FOTOGRAFIA COMO LITERATURA

Miguel Sader

Estamos para lá de acostumados a ver a literatura se misturando com o cinema. Este foi inclusive o tema desta mesma coluna na semana passada, quando comentei o prestígio do filme Nomadland, adaptado a partir da obra homônima de Jessica Bruder, nas grandes premiações da temporada. São inúmeros os casos de adaptações cinematográficas de sucesso. Hoje a pauta é uma combinação artística bem menos comum mas que curiosamente (ou não) tem ganhado espaço no mercado: o casamento entre a literatura e a fotografia.

Recentemente, chegaram à VB&M dois títulos fortes e com carreiras sólidas, ambos dos Estados Unidos, um de ficção e outro de não-ficção, com essa peculiaridade em comum: foram escritos a partir de uma fotografia. Diferentemente do que acontece com as adaptações para as telonas, quando geralmente é o livro que dá origem ao roteiro, aqui vimos a literatura na outra ponta do processo, a obra literária como resultado da inspiração provocada pela foto.

O primeiro sobre o qual vamos falar, SOLD ON A MONDAY (“Vendidos numa segunda-feira”), não é lançamento. Foi publicado em 2018, mas os números regulares de vendas chamam a atenção mesmo quase três anos depois. A Sourcebooks, editora que detém os direitos de tradução, informa que o livro já está na casa dos 700 mil exemplares comercializados, tendo atingido uma média de 10 mil cópias por mês somente na semana passada – um sucesso espetacular. Para escrever a história ambientada nos Estados Unidos da década de 30, Kristina McMorris se inspirou numa fotografia real, veiculada pela primeira vez em um jornal em 1948, que mostra quatro crianças ao lado de um cartaz com os dizeres “Vendem-se quatro crianças”.

Também é histórico o segundo livro dessa linhagem de narrativas baseadas em fotos porém, em vez de um romance, THE RAVINE (“A ravina”) conta um episódio factual. A obra é fruto do minucioso trabalho de investigação da historiadora Wendy Lower sobre uma fotografia que mostra o momento do assassinato de uma família judia ucraniana por oficiais nazistas. A obsessão de Lower pela foto levou-a por viagens ao Leste Europeu em busca de toda a verdade por trás da terrível imagem. Diferentemente de SOLD ON A MONDAY, THE RAVINE é recém publicado – literalmente. Saiu ontem nos Estados Unidos pela Houghton Mifflin Harcourt. Mas quando disse lá atrás que estava me referindo a livros de carreira sólida, não foi uma imprecisão. Antes mesmo da publicação, a narrativa de Lower já foi negociada para tradução em seis territórios: Reino Unido/Commonwealth, Holanda, Finlândia, França, Itália e Suécia.

De tempos em tempos, o trabalho como agente permite identificar tendências no mercado. Não faz muito tempo que comentamos sobre a onda psicanalítica que invadia as livrarias mundo afora. Ainda é cedo para dizer se estamos testemunhando o surgimento de uma nova corrente de livros baseados em fotografias, mas a julgar pela qualidade e pelo impacto de SOLD ON A MONDAY e THE RAVINE, não seria uma surpresa se outros autores e autoras se inspirassem nessa linha.