Anna Luiza Cardoso
Ana Cecília Impellizieri Martins, a Ciça, é jornalista com mestrado em História e doutorado em Literatura Brasileira e tem uma longa estrada percorrida no mercado editorial. Antes de criar a Bazar do Tempo, que atualmente dirige, passou por Leya, Casa da Palavra e Edições de Janeiro, da qual foi cofundadora. Nesta Conversa Com (A) Gente, ela fala sobre sua trajetória; os princípios que norteiam o catálogo da Bazar do Tempo; o Clube F, voltado à produção literária e intelectual feminina; sobre feminismo e mulherismo; e sobre as próximas publicações no prelo da editora, a nova edição do romance ELVIS E MADONA, de Luiz Biajoni, um clássico da literatura LGBT+ brasileira, e EM BUSCA DOS JARDINS DE NOSSAS MÃES, de Alice Walker, primeira coletânea de escritos de não-ficção da fascinante autora americana. Perguntada sobre as obras que a formam como intelectual, leitora e mulher, ela cita o poema Coisas da terra, de Ferreira Gullar: “(…) Mas é nelas que te vejo pulsando,/ mundo novo,/ ainda em estado de soluços e esperança.”
VB&M: Para começar nossa conversa, pedirei para que você divida e comente conosco sua estrada na edição (Casa da Palavra, Leya, Janeiro) e sua formação acadêmica com mestrado em História e doutorado em Literatura Brasileira, tudo convergindo para a Bazar do Tempo. Como você chegou à Bazar? Qual conceito e princípios definem sua editora?
ACI: Sou formada em Jornalismo e trabalhei por vários anos na área: primeiro no “Jornal do Brasil”, como repórter no Caderno B, depois na TV Globo, como editora no programa Fantástico, e em seguida como editora executiva na “Revista de História da Biblioteca Nacional”. Foi nesse contexto – tão favorável, estando num ambiente como a Biblioteca Nacional – , que comecei a trabalhar diretamente com livros, cuidando de edições ligadas ao acervo da instituição (um tesouro inesgotável). Logo após essa experiência, assumi a direção de conteúdo da Casa do Saber do Rio, que me proporcionou contato privilegiado com autoras e autores que depois levaria para a primeira editora que assumi, então como sócia, a Casa da Palavra. Nomes como Ferreira Gullar, Cleonice Berardinelli, Eduardo Jardim, Marco Lucchesi. Foram anos mágicos na Casa da Palavra, que tinha um perfil muito singular no mercado, até a entrada do grupo português LeYa, que desvirtuou a vocação da editora (e que acabou levando ao seu fechamento alguns anos depois). Saí antes desse momento, buscando dar continuidade ao trabalho que fazia e, assim, abri, com sócios, a Edições de Janeiro, levando o mesmo grupo de autoras e autores que já me acompanhavam. Mas senti que para criar uma editora do jeito que acredito, com um catálogo afiado e coerente, eu precisaria ter maior autonomia. Foi aí que nasceu a Bazar do Tempo, entre o fim de 2015 e começo de 2016. De certa forma, ela é um espelho de todos os aprendizados do meu caminho; o que inclui, claro, a história (área fundamental no catálogo e verdadeira paixão pessoal minha) e a literatura brasileira (área de meu doutorado, sobre Paulo Rónai, autor presente no nosso catálogo). O desejo que guia a Bazar do Tempo é o de criar um catálogo que seja relevante para o Brasil de hoje e que ao mesmo tempo se consolide como um legado cultural para o país. Nesse sentido, buscamos tanto títulos que enriqueçam e apoiem os debates contemporâneos (temas essenciais ligados ao feminismo, às questões raciais, à sexualidade e à política), quanto à produção cultural e literária, como a literatura, a poesia, a fotografia.
VB&M: Qual a ideia que rege o Clube F, recentemente criado pela Bazar e voltado à produção literária feita por mulheres?
ACI: O Clube F. nasce com o compromisso de dar protagonismo à produção feita por mulheres nas diversas áreas do conhecimento. Porque quando pensamos em “especialistas” em determinado assunto, temos sempre em mente homens, seja na sociologia, na história, na filosofia, nos ensaios, e até mesmo na literatura. Então por que não tentar equilibrar esse jogo? Pois mulheres brilhantes não faltam, em todos os campos. Assim, o Clube F. quer abrir espaço para elas, ir em busca delas, publicá-las, debatê-las, amplificar suas vozes. E é uma alegria notar, já nesses dois primeiros meses de existência do clube, quanto interesse existe nessa produção.
VB&M: Entre os próximos lançamentos da editora, está a nova edição de ELVIS E MADONA, de Luiz Biajoni, em parceria com a Storytel. O livro, originalmente publicado em 2010 e em seguida adaptado para o cinema, foi uma das primeiras obras abertamente LGBT+ da literatura brasileira contemporânea. Por que relançá-lo agora?
ACI: Já podemos dizer que ELVIS & MADONA é um clássico da literatura LGBT+ no Brasil. Nesses dez anos que separam o seu lançamento dos dias de hoje, muita coisa mudou nesse campo: os debates LGBT+, queer/cuir ganharam espaço no país, assim como as produções ligadas a esse universo riquíssimo (do ponto de vista das artes e também da teoria). Relançar essa obra significa não apenas celebrar o pioneirismo de um livro que, para além da ousadia temática, tem uma imensa qualidade literária, como apresentá-lo para uma geração que ainda não o conhece. Acreditamos, assim, que ele terá um público novo, maior. Nos parece igualmente importante, num ambiente tão retrógrado, e também triste, como o que vivemos atualmente no Brasil, apresentar ELVIS & MADONA, que é tão cheio de irreverência, de resistência e de amor.
VB&M: Outro livro no prelo da Bazar é EM BUSCA DOS JARDINS DE NOSSAS MÃES, de Alice Walker, primeira coletânea de escritos de não-ficção da fascinante e célebre autora americana, com toda a experiência dela de mulher negra, escritora, mãe e feminista. Você correu atrás desse livro para publicação no Brasil, as leitoras vão sempre lhe dever essa. Como o ensaio de Alice Walker toca a sua sensibilidade?
ACI: Quando li esse livro da Alice Walker, me perguntei como nunca havia sido publicado no Brasil. É uma obra-prima! Uma coletânea de textos que percorre a trajetória da autora – uma das mais importantes dos Estados Unidos, publicada em todo o mundo, primeira afro-americana a ganhar o prêmio Pulitzer de ficção – e a sua busca por explicar uma série de questões ligadas ao seu país, à literatura, ao feminismo (ou mulherismo, que é essa corrente do feminismo negro nos EUA), ao racismo. Nessa busca, Alice Walker acaba por desenhar um impressionante panorama da cultura negra norte-americana ao longo do tempo, resgatando personagens como Phillis Wheatley, Zora Neale Hurston, Jean Toomer, além de Martin Luther King e outros de seus contemporâneos, e compartilhando visões preciosas sobre a própria vida e a produção literária. Ela mesma é parte importante dessa história americana do século XX. Uma mulher negra do Sul dos EUA, que viveu a realidade da segregação racial, mas que também teve acesso à universidade e se transformou numa escritora de sucesso mundial, com obras como A COR PÚRPURA e A TERCEIRA VIDA DE GRANGE COPELAND, entre outras. Com EM BUSCA DOS JARDINS DE NOSSAS MÃES, Alice Walker abre um caminho generoso para nos aproximarmos de suas experiências, de suas fragilidades e também de sua força. Tê-la em nosso catálogo é uma imensa alegria. Alô VB&M, queremos mais Alice Walker! 😉
VB&M: Mestre em História e doutora em Literatura Brasileira, você se considera mais da ficção ou da não-ficção? Ou como editora atingiu esse equilíbrio perfeito e raro?
ACI: Acredito que, por conta da minha formação, eu talvez seja uma melhor editora de não-ficção. Isso quer dizer que tenho o faro mais aguçado para esses títulos, até porque no caminho acadêmico e das pesquisas, essa produção ficou mais presente na minha experiência de leitora. Ao mesmo tempo, no caso do doutorado, ao pesquisar a vida de Paulo Rónai, mergulhei no campo da literatura do século XX, tanto brasileira quanto europeia (com ênfase na francesa, área de predileção do Rónai). Mas ao pensar na Bazar do Tempo como uma editora capaz de refletir o tempo presente, é fundamental que esses dois campos estejam juntos: a não-ficção e a ficção, pois, de fato, existem temas que a literatura aborda muitas vezes de maneira mais eloquente, eficiente e fiel que as obras de ciências humanas. Dessa forma, vamos ampliando o catálogo buscando esse equilíbrio e esses diálogos.
VB&M: Quais as leituras mais fundamentais em sua formação como intelectual, como editora e como mulher? De três a cinco títulos, porque seria interessante que você desse uma frase sobre cada um.
Pergunta dificílima para alguém cheia de interesses tão distintos… Mas vou arriscar (com seis).
A condição humana – cito esse título de Hannah Arendt, mas muitos de seus livros foram essenciais na minha formação (nas aulas de Eduardo Jardim, meu professor e hoje grande amigo) e até hoje me ensinam a “ler” o mundo, em suas movimentações sociais, políticas, humanas.
Tendências e impasses – o feminismo como critica da cultura – livro pioneiro organizado por Heloisa Buarque de Hollanda nos anos 1990, que eu conheceria anos depois e que me apresentaria aos conceitos fundamentais do feminismo. Além disso, a obra deu origem à coleção Pensamento Feminista, coordenada pelo Heloisa na Bazar do Tempo, que é hoje um dos pilares da editora.
As meninas – de Lygia Fagundes Telles, lançado em 1973, um romance maravilhoso que é também um retrato sensível de um tempo histórico sombrio.
Quarto de despejo – Um livro de sentidos e repercussões infinitas, com o qual Carolina Maria de Jesus inaugurou uma linha matricial literária brasileira, periférica, negra, algo sem par no mundo e que sessenta anos depois ainda nos interroga.
Encontros com o Brasil – um dos primeiros livros de Paulo Rónai publicado no país, em 1958. Ali ele já se mostra o grande leitor de Guimarães Rosa, Cecilia Meireles, Carlos Drummond de Andrade, e o ensaísta espirituoso, refinado – sem afetações – e generoso que foi. Rónai é uma imensidão.
Dentro da noite veloz – este e os outros livros de Ferreira Gullar, um poeta que encarnou a poesia com os elementos do mundo e do tempo que viveu. Gosto de quem gosta do mundo, apesar dele. E a poesia do Gullar é aprendizado e encantamento infinitos.
Coisas da terra
Todas as coisas de que falo estão na cidade
entre o céu e a terra.
São todas elas coisas perecíveis
e eternas como o teu riso
a palavra solidária
minha mão aberta
ou este esquecido cheiro de cabelo
que volta
e acende sua flama inesperada
no coração de maio.
Todas as coisas de que falo são de carne
como o verão e o salário.
Mortalmente inseridas no tempo,
estão dispersas como o ar
no mercado, nas oficinas,
nas ruas, nos hotéis de viagem.
São coisas, todas elas,
cotidianas, como bocas
e mãos, sonhos, greves,
denúncias,
acidentes de trabalho e do amor. Coisas,
de que falam os jornais,
às vezes tão rudes
às vezes tão escuras
que mesmo a poesia as ilumina com dificuldade.
Mas é nelas que te vejo pulsando,
mundo novo,
ainda em estado de soluços e esperança.