nova York, conheci uma médica chinesa que praticava medicina alternativa e me ensinou muito sobre alimentação, ioga, quiropraxia, entre outras práticas alternativas. Em um final de semana de inverno fomos para um “ashram” em Massachusetts e fiquei fascinada com o modo de vida das pessoas por lá, era um mundo novo se abrindo, não conhecia nada daquilo. Me deram alguns livros de práticas pessoais de espiritualidade e comecei a me interessar pelo assunto como prática individual. Já trabalhando na Gryphus, recebi de Karin Schindler, a grande agente literária que me ajudou muito no início da editora, um livro chamado Quando tudo se desfaz, de Pema Chödrön. Fizemos uma oferta relativamente alta por ele, morrendo de medo e torcendo para que ela não aceitasse, mas aceitou, e tivemos que ir em frente. Saíram algumas notinhas sobre o livro e recebemos um telefonema do Grupo de Meditação Shambhala nos parabenizando pela aquisição dos direitos, e daí senti que havíamos acertado na escolha. O título está até hoje em nosso catálogo, e vimos que há um grande mercado para esse tipo de livro. Em geral, as pessoas torcem o nariz e desprezam essa categoria classificando-a como autoajuda barata. No início, eu me importava um pouco com isso, agora não mais, pois entendi que todos os livros são de autoajuda, seja por que motivo for.
VB&M: O que você gosta de ler coincide com o que gosta de publicar?
GZ: Nesta fase da Gryphus, sim! Às vezes me cobram o fato de ser empresária e não focar exclusivamente no crescimento e no lucro da empresa, que é o caminho natural de um negócio. Claro que sempre buscamos maximizar as vendas e obter sucesso, sem isso a empresa morre, mas tentamos encontrar um espaço para publicar o que gostamos e acreditamos, e não só o que teoricamente “vende”, pois o que buscamos na Gryphus é viabilizar um negócio e não maximizar os lucros. No nosso caso, a receita é uma consequência e não uma causa. Mas somos abertos a tudo, sem preconceitos, a não ser que seja um livro mal escrito ou que pregue valores opostos aos nossos. Fiz um curso sobre edição de livros na Universidade de Stanford e nunca esqueci um conselho que recebi por lá: recebe todo mundo que te procurar, ouve o que os autores têm a dizer, não os pré-julgue antes de avaliar pessoalmente seus trabalhos, e este tem sido o nosso lema.
VB&M: Você não hesitou a contratar com a VB&M o livro do monge budista Stephen Batchelor, THE ART OF SOLITUDE, lançado pela Yale University Press nos EUA. Qual a urgência da publicação desse livro para o leitor brasileiro?
GZ: Sim, o livro é lindo e em português se chamará ELOGIO À SOLIDÃO. Stephen Batchelor faz parte de uma geração de pensadores e intelectuais como Mark Epstein, Daniel Goleman e Joan Halifax que se aprofundaram no budismo não somente pelo lado da religião, mas sobretudo pelo aspecto filosófico dos ensinamentos. Já publicamos Epstein e Halifax e queríamos muito ter um livro de Batchelor em nossa lista. ELOGIO À SOLIDÃO é profundamente atual e interessante, por isso o escolhemos para publicação neste momento específico. Um dos grandes desafios da vida é aprender a ficar sozinho em paz, a se sentir em casa consigo mesmo. E agora, com a pandemia, fomos forçados a nos virarmos para dentro, ainda que não estejamos sozinhos em casa. Temos que descobrir a diferença entre isolamento e solidão. Com muita delicadeza, Stephen Batchelor nos mostra como abordar a solidão como uma prática enriquecedora. Os leitores brasileiros, esmagados por essa terrível pandemia e pela sensação de desgoverno, irão usufruir muito do livro que será lançado no início de 2022.
VB&M: Na ficção, quais as leituras favoritas?
GZ: Desde que saí do Brasil em 2016, acompanhando meu marido que é embaixador, adoro ler ficção contemporânea em português brasileiro! Me remete às minhas raízes, me reconheço melhor e mata um pouco as saudades que são muitas. Alguns livros que li recentemente: ARROZ DE PALMA de Francisco Azevedo; “Ainda estou aqui”, de Marcelo Rubens Paiva (amei o livro que fala do Colégio Andrews onde estudei); “Torto arado”, de Itamar Vieira Junior; “O corpo interminável”, de Claudia Lage; “A chave de casa”, de Tatiana Levy; e reli “Agosto”, de José Rubem Fonseca. Prefiro livros em papel, mas como estou fora, fico grata de ter acesso aos digitais. Na minha pilha futura: Marta Batalha, o novo de Tatiana Salem Levy, Maicon Tenfen e Adriana Lisboa.
VB&M: Na sua formação em geral, como profissional e como mulher, quais livros foram mais importantes?
GZ: Criança, tive minha coleção de Monteiro Lobato e adorava Poliana! Na adolescência, tive a sorte de ter um ótimo professor de literatura no ensino médio no Andrews, que nos mostrou vários bons autores brasileiros. Me marcaram muito “O encontro marcado”, de Fernando Sabino; “Gabriela cravo e canela”, de Jorge Amado; e “Feliz Ano Novo”, de José Rubem Fonseca, até hoje um dos meus autores prediletos. Na parte espiritual, ainda jovem ganhei a versão do I Ching, de Richard Wilhelm com prefácio de Carl Jung, traduzido para o português por Alayde Mutzenbecher, que depois se tornou autora da Gryphus, e é uma obra que consulto até hoje. Outro livro que me impressionou muito foi “Sidarta”, de Hermann Hesse. Para o trabalho, adoro ler livros escritos por ou sobre editores como Max Perkins, Jorge Zahar e Roberto Calasso. No momento, estamos preparando uma biografia sobre minha mãe Regina Bilac Pinto escrita por Lilian Fontes.