O BRASIL EM DESCONSTRUÇÃO

Anna Luiza Cardoso e Luciana Villas-Boas

Wagner Barreira, autor do romance DEMERARA, recém publicado pela Instante, e da biografia LAMPIÃO E MARIA BONITA: UMA HISTÓRIA DE AMOR E BALAS (Planeta), Conversa Com (A)Gente sobre os desafios de  escrever sobre personagens reais, seja de forma ficcional ou biográfica; sobre seu fascínio pela história brasileira da primeira metade do século XX; e sobre as diferenças entre o Brasil de 1918, quando se passa o romance DEMERARA, em plena pandemia da gripe espanhola, e o Brasil de hoje: “Para mim, a grande diferença entre as pandemias é que o Brasil de 1918 era um país em construção. Hoje, sob o atual governo, vivemos em um país em franco processo de destruição – das instituições, dos valores democráticos, dos direitos humanos, da universidade, da ciência, do meio ambiente.”

VB&M: Você começou sua carreira literária com um grande desafio: biografar o casal Lampião e Maria Bonita, sobre os quais se tem muito pouca documentação oficial. O que o levou a esse tema e como se desenvolveram a pesquisa e a escrita da obra?

WB: Descobri o cangaço ainda na escola e sempre me interessei pelo tema. No período em que editei a revista Aventuras na História, publiquei algumas matérias sobre cangaceiros, e apareceu o convite da Editora Planeta para escrever a biografia de Lampião e Maria Bonita. Creio que são os personagens mais fascinantes da história brasileira, pela origem, pela vida que escolheram e pela marca que deixaram na cultura. De acordo com quem os analisa, ora são bandidos sanguinários, ora heróis populares e revolucionários – o fato é que se tornaram ícones, presentes em qualquer aspecto da arte e cultura brasileiras, um baita feito para um casal nômade de foras da lei.

Os documentos oficiais se restringem a relatórios policiais e do Judiciário, que costumam ser enviesados, não há advogado de defesa. A maior parte da cobertura jornalística era feita das capitais nordestinas, baseada em relatos da polícia e de autoridades locais. Mas as informações sobre Lampião e o cangaço apareceram em contextos surpreendentes: ele é citado como pré-revolucionário em documentos da Internacional Comunista de Moscou, o Komintern, está nas obras de Graciliano Ramos, José Lins do Rego e Rachel de Queiroz.
O cangaço foi imortalizado numa série de óleos de Cândido Portinari; Maria Bonita inspirou a moda de Zuzu Angel e virou nome de uma das maiores grifes de roupa feminina do Brasil. Está presente em toda história cinematográfica do país desde os anos 1930, quando Benjamin Abrahão se enfiou na caatinga e fez o registro histórico do bando em 16 mm, censurado pelo Departamento de Imprensa e Propaganda do governo Vargas. O primeiro filme brasileiro premiado em Cannes foi O Cangaceiro. O cinema novo se apropriou do cangaço em Deus e o Diabo na Terra do Sol e os bandoleiros marcaram presença na pornochanchada (A Ilha das cangaceiras virgens), em filmes dos Trapalhões (O cangaceiro trapalhão) e na Retomada, a partir dos anos 1990 (Baile Perfumado, Entre irmãs). Na música, Lampião é tema de Luiz Gonzaga, Gilberto Gil e Chico Science. O casal foi protagonista de uma minissérie na Globo, com Nelson Xavier e Tânia Alves nos papéis principais, em 1982. Encontrei livros infantis sobre o cangaço.

A grande questão dos estudos do cangaço não está na ausência de fontes, mas talvez em sua abundância. A primeira pessoa que entrevistei para o livro foi o dentista paulistano Antônio Amaury. Apaixonado pelo tema, ele passava as férias, nos anos 1960 e 1970, microfone em punho, entrevistando testemunhas do período no sertão nordestino. Juntou um material extraordinário, em centenas de fitas K-7 e dezenas de livros. Tal como no caso de Amaury, muito do que se escreveu sobre o cangaço é fruto de abnegados, de historiadores locais, que muitas vezes não têm formação historiográfica ou jornalística. Os relatos são baseados em história oral, e aprendi, no processo, que os testemunhos não são isentos e costumam embaralhar as verdades factuais. A bibliografia sobre o cangaço conta hoje com quase 1.500 livros, há um intenso debate contemporâneo em dezenas de grupos de estudo do cangaço, principalmente no Nordeste, e o período é assunto na academia desde o pioneiro Lampião, rei dos cangaceiros, do brasilianista Billy Chandler, nos anos 1970. Vale lembrar que Lampião leu a própria biografia, da pena de Ranulfo Prata.

Quando juntei o material de pesquisa para escrever, depois de quarenta dias visitando em cinco estados os locais por onde passaram os bandoleiros nos anos 20 e 30, enfrentei o desafio de conciliar as inconsistências bibliográficas, testemunhais e documentais. Acabei me valendo de um conceito criado pelo filósofo alemão Hans Magnus Enzensberger, que deve ter enfrentado problema semelhante quando escreveu a biografia do anarquista espanhol Buenaventura Durruti: personagens que projetam a sombra muito além de sua vida terrena só podem ser abordados como “ficção coletiva”. A história de Lampião e Maria Bonita também é a história dos que se aventuraram a escrever sobre a dupla. Só aí o livro começou a fluir.

VB&M: Neste momento, você está vivendo uma nova estreia, agora na literatura de ficção, com o romance DEMERARA, publicado pela Instante. Sendo um romance histórico, a narrativa também exigiu um tanto de pesquisa. Como se dá a recriação ficcional de personagens e situações que existiram na vida real?

WB: Construí a narrativa amparado no que batizei de pilares históricos. Sim, o Demerara foi o navio que trouxe a epidemia de gripe espanhola para o Brasil; sim, Vigo, onde Bernardo passa a infância e o começo da vida adulta, era uma cidade galega rica e em expansão; sim, São Paulo no fim dos anos 1910 vivia uma explosão de industrialização na esteira do dinheiro da exportação de café. Havia um Belvedere onde hoje fica o Masp, na Avenida Paulista; ricos desfilavam em Torpedos no Carnaval, enquanto os pobres faziam guerra de água e farinha; a estação Ferroviária de Presidente Altino, que deu nome ao bairro, foi inaugurada em 1918. Mas na viagem que trouxe a gripe espanhola ao Brasil, o Demerara não parou em Vigo. E é assim que a narrativa começa, com um mentira histórica.

A pesquisa ajudou a embalar a narrativa. O navio demora um determinado número de dias para cruzar o Atlântico, chegou ao Rio de Janeiro numa data específica, há um Cemitério da Filosofia em Santos, assim como uma rua Armênia em Presidente Altino, que ganhou o apelido non sense de rua dos Turcos pela população, que chamava o lugar que homenageava as vítimas de um genocídio pelo nome de seus algozes. Mas tentei ir além. Quando estive em Vigo, estava atento à memória histórica, incrivelmente preservada na cidade, mas também busquei expressões específicas, o modo de falar dos galegos, explorei as ruelas da cidade velha e os bulevares em expansão. Algumas surpresas ajudaram a compor os personagens. Amália, por quem Bernardo se apaixona, ganhou um rosto quando pesquisei os registros sanitários da prefeitura, que identificavam os endereços e idas ao médico das prostitutas que trabalhavam na cidade. A foto de uma delas, andaluza como minha personagem, deu vida a Amália.

Em Traspielas, onde nasce o protagonista, encontrei duas oliveiras no átrio da igreja, que ajudaram a compor um trecho do livro. Circulando pelos pueblos vizinhos, reencontrei a uva, verde, pequena e redonda, que só conhecia na parreira do meu avô materno e, de certa forma, o fato reordenou a composição de alguns personagens.

VB&M: Bernardo, protagonista de DEMERARA, é inspirado na história de seu avô paterno. Há um quê de reconstrução biográfica no romance?

WB: Li em algumas resenhas que o livro é a história do meu avô. Sim, existiu um Bernardo Gutierrez Barreira em carne e osso, que saiu da Espanha para a América, chegou ao Brasil a bordo do vapor Demerara e teve um filho. De acordo com o que se conta na família, morreu no dia do batizado da criança, também Bernardo. Mas tudo o mais no romance é ficção. É uma história verossímil, não real. Sim, a reconstrução biográfica foi importante no sentido de marcar de onde o protagonista vem e onde viveu aqui no Brasil, mas sei bem pouco dele. O bairro onde os Bernardos (o real e o ficcional) viveram no Brasil foi onde se estabeleceu minha família. Morei ali até os vinte e dois anos e tive recursos para narrar com precisão a história e a geografia do lugar. Era amigo dos netos dos conhecidos de Bernardo.

O que sei é que não conto a história do meu avô, mas uma história possível de Bernardo Gutierrez Barreira. Talvez a “reconstrução biográfica” diga mais respeito ao autor que ao personagem. Usei muitas referências familiares, como nos trechos sobre os trabalhos da benzedeira Ermínia, ou o jeito de montar a cama de casal sem que os pés apontem para a rua, ou a simbiose entre o bairro e o matadouro Wilson. Há expressões no livro que ouvi de minha avó, que morreu aos 88 anos sem nunca proferir uma palavra em português.

VB&M: DEMERARA cobre um período do século passado particularmente interessante para os dias de hoje, a chegada da gripe espanhola ao Brasil em 1918. Quais são as semelhanças e diferenças daquela pandemia em relação à que atravessamos atualmente e que aprendizados podemos tirar da chamada Gripe Espanhola para lidar com a Covid-19?

WB: Há duas grandes diferenças: a gestão da pandemia e o vírus. Comecei o livro em 2016 e o conclui em quarentena da Covid-19. A gripe espanhola foi muito mais letal que o coronavírus. Fala-se entre 20 e 100 milhões de mortes pelo mundo de 1918 a 1920, enquanto a pandemia atual acaba de passar a marca do primeiro milhão de mortos. Se hoje reclamamos de subnotificação, o que imaginar de uma época em que estatística e medicina mal se cumprimentavam? Em que a maioria das cidades no interior do Brasil nem médico tinha? O vírus da gripe espanhola era tão letal que do primeiro sintoma à morte não se passavam três dias e contaminou muito mais gente, em especial jovens. O comércio e os serviços fecharam no século passado por falta de funcionários para tocar os negócios, não por determinação das autoridades. Monteiro Lobato conta que, novato, frequentava a redação de O Estado de S. Paulo com um grupo de aspirantes a jornalista quando a direção começou a “cair”, para usar a expressão do escritor. O diretor de redação, o adjunto, os editores e repórteres estavam de cama. Coube ao pessoal de Lobato fechar o jornal diariamente. Ele relata o medo que sentia de cometer alguma burrada no comando. Heloísa Starling e Lilia Schwarcz descrevem as hesitações das autoridades na época em relação ao combate ao vírus, em A dançarina da morte. A discussão saúde x economia estava presente, e havia o temor de fechar os portos. Quando o Demerara chegou ao Rio de Janeiro, já se sabia que levava doentes a bordo, mas mesmo assim eles desembarcaram na cidade. Na época, não havia nem mesmo um Ministério da Saúde e o combate à doença se deu por instituições como Santas Casas e Cruz Vermelha. Mas tão logo ficou claro a ferocidade do vírus, houve esforço do governo federal para, ao menos, tentar controlar a doença, com comunicados pedindo distanciamento social, por exemplo. A população também se conscientizou. O Corinthians, um clube popular, criou arrecadações para a Cruz Vermelha, o governo de São Paulo transformou a Hospedaria de Imigrantes em hospital de campanha.

O que vemos hoje é criminoso. Um presidente negacionista, apegado a uma falsa cura, a cloroquina, rejeitada até pelas emas do Planalto, que adora aglomerações sem máscaras e até agora não se compadeceu com os mais de 160 mil mortos e 6 milhões de contaminados. Bolsonaro aposta contra a saúde e a ciência – e se afasta de qualquer responsabilidade, como se não fosse com ele. Somos o segundo país em número absoluto e temos uma taxa altíssima de mortos por cem mil habitantes. Bolsonaro perdeu dois ministros da Saúde no meio da pandemia e o general em funções na pasta segue a linha “quem pode manda, quem não pode obedece”, um cordeiro de farda.

Em dois meses, a Gripe Espanhola passou em São Paulo. Foi tão furiosa que não tinha mais hospedeiros. Hoje estamos numa situação anômala desde março, à espera de uma vacina que, para o governo federal, não pode ser chinesa. Talvez tenha um nanochip capaz de transformar cada imunizado em entusiasta do Livro Vermelho de Mao Tse Tung. Para mim, a grande diferença entre as pandemias é que o Brasil de 1918 era um país em construção. Hoje, sob o atual governo, vivemos em um país em franco processo de destruição – das instituições, dos valores democráticos, dos direitos humanos, da universidade, da ciência, do meio ambiente.

A gripe espanhola teve três ondas, que duraram até meados de 1920. O Brasil recebeu a segunda, a mais intensa, com a chegada do Demerara, e uma terceira, em 1919, depois vieram rebrotes localizados. A velocidade da segunda onda foi essa mesma: em São Paulo e no Rio, a pandemia durou dois meses. Não quero entrar no mérito de discutir “imunidade de rebanho”, não tenho repertório para isso. O ponto é que a doença contaminou muito mais gente que a Covid-19. O distanciamento social da época era o das pessoas que ficavam de cama. Houve um ponto em que a doença não tinha mais quem contaminar. Em São Paulo, onde apurei melhor, a gripe chegou em outubro e acabou duas semanas antes do Natal.

VB&M: Você está se dedicando a algum novo projeto literário? Pode nos contar um pouquinho a respeito do próximo livro?

WB: Comecei a trabalhar em um romance com o título provisório de A revolução esquecida, o apelido da Revolução de 1924, em São Paulo, comandada pelo general Isidoro Dias Lopes, um general que abraçou as demandas dos tenentes. A cidade foi bombardeada por tropas federais, o governador se refugiou na Penha. Depois vieram a Coluna Prestes, a Revolução de 30, a revolta paulista de 1932, o Estado Novo, o voto feminino, a ditadura Vargas, comunistas e integralistas. É um bom caldo para meu próximo trabalho.

VB&M: Você parece ter uma atração especial pela primeira metade do século XX brasileiro – confere? O que especificamente o atrai no período?

WB: Sim, confere. Em minha opinião é o período formador do Brasil contemporâneo. O café, a monocultura que ganhou força no final do século XIX, colocou o país no mapa da economia mundial moderna. No ciclo do ouro, éramos uma colônia, com um só destino para nossas commodities, a metrópole portuguesa, ainda que a maior parte dele tenha financiado a Inglaterra. O café, assim como a borracha na Amazônia, gerou uma imensa riqueza interna na virada do século XIX para o XX. Mas as elites políticas do sul e do norte seguiram caminhos diferentes, especialmente em São Paulo. Ainda que mantendo fortes vínculos com a agricultura, os paulistas souberam transformar dinheiro em desenvolvimento: vias férreas, o Teatro Municipal, a criação de bulevares, a abertura de novos bairros-jardins (não por acaso o mais paradigmático deles se chamava “Higienópolis”), a criação da Escola Politécnica e da Faculdade de Medicina, a chegada em massa de imigrantes e a industrialização aceleraram a urbanização do país.

Ainda que por causa de um grão, o país se tornou mais urbano e grandes parcelas da população – a nova classe média e os operários – se descobriram alijadas de participação política: é o tempo dos tenentes, da fundação do Partido Comunista, da Semana de Arte Moderna. Esse caldo explodiu em revoltas, como os Dezoito do Forte, no Rio, a revolução de Isidoro Dias Lopes em São Paulo, até desembocar na Revolução de 1930, comandada por Getulio Vargas.

A primeira metade do século, que se estendeu até o suicídio de Getulio em 1954, colocou no tabuleiro as peças do xadrez político brasileiro. Convivemos com seus movimentos, seus avanços e recuos, até hoje. Se Lula é um eco remoto de Vargas, Bolsonaro é uma mistura de Plínio Salgado com Carlos Lacerda, sem a sofisticação desses dois personagens históricos.

VB&M: O romance histórico será sempre o seu meio como ficcionista?

WB: Como leitor, sou apaixonado por romances históricos. Se não fosse jornalista, seguramente seria historiador. Pretendo seguir escrevendo sobre o passado, mas não coloco limite no meu processo. Quando comecei a escrever Demerara, me policiei muito para não criar um Forrest Gump, um sujeito comum que esbarrava em personalidades históricas. A mim, interessa contar como grandes mudanças políticas, econômicas e sociais tocam a vida de pessoas comuns. Com esse prisma, escrever sobre o que ocorre hoje no Brasil é quase uma obrigação. Tenho experimentado com narrativas curtas sobre o cotidiano e o contemporâneo, mas acho que elas precisam amadurecer mais. Trabalhar com o romance histórico me joga nesse caminho. Mas não vejo esse lidar com fatos históricos como uma camisa de força.