GLOBALIZAÇÃO DO BEM

O escritor e educador, ex-ministro de Estado e ex-senador da República, Cristovam Buarque, cedeu à coluna Narrativas do blog VB&M um capítulo fascinante do seu inédito VISLUMBRES DO MUNDO, relatos de conversas com grandes personagens da história que ele conheceu por esse mundo afora. Em 85 perfeitos contos de não-ficção, Cristovam troca ideias com Fidel Castro e Edgar Morin, Mário Vargas Llosa e George Soros, entre outras figuraças. Escolhemos para o blog o conto “A boa globalização é possível”, cujo encontro é com um motorista de táxi ugandense em Washington: a conversa que travaram teve belas consequências.

A boa globalização é possível
Dar es Salaam e Zanzibar

Depois de sair de uma palestra na sede do Banco Mundial, em Washington DC, na primavera do ano 2000, tomei um táxi para o aeroporto Dulles, de onde partiria para Genebra. Ia para uma reunião da Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento, então dirigida pelo brasileiro Rubens Ricúpero, defender minha ideia de Troca da Dívida Externa por Bolsa Escola.

No táxi, no início do trajeto que durou 40 minutos, perguntei ao motorista de qual estado americano ele era. Respondeu: “De nenhum. Sou de Uganda”. Perguntei sobre a situação de crianças órfãs da AIDS, abandonadas nas ruas da capital, Kampala. Para minha surpresa, ele conhecia o problema em detalhes. Mais que isso, junto com sua esposa mantinha uma ONG, “Ark Foundation”, para atender aos órfãos. Continuei a conversa dizendo que tomei seu táxi em frente ao Banco Mundial porque ali estava para uma palestra sobre a Bolsa Escola e a Missão Criança. Expliquei o assunto: a Bolsa remunerava as mães para que seus filhos estudassem, a Missão mantinha programas deste tipo para famílias em países da América Latina e da África. Ele foi se interessando e, ao chegarmos ao aeroporto, perguntou se poderíamos continuar a conversa. Paguei a corrida e ele disse que estacionaria e me encontraria no saguão do aeroporto.

Para minha surpresa, ao terminar meu check-in, vi que ele se aproximava. Sentamos em um café, expliquei mais detalhes do programa, deixei com ele diversas cartilhas que eu carregava em inglês, dei minhas coordenadas e embarquei para Genebra. Dias depois, recebi um e-mail de Rhoy Kaima, esposa dele, me apresentando a “Ark Foundation”. Trabalhavam em três países – Uganda, Quênia e Tanzânia – e me consultava sobre a possibilidade de uma colaboração com a Missão Criança para apoiar órfãos da AIDS nesses países. Respondi que buscaria recursos, e sugeri que o programa fosse na Tanzânia. Seria minha homenagem a Julius Nyerere, libertador, fundador da União Nacional Africana da Tanganyika (TANU) e primeiro presidente do país, falecido um ano antes.

Poucos meses depois, graças ao apoio de Michelina Figueredo e Reinaldo Figueredo, venezuelanos que residiam em Genebra, conseguimos realizar um programa financiado pela “Parthenon Foundation”, de Londres, para 150 crianças
na Tanzânia.

Foi um belo exemplo da boa globalização: uma ONG brasileira, outra norte americana dirigida por ugandenses, financiando a educação de crianças pobres, órfãs pela AIDS, na Tanzânia, com financiamento de uma empresa inglesa, graças ao apoio de venezuelanos residentes em Genebra.

Eu estava satisfeito com essa realização, sem imaginar que um dia teria o prazer de visitar essas crianças, o que ocorreu graças a um convite da UNESCO, feito pelo argentino Jorge Werthein, para falar em um encontro de ministros da educação dos países da África, em Dar es Salaam, em dezembro de 2002. Antes de viajar, escrevi à Rhoy dizendo que gostaria de conhecer as crianças de nosso programa. Ela respondeu que, por coincidência, estaria lá nos mesmos dias. Fomos juntos visitar as crianças, que estavam a uma hora de carro de Dar es Salaam. Contei essa história, com fotos de Rhoy e das crianças, no livro “Bolsa Escola: História, Teoria e Utopia”. Raramente tive maior satisfação por ser um cidadão do mundo, ao lado de cidadãos de bem do mundo, casando compromisso social com capacidade gerencial para realizar uma globalização do bem. Para mim só faltou o Nyerere vivo, para eu voltar a jantar em sua casa na beira do Índico.

Conheci Nyerere por anos, embora em encontros espaçados, e minha admiração só cresceu ao longo desse tempo. Estive com ele no México, em Cuba, no Brasil e na Tanzânia. Em Brasília, no meu gabinete de reitor da UnB, fiz-lhe a surpresa de apresentar meu chefe de gabinete, o então jovem professor Flávio Sombra Saraiva, que falava swahili, o principal idioma do Leste Africano, inclusive da Tanzânia. Trocaram algumas frases nesse idioma, e Nyerere abriu seu contagiante sorriso. Logo explicou, dizendo: “Ele fala swahili bem, mas com sotaque mexicano”. De fato, Flávio aprendeu o idioma durante seu doutorado sobre África na Universidade Autônoma do México.

Nyerere foi um dos pais da independência dos países africanos, e um dos apoiadores do jovem Mandela em sua luta pelo fim do apartheid na África do Sul. Conseguiu independizar seu país e liderar a unidade entre Tanganica e Zanzibar, formando a Tanzânia. No meio da Guerra Fria entre União Soviética e Estados Unidos, socialismo e capitalismo, tentou uma terceira via, implantando neste pequeno país modelos alternativos de gestão e economia, priorizando soluções simples para atender às necessidades do povo pobre. Usei essa filosofia em diversos programas de meu governo no Distrito Federal.

Em um café em Dar es Salaam, mostrei uma foto minha com Nyerere e um jovem disse: “Mualimo, Mualimo!” Esta era a maneira como ele era tratado: “Mestre, Professor”. Foi gratificante ver na África um presidente unificador de seu país ser tratado por “mualimo”, que na língua suaíli significa professor, não por “chefe ou presidente”. Um dos raros líderes africanos a sair do poder ao cumprir seu mandato, entregou o cargo e se dedicou a lutar pela cooperação entre os países pobres, criando a entidade South Center, com sede em Genebra, do qual fui membro do Conselho Diretor por quatro anos, quando a direção era presidida por Boutros Boutros-Ghali.

Tenho dívida com Nyerere pelo que aprendi com ele, e por ter conhecido Boutros Boutros-Ghali. Lembro da longa conversa que tivemos, em seu apartamento no alto de um arranha-céu às margens do rio Nilo, sobre a história e as dificuldades do Egito contemporâneo, dividido entre muçulmanos e cristãos coptas, civis democratas e militares autoritários, uma refinada intelectualidade e clérigos fundamentalistas, imensas riquezas de poucos e trágica pobreza de muitos, sob o peso do passado de milhares de anos e uma neblina cobrindo o futuro. Foi ali que ouvi pela primeira vez o medo da Primavera Árabe já em marcha. Cheia de esperanças e riscos, capaz de desfazer ditaduras, e podendo colocar fundamentalismos no lugar ou desfazer países, como vimos depois na Líbia. Aprendi sobre os perigos dos tempos em que os políticos ficam órfãos de filósofos e o desencanto enterra a esperança; e que Escolas de Pensamento são mais necessárias do que partidos políticos. No livro em sua homenagem, escrevi que o rio Nilo chorou no dia que ele morreu. Difícil esquecer conversas com Nyerere e Boutros, dois dos grandes personagens do século XX e início do XXI.

O ambiente em Zanzibar, suas ruelas e casas, a cor do mar visto de um restaurante construído sobre palafitas, os rostos e sorrisos das crianças tanzanianas nadando ao lado, tem perfume do passado de 1.500 anos atrás, quando ali chegaram os primeiros muçulmanos, iniciando o longo período como entreposto do comércio de escravos e de especiarias. Nessa ilha, que foi por séculos o ponto de encontro de traficantes de escravos, nasceu e viveu até os oito anos de idade Freddie Mercury, ainda chamado de Farrokh Bulsara. Ao respirar o ar e ver a simplicidade de Zanzibar, pensei no inusitado dele ter sido catapultado dessa pequena ilha no Oceano Índico para o mundo, como um dos mais globais personagens dos séculos XX e XXI. Lembrei que, graças ao acaso de uma corrida de táxi em Washington DC, contribuí para aproveitar a globalização e fazê-la menos perversa para algumas crianças órfãs por causa da AIDS, que vitimou e matou o próprio Mercury. Essa contribuição não teria acontecido se aquele táxi tivesse passado um minuto antes ou depois. Foram diversas as coincidências que tornaram possível esse exemplo de uma boa globalização.

Para quem deseja surfar na história, às vezes basta pegar uma pequena onda de coincidência, sentir prazer no esforço exigido e estar no lugar certo, como em um táxi em Washington DC ou, ainda vivo, dentro de uma catacumba em um cemitério no Cairo.