É fascinante acompanhar o processo de deslumbramento de um editor pelo livro que vai publicar. NARRATIVAS & DEPOIMENTOS traz hoje o primeiro capítulo de um romance que desde o primeiro momento encantou o editor Arnaud Vin, diretor do selo Vestígio, na Autêntica. Com um título diferente do original, muito mais sugestivo para o leitor brasileiro do que “Sobre diabos e santos”, como era em francês, chegará às livrarias no dia 15 de março o maravilhoso O PIANISTA DA ESTAÇÃO, do premiado autor francês Jean-Baptiste Andrea, vencedor do Grand Prix RTL-Lire 2021. Traduzido por Julia da Rosa Simões, com a edição impecável de Arnaud, o romance narra a história de um pianista que cresceu num orfanato religioso, vítima de abuso e maus-tratos. Ele passa os dias tocando Beethoven nos pianos públicos das estações e aeroportos de Paris, sempre à espera de Rose, sua paixão da adolescência. “Não vejo a hora de esse sublime romance ir ao encontro com o público brasileiro”, diz o editor.
*
Você me conhece. Faça um pequeno esforço, tente se lembrar. Sou o velho que toca nos pianos públicos, em todos os locais de passagem. Quintas-feiras no aeroporto de Orly, sextas no de Roissy. No resto da semana, em estações de trem, outros aeroportos, qualquer lugar que tenha um piano. Costumo ser encontrado na Gare de Lyon, moro bem perto. Você me ouviu mais de uma vez.
Um dia, você finalmente se aproxima. Se for homem, não diz nada. Finge amarrar o cadarço, para me ouvir um pouco sem dar na vista. Se for mulher, levo um susto. Porque estou esperando uma, justamente. Não você, não se ofenda. Espero por ela há cinquenta anos.
Você tem mil rostos. Lembro-me de todos, não esqueço nenhum. Você é a moça das manhãs pálidas que vai e vem entre a cidade e o subúrbio. Você é o senhor de paletó escuro sobre quem lembro de ter pensado: “Ele deve fazer amor com um zelo de funcionário público”, embora isso não me diga respeito – sou o primeiro a reconhecer que as mulheres são um formulário complicado. Você é branco, azul, vermelho, verde, você é um arco-íris. Você circunda meus pianos, desnorteado, porque não peço dinheiro. É por isso que me aborda. Sempre com a mesma pergunta:
– O que um homem como o senhor faz aqui?
Como assim, “um homem como eu”? E você sempre responde mais ou menos a mesma coisa:
– Um homem como o senhor, de boa aparência, mesmo tendo esquecido de barbear a bochecha esquerda. Um homem bem vestido, mesmo sua gravata estando um pouco fora de moda. Um homem, enfim, que dedilha o piano como o senhor. O senhor toca como um deus, talvez toque para Ele? Um talento como o seu não deveria ser desperdiçado em estações e aeroportos. O senhor toca como os pianistas que encantam o público em grandes salas vermelhas. Aqui, o senhor só encanta o asfalto molhado e os chapéus encharcados.
É verdade, senhora. Bem observado, senhor. Meus palcos cheiram a trilhos e querosene. Meus Carnegie Hall e meus Scala se chamam Montparnasse, Roissy – Charles-de-Gaulle, Union Station, John F. Kennedy Airport. Há uma boa razão para isso. É uma longa história, não quero incomodar.
Você segue seu caminho – a imensa maioria segue. Às vezes, você insiste. Você me oferece uma soma em dinheiro para tocar em seu aniversário. Num jantar social, num Bar Mitzvá – você me vê hesitar. Você sugere me apresentar a seu marido, que tem um cargo importante na Filarmônica. Ou a seu tio, o diretor artístico. Declino da oferta a cada vez, obrigado, de verdade, é muito gentil de sua parte. Eu seria um péssimo convidado. Preciso de lugares abertos, com vento circulando e portas batendo.
Ontem, você me perguntou:
– Estará aqui amanhã?
Amanhã não é nem quinta nem sexta, então sim, claro que estarei aqui.
Deixo um dó sustenido se extinguir entre a partida das 19h03 para Annecy e a chegada das 19h04 de Béziers, afastem-se da beira da plataforma, por favor. Ah, você voltou? Apresento-me, então. Sou o Joe. Joe de Joseph, mas faz muito tempo que ninguém me chama de Joseph. Joseph é um nome de músico famoso ou pai de messias.
Você quer que eu toque, claro, para me testar. Para entender, ver se há algum truque. Hoje você quer ouvir Berg, ou Brahms.
Sinto muito, só toco Beethoven.
Você se irrita um pouco, posso ver. Desculpe. Difícil me livrar de um hábito de cinquenta anos.
– Então toque o primeiro movimento da “Sonata ao luar” – você responde. – Para ficarmos no… clássico.
Você quase disse banal, e não foi o primeiro. Você olha para o relógio – não quer perder o jantar no centro, os amigos ou colegas o esperam, os canapés estão no ponto. Com as mãos erguidas, espero o ritmo. Um TGV chega à plataforma L, arquejando por todos os poros. Uma baleia elétrica que vem de Nice a trezentos quilômetros por hora. O cardume indigesto que ela vomita na plataforma turbilhona numa massa densa de vidro fundido. Corpos que se espreguiçam e correm para o sono, o álcool, o ataque cardíaco, o tédio, que sei. Tudo está ali, esperanças e desilusões. Você não ouve nada.
Meus dedos tocam o teclado. Um arpejo furioso, acordes, presto agitato. O terceiro movimento, não aquele que você pediu, não gosto do que é previsível. Seus lábios se contraem. Suas pupilas mudam de tamanho, um drogado que respira de novo depois de uma injeção de adrenalina. No fim, você se mantém em silêncio. Por bastante tempo.
Um tufão o atingiu em pleno rosto, e mil outros foram atingidos antes de você. Ele o levantou, esvaziou e devolveu ao mesmo lugar. Você custa a acreditar que está vivo. Você nunca mais usará a palavra “banal”. Sei o que está sentindo. Ninguém ouve um gênio ficar surdo sem certa emoção.
Você diz:
– Músicos do seu quilate recebem a Legião de Honra, são tratados com deferência. O senhor é ignorado o dia inteiro. Nunca pensou em se apresentar?
Me apresentar? É só o que faço.
Noto que você esboça uma pequena careta de impaciência, aquela que contrai seus lábios.
– Não, se apresentar num palco. Não seria o primeiro a começar tarde a carreira. Francamente, ainda é jovem.
Obrigado, senhora, senhor. Preciso ficar aqui. Não quero perder o último trem. O último avião. Guardem suas Legiões de Honra, suas medalhas, essas honrarias que excitam o coração e o entorpecem.
– Poderia ganhar muito dinheiro, Joseph. Comprar seu próprio piano.
É Joe, não Joseph. Não preciso de dinheiro. Tenho todos os pianos que quero. E já não sou jovem, tenho 69 anos. Vejo em seus olhos que vai protestar. Impeço-o, não por falsa modéstia. O que estou dizendo é verdade. Não sou jovem há muito tempo. Lembro inclusive do momento em que deixei de ser.
Vamos sentar naquele terraço, voltado para os trilhos. O café não é bom, mas as cadeiras são confortáveis. Acho que, agora, vou precisar me explicar.
Tudo começou quando adoeci. De uma doença incurável. Não se assuste, não sou contagioso. Ela me atingiu no dia 2 de maio de 1969. Não fiz nada para que isso acontecesse, os que a contraem dirão a mesma coisa.
Minha enfermidade não consta das enciclopédias médicas.
Mas deveria.