A CONVERSA COM (A) GENTE da romancista e pesquisadora do antissemitismo e do Holocausto, Luize Valente, já estava programada para post desta sexta-feira quando estourou a polêmica em torno das tolas declarações do podcaster Monark sobre liberdade de expressão para adeptos do nazismo. Um dos principais temas desta entrevista é precisamente a ignorância do jovem brasileiro a respeito do Holocausto, que não poderia ter desenho ilustrativo mais nítido do que no tal podcast do rapaz. Autora do romance SONATA EM AUSCHWITZ (Record), traduzido para várias línguas, mas merecedor de selo de recomendação do Ministério da Educação português na edição da Saída de Emergência e já virando livro de bolso na Polônia pela Bukowy Las, Luize Valente acaba de finalizar A MENINA COM ESTRELA, uma joia de novela voltada para o público jovem, que retrata pelo olhar inocente de duas garotas, uma ariana e uma judia, o ódio antissemita na Alemanha de Adolf Hitler. Luize diz que o principal motivo de sua virada para o jovem leitor foi o choque que teve nos contatos com estudantes ao observar o imenso desconhecimento a respeito do antissemitismo e dos horrores do nazismo, apesar de toda a vasta produção literária e fílmica nos dias de hoje sobre o período da II Guerra Mundial, com a consequente constatação do risco da repetição do passado. A grande revelação da CONVERSA são os próximos projetos de Luize, na volta ao público adulto: MULHERES DE AUSCHWITZ (título de trabalho) sobre o amor entre uma judia e uma costureira socialista alemã, antigas cliente e fornecedora na Berlim dos anos 30, que se reencontram no campo; e A CONFRARIA DAS OLIVEIRAS, ainda em fase de pesquisa, sobre uma família de cristãos novos durante a Inquisição portuguesa do século XVI.
VB&M: O que a motivou a escrever para o público jovem?
LV: Por conta de dois livros anteriores – UMA PRAÇA EM ANTUÉRPIA e SONATA EM AUSCHWITZ –, participei de vários bate-papos em feiras literárias e em escolas no Brasil e em Portugal. Os dois são romances históricos que têm como pano de fundo a Segunda Guerra Mundial, mas não eram direcionados especificamente para jovens. Só que acabaram tendo uma boa receptividade também desse público. Me surpreendeu o fato de muitos adolescentes não terem conhecimento do que se passou durante o Holocausto, do que se tratava o nazismo ou quem foi Adolf Hitler.
Uma das explicações talvez seja o fato de o Holocausto aparecer no currículo escolar apenas como um tópico da matéria Segunda Guerra Mundial, dentro da cadeira de História Geral. Ou seja, o assunto é dado de forma rápida e fica diluído no contexto do conflito como um todo. Achei que pudesse ser um fenômeno de países que não diretamente atingidos pela guerra, como Brasil e Portugal. Qual não foi minha surpresa ao ler um artigo no Los Angeles Times em que sobreviventes do Holocausto – das poucas ainda vivas – relatavam experiências recentes em turmas de ensino médio completamente ignorantes sobre o tema. Jovens americanos – os EUA são o país com a maior comunidade judaica fora de Israel – que jamais haviam ouvido falar de Hitler ou do Holocausto. Ou seja, lá e aqui, vivemos a mesma desinformação. Isso mexeu comigo.
VB&M: Como surgiram em sua imaginação Eva e Alma, as protagonistas de A MENINA COM ESTRELA?
LV: Queria mostrar como a ideologia nazista e o antissemitismo, vistos sem a passionalidade dos fanáticos, são completamente estúpidos e insanos. Imaginei duas melhores amigas, nascidas na Alemanha dos anos de 1930, e o primeiro contato que teriam com essas questões tendo como referência elas próprias. A judia Eva e a ariana Alma surgiram de um pensamento que virou um questionamento de Alma: “o professor desenrolou um cartaz com o rosto de um homem curvo, narigudo, moreno, com apertados olhos bem pretos e uma barba rala e comprida. Semita, linhagem impura e inferior. Semita queria dizer judeu. Eva, alta e loira de olhos azuis, era judia. Alma pensou que talvez fosse possível existir pessoas judias por dentro e arianas por fora. E o contrário também. Arianas por dentro e judias por fora. Seria meio o caso do pai e do avô dela? Eles eram morenos, curvos, e com olhos bem pretos, só não tinham barba. Alma fez questão de guardar o pensamento para si.”
VB&M: Neste momento histórico de grande ênfase em políticas identitárias, qual o lugar do antissemitismo?
LV: O antissemitismo está em todo lugar e cada vez mais associado ao anti-sionismo e à questão palestina. Na Europa, os discursos xenófobos de líderes de extrema direita são majoritariamente dirigidos a imigrantes muçulmanos, africanos e latinos. A resposta vem na forma de atentados a sinagogas e centros judaicos. O curioso é que, de acordo com dados oficiais de 2021, num mundo com 7,8 bilhões de habitantes, o número de judeus é de cerca 15,2 milhões. Em seu livro “Reflexões sobre o racismo” (Difel), de 1966, Sartre diz que “o antissemitismo não entra na categoria dos pensamentos protegidos pelo direito de livre opinião. É coisa que difere muito de pensamento. É antes de tudo uma paixão.” Paixões não são racionais.
VB&M: Você vê semelhanças entre o processo histórico de ascensão do nazismo na Alemanha da primeira metade do século XX e o mundo que a gente vive hoje, marcado nos últimos tempos por movimentos populistas e governos de tendência autoritária e antidemocrática, principalmente nos EUA e Brasil, mas também em países europeus?
LV: Sim, por isso é tão importante continuarmos escrevendo, filmando, falando sobre nazismo e Holocausto. Mesmo antes da pandemia, já vivíamos uma crescente crise econômica mundial, agravada por guerras civis e ondas migratórias que só atiçaram reações xenófobas. Em momentos assim, o autoritarismo ganha muita força frente a movimentos liberais, um prato feito para ditadores com discursos nacionalistas. Isso aconteceu na Alemanha do começo do século XX, principalmente depois da Primeira Guerra. Neste sentido, nossa sociedade pós moderna se aproxima da germânica. São momentos em que o indivíduo se sente acuado e busca refúgio na violência e no coletivo contra um grupo culpado de todos os males do mundo. Na Alemanha de Hitler eram os judeus. No Brasil de Bolsonaro, os “petistas comunistas”.
VB&M: Apesar da grande produção artística e cultural em torno da II Guerra e do Holocausto, volta e meia nos surpreendemos ao constatar a imensa ignorância de pessoas a respeito desses processos históricos. Como você entende essa contradição? Isso é uma motivação para a sua criação como ficcionista?
LV: Sim, com certeza uma das minhas grandes motivações como ficcionista em geral e, como respondi na primeira pergunta, também um dos motivos para me aventurar pela literatura voltado para o público jovem adulto. Como vocês bem ressaltaram, existe um imenso desconhecimento mesmo com tantos filmes, séries e livros. Acho que uma das razões talvez seja o público-alvo. Essas produções são voltadas para um público adulto, mais velho. Existe pouca produção para o público jovem. Só me vem à cabeça, como fortes referências, “O Diário de Anne Frank” (Record) e “O menino do pijama listrado” (Seguinte). E, nos quadrinhos, “Maus” (Quadrinhos na Cia). Junta-se a essa falta de esclarecimento, a quantidade considerável de sites e reportagens negacionistas e revisionistas. Quanto menos se aprende na escola, ou em casa, mais fácil é deixar-se levar pelas fake news. Tem uma frase do filósofo George Santayana, no museu do campo de concentração de Auschwitz, que diz: “Aqueles que não conseguem lembrar o passado estão condenados a repeti-lo”. Acho que vale também para “aqueles que não conhecem o passado”.
VB&M: Como teve início seu interesse pelo Holocausto?
LV: É uma pergunta que me faço sempre. Não sou judia e nem convivi com sobreviventes do Holocausto. Mas desde cedo, por volta dos 10 anos de idade, eu já havia sido iniciada no tema pelo meu pai. Ele tinha uma boa biblioteca e me indicou as primeiras leituras. Quando ele morreu, eu ainda era jovem. Não chegou a conhecer meus livros. Gostaria de perguntar a ele por que me apresentou o tema. Meu pai tinha ascendência alemã e, só vim a saber muito depois da morte dele e da minha avó, que meu bisavô seria judeu. Talvez um dia escreva esta história.
VB&M: Seus próximos romances ainda explorarão o tema do antissemitismo?
LV: Sim, atualmente estou mergulhada em um novo livro sobre o encontro de duas mulheres – uma judia e uma alemã da resistência –, prisioneiras em Auschwitz que, em meio às perdas de entes queridos e da dignidade, em meio à violência e humilhação diárias, descobrem no amor um mote para sobreviver. Mas já adianto que não é uma história romântica, até porque, para mim, é impossível conceber romantismo num campo de morte. É uma história sobre um amor visceral, das entranhas, e que, paradoxalmente, só se tornou possível por ser aquele um momento fora do tempo espacial e convencional. Mas quando a Guerra termina, como estas duas mulheres seguem? Além deste romance, tenho um outro em fase de pesquisas, mas já com título, que tem a Inquisição portuguesa do século XVI como pano de fundo: A CONFRARIA DAS OLIVEIRAS.
VB&M: Quais as indicações de leituras que você tem para dar sobre nazismo, Segunda Guerra Mundial e Holocausto?
LV: Tenho muitas, muitas… tanto de ficção como não ficção. Estou em constante pesquisa sobre o tema. Mas como o espaço é curto, escolho um autor que, para mim, traz os mais contundentes relatos e experiências sobre esse período sombrio da humanidade: o escritor italiano Primo Levi, sobrevivente do Holocausto. Indicaria todos os livros dele, sem exceção, começando por “É isto um homem?” (Rocco). E na linha documental, de não ficção, dois livros, mais atuais, que são referências de fatos e fontes: “O Holocausto – Uma nova História” (Autêntica), do historiador e documentarista britânico Laurence Rees, e “KL – A história dos campos de concentração nazis” (D. Quixote, Portugal), do alemão Nikolaus Wachsmann, professor de História na Universidade de Londres.